Em 1999 Betty Milan reúne em livro um conjunto muito especial de entrevistas que fez a pensadores franceses com a intenção de rever acontecimentos destacados do século XX, notadamente no que diz respeito aos seguintes temas propostos: a cidade, a guerra, a terra, o desterro, a vida, as mulheres, o sexo, a língua, a arte, a comunicação. A série de entrevistas escuta e dialoga com as seguintes pessoas: Paulo Virilio, Pierre-Marie Gallois, Pierre Gourou, Gerard Chaliand, François Jacob, Michele Sarde, Catherine Millot, Claude Hagège, Georges Mathieu e Dominique Wolton. Publicado sequencial e originalmente na Folha de S. Paulo, o conjunto foi reunido em livro, O Século (Editora Record), que vem sendo aqui apresentado, para os leitores de ARC, sempre em duplas de diálogos. Sugerimos visita à sua página web: www2.uol.com.br/bettymilan, no caso de interesse por mais detalhes sobre este livro em particular ou pela obra em geral de Betty Milan.
1. A TERRA | PIERRE GOUROU
Pierre Gourou nasceu com o século na Tunísia e tornou-se um dos maiores geógrafos europeus. Ficou conhecido em 1936 por uma tese sobre os camponeses do Delta do Tonquim (Vietnã), na qual mostra que a fatalidade tropical não existe, tudo é função da tecnologia, do enquadramento – títulos de propriedade sérios, presença de agrônomos competentes, por exemplo – e da ruptura do isolamento pelas redes de comunicação. Especializou-se no estudo dos países tropicais e sobre eles publicou, além de centenas de artigos, vários livros de grande influência na formação de geógrafos brasileiros, como Les pays tropicaux, Principes d’une géographie humaine et économique (“Os países tropicais”, “Princípios de geografia humana e econômica”), de 1947, e Pour une géographie humaine (“Por uma geografia humana”), de 1973. Conheceu o Brasil e sobretudo a Amazônia, tema de páginas extraordinárias do livro Terres de bonne espérance. Le monde tropical (“Terras de boa esperança. O mundo tropical”). Foi eleito professor do Collège de France em 1947 e depois ensinou na Universidade Livre de Bruxelas. Faleceu em 1999 na capital belga, onde vivia.
BM | O senhor, contrariamente a Lévi-Strauss, escreveu que os trópicos não são tristes. O sociólogo Gilberto Freyre também pensava isso.
PG | Não sei em que os trópicos seriam tristes. Dizem que são insalubres, mas isso não se deve à natureza, e sim a um atraso de civilização. Nunca fiquei doente nos países tropicais e estive muito tempo na Indochina e na África.
BM | No Brasil também, não é?
PG | Oito meses, e um mês na Amazônia, que, aliás, me interessou muito. Uma natureza tão diferente das que eu conhecia, e as tradições portuguesas que se adaptaram tão mal ao meio ambiente... Me formei no trópico em países de alta civilização, o Vietnã, por exemplo, onde havia 400 habitantes por quilômetro quadrado.
BM | O senhor nasceu com o século, quando os países tropicais eram colônias ou tinham existência política marginal. Hoje em dia, com exceção da África, eles estão saindo do anonimato. A ideia de que o trópico é uma região geograficamente maldita não faz mais sentido, não é?
PG | O problema do trópico é que ele é mal explorado pelos seus habitantes. Os brasileiros se adaptaram ao trópico, salvo à Amazônia. Aí a gente não tem familiaridade com o meio. Não encontrei um único índio, só os portugueses amazonenses, ou seja, os mestiços, cujas técnicas eram simples demais. A culpa não era deles, claro. Em 1947, em Gurupa, uma cidadezinha de mil habitantes, não havia água nem luz. Um único relógio, que pertencia à professora. A pobreza era extrema. Todas as casas estavam em ruínas. O padre só ia à igreja para os batizados e os casamentos. O cemitério era de judeus marroquinos, que foram para a Amazônia na época da exploração da borracha.
BM | A que se devia tamanho atraso?
PG | À organização social. A cidade era controlada pelos poderosos de Belém, os donos do comércio, capazes inclusive de assassinatos. Tudo é questão de civilização – e esta pode perfeitamente prosperar em países tropicais. O problema é que certos países não participam ainda da modernidade, como os africanos, por exemplo. Mas isso pode mudar. Trata-se apenas de um atraso histórico. Repito que a civilização é tudo. Considere o caso do Brasil durante o governo militar. Gastaram um dinheiro louco na Transamazônica. Não sobrou quase nada do investimento, porque não era adaptado ao meio. Levaram para lá gente sem instrução alguma, o caboclo. Não houve e não podia haver progresso. Aliás, é possível que o Brasil não tenha interesse em transformar a Amazônia. Há tanto por fazer em outros lugares, em toda a região Leste e Sul, onde há operários absurdamente miseráveis. Os plantadores de cana-de-açúcar do Nordeste ganham pouco mais de um dólar por dia. Para viver, é preciso ganhar dez. A miséria é um hábito ruim que vem da escravatura. Tudo depende da organização social. Um problema grave que existe no Brasil é a prolificidade dos pobres. Para corrigir isso, leva tempo. Trata-se de um círculo vicioso. Para que os pobres parem de ter tantos filhos, é preciso que eles sejam menos pobres, mais bem-instruídos. Na minha opinião, a Igreja não desempenha o papel que deveria, está muito longe do povo. Lembro de uma cidade no estado de São Paulo, com 70 mil habitantes, onde havia um único padre que passava o tempo fazendo casamentos e não se ocupava da caridade, que é indispensável.
BM | O senhor se manifestou contra a ideia de que a Amazônia seja um dos pulmões da Terra e de que o desaparecimento da floresta teria efeitos cataclísmicos sobre o clima.
PG | Foram os americanos que lançaram essa ideia. Queriam ganhar dinheiro fazendo propaganda pela proteção da Amazônia. O clima do mundo não depende do que acontece na Amazônia, mas da repartição das terras e dos mares. Convidaram reis e presidentes da República para a conferência do Rio de Janeiro (ECO 92) inutilmente.
BM | O senhor está escrevendo um livro cujo título é Geografia e civilização. De que se trata?
PG | A geografia, contrariamente ao que se ensina na escola, não pode ser dividida em geografia física e geografia humana. Trata-se de uma coisa só. Toda paisagem é, antes de mais nada, uma paisagem de civilização. A ideia de que a natureza vem antes é uma ilusão. O prioritário, do ponto de vista do geógrafo, não é o físico, porém a civilização, ou seja, o conjunto de técnicas de produção e o enquadramento.
BM | E o que caracteriza o século XX no que diz respeito à civilização?
PG | O século XX reforçou-a por ter aumentado a capacidade de produção, a produtividade das pessoas.
BM | O senhor afirma isso apesar de Chernobyl?
PG | Na União Soviética, houve um esforço fantástico para substituir a natureza pela civilização. Não deu certo. O sistema produtivo requer certa moderação. Os russos valorizaram demais o átomo e depois construíram indústrias atômicas que simplesmente não funcionam, são perigosas. O futuro, aliás, talvez nos mostre que o átomo é um perigo para a civilização... A China, ao contrário da União Soviética, parece estar evoluindo bem. Talvez venha a ser, no próximo século, a segunda potência mundial. A população cresce menos do que antigamente e eles desenvolvem uma indústria fantástica. A China não tem muitos recursos, mas tem uma organização forte. Acabam de comprar dos suíços uma grande quantidade de máquinas de tecelagem. Vão vender a produção no mundo inteiro.
BM | E a Europa?
PG | O campo está se esvaziando e as metrópoles não param de crescer. A gente não sabe mais dirigi-las. As nossas sociedades evoluídas vão ter problemas graves por não saberem como controlar as cidades.
BM | Por que a África não se desenvolve?
PG | Por falta de organização. Não há mais países coloniais e os países independentes não são capazes de se administrar bem. Estão divididos entre as tradições africanas e uma evolução mais moderna. Por enquanto, continuam a ser mais africanos do que modernos...
BM | Ao Brasil, o que falta?
PG | Li no jornal que alguns industriais de São Paulo querem transferir suas indústrias para o Paraná, onde os sindicatos são fracos e os operários não podem exigir salários elevados. Seria a ruína de São Paulo. Trata-se de um exemplo de enquadramento insuficiente. As autoridades não têm força para enquadrar os industriais.
BM | Em que consiste o progresso da geografia no século XX?
PG | Na descoberta de que as condições naturais não são determinantes. O subdesenvolvimento da África não é decorrente da natureza africana, porém de uma insuficiência da civilização africana. O defeito da geografia do passado foi considerar que primeiro se devia estudar a geografia física e depois a humana. Isso não corresponde a uma verdade. É preciso primeiro estudar a civilização, as técnicas de produção e o enquadramento. A geografia física, a gente examina depois.
BM | E, do ponto de vista da civilização, o que mudou?
PG | As técnicas de enquadramento se tornaram mais dominadoras. Num país como a França, por exemplo, os campos eram populosos e os camponeses produziam a sua alimentação e a do resto do país com técnicas muito simples. Hoje em dia, as técnicas de enquadramento se aperfeiçoaram e limitaram a importância das técnicas de produção. Os cavalos foram suprimidos, porque há motores, e as poucas pessoas que trabalham na terra estão enquadradas pelas escolas, pelos bancos, pelo Estado. O enquadramento é mais importante do que a produção. Isso muda inteiramente a paisagem. Considere os Alpes europeus. Antigamente, eram destinados à produção em vista do consumo dos moradores. As vacas produziam o leite e o queijo, que eram consumidos e, só eventualmente, vendidos. Hoje, tudo mudou. Os habitantes dos Alpes já não se ocupam dos seus animais. Descobriram um enquadramento novo, que é o esportivo. Os Alpes estão destinados ao esqui, ao repouso na montanha etc. A produção praticamente inexiste. O turismo e os esportes de inverno é que são importantes e o enquadramento é fundamental, as estradas, os meios de transporte...
BM | O exemplo é muito claro.
PG | Tudo agora é assim. Quanto mais desenvolvidos os países, mais isso se verifica. A região da Provence está se esvaziando, salvo à beira-mar, onde há uma massa enorme de gente que vai aproveitar o sol graças ao automóvel, ao avião etc. Já não se plantam oliveiras. As azeitonas são compradas da Tunísia, país suficientemente pobre para produzir azeitonas.
BM | Qual o papel que o geógrafo deve e pode desempenhar?
PG | O geógrafo deve explicar os fatos relativos à civilização, ele não dá conselhos. Mesmo porque nenhum governo é mestre da civilização, que é sempre mais forte. De que adianta dar conselhos a um governo que se confronta com problemas materiais graves? E que sentido faz, aliás, perguntar de que serve a geografia ou a história? Por acaso o conhecimento histórico impediu os homens de fazer besteiras? Nunca fizemos tantas quanto no século XX, que teve as duas maiores guerras de todos os tempos, os dois maiores massacres. Verdade que, diante da automatização crescente, há um excesso de homens. Foi a bomba atômica que parou a guerra. Sem ela, ainda estariam se matando. Com ela, abrimos um capítulo imprevisível da história.
BM | O senhor está dizendo que o desenvolvimento técnico pode ser um fator contrário à civilização...
PG | Não, ele faz parte da civilização, mas pode ser contrário à felicidade geral. Pense nas possibilidades de comunicação hoje existentes – a internet, por exemplo. Como ter controle sobre isso tudo?
BM | O senhor escreveu a vida inteira. Qual é, na sua opinião, o futuro da escrita?
PG | É possível que a escrita venha a ser substituída pela gravação, a palavra gravada. No meu tempo, era lógico escrever. Em breve, não haverá mais necessidade alguma de escrever, porque falaremos e seremos transmitidos na Terra inteira. Estamos em vias de perder a escrita. Também perdemos o cálculo. Rumamos para sociedades em que haverá apenas alguns indivíduos extremamente competentes, astuciosos...
BM | Qual será o perfil deste indivíduo?
PG | Um sujeito que vai continuar se instruindo, apesar de os outros não serem mais sequer capazes de calcular, de fazer uma pequena divisão. Tal indivíduo pertencerá no futuro à classe dos patrões. Poderá então haver uma tirania decorrente do monopólio da ciência.
BM | O monopólio do raciocínio e da escrita...
PG | É possível, aliás, que nós estejamos entrando noutra civilização.
BM | A civilização da palavra?
PG | Da palavra registrada.
BM | Os que souberem escrever poderão se expressar melhor...
PG | Os que souberem escrever se tornarão deuses, chefes... Mas isso tudo supera a minha geografia. O fato é que o mundo desliza sob os nossos pés e pode ser que, em breve, não tenhamos comida por ninguém se interessar mais pelo cultivo do trigo. Pode haver uma crise e daí os países tropicais vão se beneficiar. Agora, produzem pouco, mas produzirão mais se o mundo precisar.
2. O DESTERRO | GERARD CHALIAND
Gérard Chaliand, francês de origem armênia nascido em 1934, é especialista em problemas políticos e estratégicos do mundo contemporâneo, particularmente nos chamados “conflitos assimétricos” (terrorismo, guerrilha etc.). Contribuiu substancialmente para a renovação dos conceitos de geopolítica e estratégia militar por ter pesquisado, durante quinze anos, os problemas políticos e sociais de 75 países – África, América Latina, Oriente Médio e Ásia Ocidental – e por ter vivido vários anos como observador de movimentos de guerrilha ou de zonas de guerra – Guiné Bissau (1964-1966), Vietnã (1967), Colômbia (1968), Líbano (1969-1970), Afeganistão (1980), El Salvador (1982), Peru (1985). É autor de obras políticas, de estratégia militar e de vários atlas geopolíticos e históricos, entre os quais Atlas dos impérios, publicado em Portugal, e Atlas stratégique. Géopolitique des rapports de forces dans le monde(“Atlas estratégico. Geopolítica das relações de força no mundo”), traduzido em diversas línguas. Pesquisador e conferencista independente, ele não se liga a nenhuma instituição, mas dá cursos e consultorias em vários países em sua especialidade. Lecionou na Escola Superior de Guerra francesa e é, desde 1984, consultor do Centro de Análise e Previsão do Ministério das Relações Exteriores da França.
BM | O senhor é de origem armênia. Seus pais escaparam do genocídio dos armênios pelos turcos, mas uma parte da sua família foi massacrada. Como foi que os seus pais e o senhor sobreviveram à imigração? Como eles foram acolhidos na França?
GC | Sou um exemplo de integração à moda francesa. Isso quer simplesmente dizer que sou francês. De origem armênia, claro. Fui educado numa escola laica e republicana e sempre me senti em casa na França. Meus pais se integraram bem e gostavam do país. Verdade que pertenciam à burguesia. O que mais me toca no meu passado é a lembrança da história dos massacres de 1915, que ouvi quando era criança. A memória do desastre calou fundo. Meu pai não chegou à França em 1922 por acaso. Conseguiu chegar porque o irmão mais velho dele havia lutado com as tropas francesas na Cilícia, antes de morrer valentemente com as armas na mão. Como meu pai falava francês e era farmacêutico, foi enviado para a França com uma carta do general que comandava as tropas – uma carta de recomendação para “o irmão do herói”. Ocorreu-me mais de uma vez que foi uma sorte ele ter migrado para a França. Minha mãe também já falava francês ao chegar, foi educada por freiras. Para eles, não houve problema de inserção, pois meu pai começou a trabalhar logo. No que me concerne, Paris é a minha cidade, e o francês é a única língua na qual sou capaz de escrever poesia.
BM | A imigração é, em geral, uma consequência do sofrimento. O que o senhor pode me dizer sobre isso?
GC | Para um observador sem a priori ideológico, o imigrante é um expatriado voluntário, à diferença do refugiado político – para quem já é uma sorte estar vivo e livre. Isso obviamente não quer dizer que o imigrante não teria preferido ficar no seu país se as condições se prestassem a tanto. Quando não, a partida é, em geral, uma boa solução. O fato de as circunstâncias serem difíceis – pelo menos para a primeira geração – é compreensível, e as dificuldades são vividas como naturais. As pessoas saem de países cujas condições de vida são duras e chegam a outros onde elas são melhores – Estados Unidos, Canadá, Austrália, França, Brasil, Argentina –, países geralmente mais democráticos do que os de origem. Claro que há o problema da língua, da necessidade de se adaptar a uma cultura nova, das condições difíceis de trabalho por causa da concorrência, pois os nacionais tendem naturalmente a rejeitar o estrangeiro. A xenofobia é a coisa mais partilhada no mundo. Em suma, o sofrimento é menos de ordem econômica – pois as condições de trabalho são piores nos países natais – do que de ordem psicológica, por causa do desenraizamento, da dificuldade de adaptação etc. Isso tudo é atenuado pelo reagrupamento comunitário da primeira geração, que partilha uma experiência e lembranças comuns. A ela se deve, em geral, a inserção no país, graças a três ou quatro décadas de trabalho duro, acumulação mais ou menos modesta e adaptação cultural mais ou menos bem-sucedida. O consolo desta geração está na esperança de uma existência melhor para os filhos. Isso posto, tudo depende da imigração: para os asiáticos, os japoneses e os chineses, no início do século XX, as condições eram muito difíceis pela rejeição racista – também motivada pelo fato de eles trabalharem por salários muito baixos. A segunda geração difere bastante da precedente – pelo domínio da língua e das normas culturais locais. Geralmente, ela rejeita ou tende a rejeitar a herança cultural e linguística da família e adotar o estilo da juventude local. Se o mercado de trabalho permitir, a integração se faz. Do contrário, a delinquência é uma resposta frequente. Quanto à terceira geração – como se vê nos Estados Unidos –, ela volta às raízes, entrega-se à busca de uma identidade mais ou menos perdida, mais ou menos mítica. Todos os desenraizamentos são complicados – tanto os do êxodo rural na época da industrialização quanto os da imigração –, porém se tornam suportáveis pela esperança de maior bem-estar. Nos últimos séculos, o balanço é positivo se julgarmos pela sociedade norte-americana, Austrália, França, Brasil e Argentina...
BM | Sobretudo para as mulheres oriundas de culturas opressivas...
GC | É verdade. A segunda geração de mulheres descobre uma liberdade nova, e elas não querem voltar para as normas da sociedade de origem.
BM | O século XX é um século de grandes partidas e separações. Por todas as razões possíveis: econômicas, políticas, étnicas, religiosas e ideológicas. Mesmo o século XIX não conheceu movimentos dessa natureza. Gostaria que falássemos sobre o fenômeno migratório até a guerra de 1914 – que inaugura o século XX – e também sobre o que ocorreu a partir de então.
GC | De 1800 a 1914, há dois grandes movimentos migratórios. O dos europeus, devido à exuberância demográfica da Europa, cuja população triplicou: 60 milhões de pessoas deixaram o continente para ir ao Novo Mundo. Por outro lado, há o dos chineses – 15 milhões – e o dos migrantes originários do Império das Índias – 7 milhões. Trata-se de mão de obra barata introduzida no mercado, na primeira parte do século XIX, por causa do fim oficial da escravatura. Esses fenômenos migratórios resultam em várias modificações. O desenvolvimento dos Estados Unidos, cuja população passa de 4 milhões em 1780 para 80 milhões em 1900. O fim das maiorias de índios (constatadas por Humboldt) numa grande parte da América Andina e Central. Os mestiços se tornam majoritários e os brancos, muito mais numerosos proporcionalmente do que no início do século XIX. Esse aumento numérico dos brancos ocorre sobretudo na Argentina e no Brasil – também no Chile e no Uruguai. A essas modificações se acrescentam o povoamento europeu da Austrália e da Nova Zelândia e a presença, em certos países coloniais, de minorias brancas mais ou menos duráveis – África do Sul, Rodésia, Quênia, Argélia.
BM | Os movimentos migratórios dependeram das leis nos Estados Unidos. Como foi isso?
GC | As imigrações de japoneses e chineses são recusadas nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália a partir do início do século XX. Mas eles continuaram a se instalar numa série de países: Malásia, Tailândia, Indonésia, Vietnã, Filipinas. Os originários do Império das Índias se instalaram nas ilhas do Oceano Índico, na África do Sul (Durban), nas Antilhas e nas Guianas. Quanto aos movimentos migratórios europeus, são excepcionalmente vigorosos entre 1880 e 1913. Depois, diminuem, devido às leis sobre imigração dos Estados Unidos (1920 e 1924). No dia seguinte à Segunda Guerra Mundial, os fluxos migratórios são retomados e se aceleram. A partir de 1965, há novas disposições legislativas nos Estados Unidos a propósito dos latino-americanos e dos asiáticos. Esse fenômeno é, por um lado, decorrente da inexistência de crescimento demográfico nos países ocidentais e, por outro, do crescimento demográfico extraordinário do Sul do planeta. A América Latina passa de 90 milhões em 1900 para 600 milhões em 1998; a África, de 110 milhões para 700 milhões; a população da China e da Índia quadruplica ou quintuplica no século. Assinalemos que só o Ocidente acolhe imigrantes. A Arábia Saudita, que emprega muitos deles – 50% da população ativa é estrangeira –, só os aceita por tempo limitado e sem a família. Sejam quais forem as críticas endereçadas aos países ocidentais, só eles permitiram até hoje a integração maciça dos estrangeiros como cidadãos.
BM | O cais do Havre, onde os migrantes embarcavam, era chamado Cais do Esquecimento. As separações irremediáveis do Havre ainda existem ou não?
GC | O domínio do espaço e das comunicações, a redução considerável do custo dos transportes mudam de maneira radical o fenômeno migratório, com exceção dos países onde não se pode circular livremente. A partida sem esperança de voltar – a não ser para morrer – é coisa do passado. Já não há separações absolutas. Mesmo as pessoas modestas podem ir frequentemente para os países de origem.
BM | Tocqueville diz que são as religiões, e não os interesses econômicos, que separam os grupos humanos – os canadenses franceses católicos estão em luta contra os canadenses ingleses protestantes. Como a Europa cristã vai assimilar os muçulmanos originários da África do Norte, da África Ocidental, do Oriente Médio e do Paquistão?
GC | A tese tocqueviliana é historicamente exata, porque o fator religioso é o fundamento da identidade dos povos até o surgimento do conceito de estado-nação. O ideal republicano, que é a base da instituição francesa moderna, nasce com esse conceito, que implica uma relação de identidade diferente e se expande, no século XIX, alcançando Europa, Oriente e Ásia, para depois atingir, no século XX, a África. Só que a identificação religiosa não desapareceu e ela desempenha um papel político – partidos religiosos israelenses, hinduístas militantes, fundamentalistas católicos. A identificação é responsável pela nostalgia de certos grupos em relação ao seu país de origem. Dos homens sobretudo. Tendo em vista o estatuto das mulheres na Europa ocidental, elas têm tudo a ganhar com as integrações bem-sucedidas.
BM | E a assimilação dos muçulmanos na Europa?
GC | Os casamentos mistos, embora relativamente limitados – e, em geral, de muçulmanos com não muçulmanas –, favorecerão a assimilação. Pode-se no entanto imaginar dificuldades por razões religiosas. A constituição de comunidades com integração de ordem econômica e autonomia institucional é desejada na França por certos núcleos militantes, que solicitam às prefeituras casamentos muçulmanos. Esses núcleos são constantemente realimentados por novos imigrantes, que podem ameaçar a integração. Existe o risco de o modelo francês não funcionar, e então teremos o modelo anglo-saxão: comunidades vivendo lado a lado sem partilhar nada e só tendo em comum as motivações econômicas.
BM | No plano étnico-religioso, a tragédia iugoslava poderia ter sido evitada? Ou tinha mesmo que acontecer?
GC | A guerra civil iugoslava só poderia ter sido evitada se as Nações Unidas ou os europeus tivessem acertado logo o reagrupamento das populações bósnias. A Iugoslávia é feita de restos de impérios, ela é um mosaico étnico e religioso. Quando o nacionalismo se exacerba, os ódios se impõem. Não adianta repetir que os grupos se deram bem durante séculos. O equilíbrio está fadado a se romper, porque está fundado na endogamia. Salvo no período de Tito – que não se fundava na etnia ou na religião, mas nas classes sociais –, ninguém no país se casava fora da sua comunidade. Quando a ideologia marxista-leninista soçobrou, o nacionalismo – versão ultrarradical – voltou à tona e os velhos ódios, às vezes seculares, às vezes mais recentes – como entre os croatas e os sérvios –, manifestaram-se. A tragédia da Iugoslávia estava inscrita na História. Ia acontecer, com mais ou menos vítimas. Como a tragédia está inscrita no Kosovo – onde os sérvios atacaram violentamente – ou na Macedônia. Se não aconteceu nada ainda, foi por causa dos soldados americanos.
BM | Seria possível traçar um perfil dos Estados Unidos nos próximos anos, tendo em vista a afluência dos latinos e dos asiáticos? Dizer ainda se a unidade linguística do país pode ou não ser contestada?
GC | O Census Bureau dos Estados Unidos publicou em 1995 uma projeção da população americana para 2050, que teria 47% de “não brancos” – 23% de hispânicos, 13% de negros e 11% de asiáticos. O inglês, em 1996, foi proclamado língua obrigatória ou oficial. Até então, estava implícito que, ao se tornar americano, o indivíduo adotava o inglês. Com o aumento do número de hispânicos – sobretudo mexicanos e, em número menor, centro-americanos –, o problema da língua se coloca. E no fim quem é que vai ganhar? O número, possivelmente. O bilinguismo se tornará então uma realidade mais importante do que a legislação... Mas a força dos Estados Unidos está em não depender, no plano migratório, de uma única comunidade linguística ou étnica. E os “brancos” continuam a difundir o modelo americano. Seja como for, numa parte do país, é preciso estar atento à pressão hispânica.
BM | O racismo nos Estados Unidos está em vias de diminuir? Ou ele se exacerba por causa das migrações recentes de que falamos?
GC | Na minha opinião, ele não está em vias de diminuir. No que diz respeito aos negros, é estável, grosseiro e hipócrita, apesar dos esforços oficiais – as quotas, a presença negra obrigatória nos filmes, a publicidade etc. No que diz respeito aos hispânicos, é menor no sudoeste do país, na Califórnia.
BM | O senhor acredita que a prática democrática, no sentido da democracia liberal, pode ser um fator de tolerância, de compreensão entre os grupos humanos diferentes que vivem num mesmo país?
GC | Estou convencido disso. Desde que as condições econômicas não se degradem.
BM | Pode-se imaginar que um Estado tome decisões a propósito da sua quota de imigração com base em critérios estritamente religiosos?
GC | O Estado de Israel procede assim. Qualquer Estado muçulmano poderia fazer a mesma coisa. Um Estado ocidental, em princípio, não faz...
BM | As sociedades são mais ou menos assimiladoras. Algumas aceitam o pluriculturalismo, como os Estados Unidos e mesmo a Inglaterra. Outras, como a França, tendem a assimilar o imigrante. Qual dos métodos é o melhor?
GC | Para mim, o modelo francês, integrador, é ou era até recentemente tão bom quanto possível. Não gosto muito dessas sociedades onde há guetos, onde os membros de uma comunidade só se casam no interior dela e só encontram os de fora no trabalho. Porém, o modelo que prevalece em todos os países anglo-saxões é esse.
BM | Como o senhor vê os vinte primeiros anos do século XXI no que diz respeito à migração?
GC | As correntes migratórias vão continuar. O problema todo é o ritmo. Na França, por exemplo, 100 mil ou 200 mil a mais por ano – o que, em vinte anos, significa 1 milhão ou 2 milhões. Em 1800, os europeus representavam 18% da população do globo e, em 1900, 33%.
BM | As emigrações extraeuropeias se instalam, como as outras, nas cidades. Isso pode criar tensões, há riscos de explosão urbana, análogos aos de Los Angeles (Watts), por exemplo. As perturbações dessa natureza, que configuram uma guerrilha urbana, serão frequentes no século XXI?
GC | O fenômeno migratório vai se dirigir naturalmente para os grandes centros urbanos e haverá tensões como no século XIX na Europa durante o êxodo rural. Acho, no entanto, que podemos temer mais um aumento da delinquência ou dos atos de violência coletiva do que as guerrilhas urbanas. Estas serão raras. Em contrapartida, nas sociedades liberais, nas quais a exclusão de uma parte não negligenciável da população está inscrita no sistema – ao contrário das sociedades mais preocupadas com a coesão social, como o Japão –, as relações rico/pobre serão mais e mais violentas. Haverá guardas nas casas. O Brasil, aliás, é um exemplo disso.
BM | O número de brancos diminui no mundo. Em 1800, eles eram 18%. Em 1900, 33%. No ano 2000, serão 18%. O general De Gaulle disse que a mestiçagem é o futuro do mundo. Como o senhor vê isso?
GC | A mestiçagem é mais aparente do que real. Historicamente, é um fenômeno involuntário. As duas grandes mestiçagens que o mundo conhece são a dos índios – o México se tornou o modelo – e a dos negros – o Brasil é o grande exemplo. Nos dois casos, a mestiçagem é de certo modo uma violência. O índio se torna mestiço submetendo-se às normas e à língua do branco. O negro gera o mulato ao se miscigenar com o branco, que em geral não se casa com ele. Não considero que a massa multiétnica que vejo no metrô em Londres, Paris ou Nova York seja mestiça. Os casamentos inter-raciais são relativamente raros na França e excepcionais entre os ingleses. Que eu saiba, a mestiçagem não existe nos países da Ásia ou da África. Em suma, as únicas sociedades efetivamente acolhedoras são as ocidentais – embora a gente possa criticar o racismo delas. O futuro da mestiçagem parece longínquo.
BM | O seu ponto de vista não é o de Gilberto Freyre...
GC | A tese de Casa-grande & senzala sobre as relações raciais no Brasil me parece exagerada. Claro que a sociedade brasileira é infinitamente mais aberta racialmente do que a dos Estados Unidos, onde o próprio conceito de mestiço não existe. Nos Estados Unidos, um negro é um negro. Ele não é um “mulato”. Queiramos ou não, o fato de que a maioria dos pobres – sejam negros, sejam mulatos – cria uma situação de desigualdade que não deixa de ser racial por ser social. Até quando o samba e o Carnaval farão esquecer as frustrações? Claro que, no Brasil, à diferença dos Estados Unidos, não existe “fixidez da identidade racial”. A identificação racial no Brasil para um indivíduo que tem traços negros pouco acentuados também depende dos critérios sociais (diplomas, poder de compra etc.). Porém, o ideal para muitos continua a ser o branqueamento. A categoria “branco” se encontra no ponto mais alto da escala, e a categoria “preto” bem lá embaixo. Os fatos são esses. Eu me limito a constatar. A realidade racial no Brasil é mais complexa do que as teses oficiais permitem supor; ela é uma das causas essenciais das disparidades socioeconômicas entre brancos e negros. O número muito limitado de negros que ocupam altas funções na administração, no exército, nas empresas atesta a realidade do racismo. A própria publicidade sublinha a primazia do tipo ideal branco. Na verdade, o negro no Brasil é simultaneamente integrado – quando sobe socialmente ou se casa com branco – e rejeitado, sem que a rejeição seja explícita. A miscigenação, tão cara a Gilberto Freyre, foi marcada durante o período da escravatura pela superioridade do homem branco ou a inferioridade da mulher negra. Isso posto, há, no Brasil, uma relação inter-racial infinitamente mais liberal do que a dos Estados Unidos.
BM | Parece-lhe absurdo pensar que, no fim do século XXI, já não haverá brancos no Brasil?
GC | Assim como a gente vê surgirem no Brasil ativistas negros, os do Movimento Negro, por exemplo, que não querem erigir a mestiçagem em modelo, podemos imaginar uma endogamia mais forte entre brancos no próximo século. Não vejo os brancos desaparecerem no Brasil e, menos ainda, deixarem o controle das esferas essenciais. Terão, no entanto, que reforçar a sua aliança com outros grupos minoritários. Isso é uma hipótese, claro. Tudo depende do crescimento econômico, porque a democracia e a abertura requerem prosperidade.
Betty Milan (Brasil, 1944). Romancista, ensaísta e dramaturga. Colaborou nos principais jornais brasileiros. Sua bibliografia inclui títulos como O papagaio e o doutor (1991), Paris não acaba nunca (1996), Fale com ela (2007), e Quem ama escuta (2011). Contato: bettymilan@free.fr. Página ilustrada com obras de Kurt Seligmann (Suíça), artista convidado desta edição de ARC.
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equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES | MILENE M. MORAES
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