sexta-feira, 21 de novembro de 2014

BETTY MILAN | Michel Serres: educação e mestiçagem





Michel Serres 

Formado em matemática e em filosofia, Michel Serres foi oficial da marinha de guerra antes de se dedicar à filosofia das ciências e se tornar professor. A sua biobibliografia tanto menciona os navios em que serviu quanto os livros que escreveu e as universidades do mundo em que lecionou. Serres é um pensador que fez pouco das especializações existentes e se especializou em percorrer os saberes para encontrar a ponte que os liga. À maneira do navegador, privilegiou a rota e a passagem, chegando a dar a um dos seus livros o título evocativo de uma das grandes aventuras marítimas do século passado: Passagem do Noroeste. É membro da Academia Francesa de Letras e diretor da coleção Corpus da filosofia francesa, publicada pela Editora Fayard. Foi conferencista da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo em 1973.
Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011O terceiro instruído [1] é o título de um livro nada acadêmico que Michel Serres publicou em 1991. Nesta obra, o filósofo faz bem pouco da figura arrogante do doutor, dizendo que basta, para sê-lo, ter copiado cem modelos e que só é verdadeiramente instruído o homem de muitas culturas.
O terceiro instruído é um tratado sobre a educação, que se desenvolve através do elogio da viagem e do saber que dela resulta. “Parte”, escreve Serres, “deixa o ninho para te enriqueceres com os costumes de outros lugares, e aí ouvires palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo ao vento e à chuva, porque, para ser verdadeiramente educado, é preciso te expores ao outro, esposar a alteridade e re-nascer mestiço.”
Tendo em vista a publicação tão oportuna no Brasil deste livro, que se opõe ao fechamento cultural e faz do aprendizado um sinônimo de mestiçagem, entrevistei Michel Serres no escritório da sua residência, em Vincennes, perto de Paris.

BM | Fernando Pessoa, o maior poeta da lusofonia portuguesa contemporânea, dizia que navegar é preciso. Você é um filósofo pessoano porque nunca se apresenta sem lembrar que foi marinheiro, o que obviamente não é gratuito. O que pode e o que deve o intelectual moderno aprender com o navegador?

Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011MS | (Risos) O mar faz descobrir um mundo ignorado aqui na terra. Existe, aliás, um texto de Hegel sobre isso. O homem só se torna inteiramente responsável por si mesmo quando entra num navio. Abre mão da segurança que a sua história lhe dá e só conta com o próprio talento.

BM | O terceiro instruído está sendo lançado agora no Brasil. Gostaria que você falasse do livro.

MS | O lançamento me alegra. Escrevi o livro porque é bom que, no fim da carreira, um professor faça o balanço da sua experiência pedagógica. Dediquei a minha vida aos jovens e tinha vontade de retratar o homem do século XX. A maioria dos filósofos da educação, Montaigne, Fénelon, Rabelais, traçou retratos e foi o que eu fiz.

BM | Em O terceiro instruído você diz que, antes de se educar, o jovem é um velho papagaio, só capaz de repetir, e você dá a entender que não é propriamente com os atuais doutores que ele deixará de ser papagaio. Qual o perfil do verdadeiro professor e o do aluno instruído?

MS | Digo que a finalidade da instrução é parar de instruir. Na língua francesa a palavra fin designa simultaneamente o termo e a finalidade. Não há nada melhor do que instruir alguém, transmitir a totalidade da nossa experiência e do nosso saber, mas ao ter feito isso é preciso parar, deixar que o outro seja independente e comece a inventar. Acho ótimo, aliás, que você tenha me colocado essa questão. Olhando para mim, você percebe que sou um velho, porém a experiência mostra que, contrariamente às aparências, a gente é muito velho quando é jovem e depois, avançando na idade, conquista uma segunda juventude.

BM | No seu último livro você incita os jovens a partir, ir ter com o outro, se separar. A separação é, na sua filosofia, um valor positivo.

MS | A palavra pedagogia, comum à língua francesa e à língua portuguesa, é feita de paidos (criança) e agogia(conduzir) porque o ensino, na verdade, é uma viagem. Pode ser uma viagem imaginária ou intelectual, mas é evidente que a educação começa com uma espécie de partida, implica abandonar hábitos, mudar de língua, partir do lugar onde se nasceu. Não existe educação se não houver o “Levanta-te e vai”. Mais ou menos como o que se passa entre os pássaros. Quando as asas dos filhotes começam a aparecer, os pais os empurram para que caiam do ninho, abram as asas e saiam voando.

BM | Montaigne filosofava numa língua literária, escreveu A viagem forma os jovens, incitando-os a viajar, e se interessou muito pelos índios da América do Sul, em particular pelos brasileiros. Você se inscreve na tradição de Montaigne…

MS | Sim. E no que diz respeito à viagem, gostaria de acrescentar que viajar não é só sair de casa, é sobretudo encontrar o outro, porque é com ele que a gente aprende. Óbvio que se você só encontra pessoas cuja língua é a mesma, que têm os seus hábitos e a sua religião, você não aprende nada. A alteridade é essencial.

Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011BM | Você diria que a paixão pelo outro é uma paixão francesa?

MS | Desejaria que fosse universal.

BM | Mas você sabe que não é.

MS | Foi por isso mesmo que escrevi o livro. O filósofo tem o dever de mostrar ao homem o seu horizonte. O livro diz respeito a um triângulo: o eu que parte e encontra o outro e o terceiro, que resulta do encontro e é instruído. Todo aprendizado é a mistura de um eu e de um outro, que resulta num mestiço, o terceiro instruído.

BM | Você ensina quatro meses por ano nos Estados Unidos. Como é na cultura americana a relação com o outro?

MS | Nos Estados Unidos, ao contrário do Brasil, a mestiçagem não foi bem-sucedida. Ainda existem bairros muito separados, os chineses ficam na Chinatown, os italianos na Little Italy etc. No Brasil, as raças, as culturas e as línguas realmente se misturaram, o melting pot de fato aconteceu. Há asiáticos, americanos, africanos, europeus e não há uma comunidade dominante em relação às outras.

BM | Gilberto Freyre, o autor de Casa grande & senzala, [2] repensou a própria sociologia a partir da noção de mestiçagem. Costumava mesmo dizer que havia aprendido latim com o pai, francês com a mãe e o principal, cultura brasileira, com a mulata que dele cuidava na infância. Freyre certamente se diria um mestiço, como você em O terceiro instruído. Poderia ter sido um interlocutor seu. O que o convívio com os brasileiros em 1973 lhe deu?

MS | Descobri a latinidade, a existência de uma comunidade latina na qual eu acredito muito. Quando vou à Itália, a Portugal, à Argentina ou ao Brasil, me sinto em casa, e isso porque as línguas latinas têm muito em comum. As culturas são diferentes, mas a gente sempre encontra um ponto de coincidência no que diz respeito à relação com o outro, ao gosto pela beleza. Nós, franceses, nos sentimos mais próximos dos brasileiros do que dos ingleses, apesar de sermos vizinhos destes.

BM | O que mais resultou da sua viagem de 1973?

Floriano Martins | Estudos de pele, 2010-2011MS | Descobri, no Brasil, que o país se parecia com o mundo inteiro. Pelos problemas de economia, de demografia, de saúde, representava o mundo, e isso foi o que mais me impressionou. Percebi que existia um universo, um global em preparação. Em 1973, na França, podíamos dizer que existiam os problemas franceses e os outros, os do mundo, que eram diferentes. O Brasil já espelhava o mundo inteiro, a globalidade. Quando voltei, me perguntavam o que foi que eu aprendi e eu respondia que havia aprendido o mundo.

BM | Ao lançar O contrato natural você disse que a reflexão política contemporânea é conduzida por pessoas que têm uma cultura hemiplégica, gente que conhece as ciências humanas, porém ignora totalmente a modernidade cultural. Como deve ser o político neste fim de século?

MS | O homem político mais frequentemente conhece as ciências humanas. Acontece que a grande maioria dos problemas atuais é resultante da aplicação de técnicas relacionadas com as chamadas ciências duras. Assim, por exemplo, os problemas de meio ambiente são produzidos por técnicas industriais derivadas das ciências físicas e químicas. Já que uma grande parte dos dramas da modernidade depende das ciências duras, é preciso que o dirigente as conheça. Isso, aliás, é um fato inteiramente novo. Nunca antes se pediu ao homem político que tivesse tal conhecimento. Quando ele se limita a ler o jornal, fica demasiadamente preso à atualidade e não tem a distância necessária para se ocupar dos problemas que só se resolvem a longo prazo, como os da educação, do meio ambiente, da criminalidade. O homem político não pode se limitar à cultura da mídia.

BM | Talvez seja necessário formar melhor a mídia.

MS | Não há como reformar os sistemas atuais. A única reforma possível é a da educação. Quando a humanidade tem um problema que não sabe resolver, é preciso que eduque as crianças para estas o resolverem na geração seguinte. Por isso a pedagogia é a questão fundamental no mundo inteiro.

NOTAS
1. Le Tiers Exclu. Paris: François Bourin, 1991.
2. Publicado pela Editora Record, 31.ed., Rio de Janeiro, 1996. 

Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros e atualmente é colunista da revista Veja. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), Fale com ela (2007), e Quem ama escuta (2011). Esta entrevista integra o livro A força da palavra. Publicação original na Folha de S. Paulo, abril de 1993. Contato: bettymilan@free.fr. Página ilustrada com obras de Floriano Martins (Brasil), artista convidado desta edição de ARC.



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