Gosto de construir Universos que depois se desfazem. Gosto de vê-los a “descolarem-se”, e gosto de ver como as personagens nos meus livros lidam com este problema. Tenho um amor secreto pelo Caos.
Philip K. Dick
Philip K. Dick, escritor norte-americano, nascido em 1928 e falecido em 1982, é um dos autores mais importantes do chamado pós-modernismo, tendo vindo nos últimos anos a ter um reconhecimento crítico e académico que não possuiu em vida, e que é exemplificado da melhor maneira através das recentes reedições das suas obras, como na coleção da influente e canónica Library of America, que já dedicou dois dos seus volumes aos livros mais importantes de Dick, tais como “Do Androids Dream of Electric Sheep?", traduzido em Portugal como “Blade Runner – Perigo Iminente” e adaptado ao cinema na obra-prima de Ridley Scott, “Ubik”, “Os Três Estigmas de Palmer Eldritch”, “Flow My Tears, the Policeman Said/Vazio Infinito”, “O Homem do Castelo Alto”, “A Scanner Darkly”, traduzido e filmado como “O Homem Duplo”, por Richard Linklater, etc.
Curiosamente, para um escritor que no início da sua carreira teve de escrever centenas de contos e dezenas de romances para pagar as contas e as pensões de alimentos das suas ex-mulheres, a sua obra tem sido “minada” pela máquina de Hollywood (além dos filmes já mencionados, destacam-se “Total Recall/Desafio Total”, de Paul Verhoeven, “Relatório Minoritário”, de Steven Spielberg, “Screamers - Gritos Mortais”, “Impostor”, “Next - Sem Alternativa”, “Paycheck/Pago para Esquecer”, “The Adjustment Bureau/Agentes do Destino”), que geralmente aproveita apenas as suas ideias gerais, os seus conceitos extremamente originais, mas deixa de fora o intenso questionar da noção de realidade, do que significa ser humano, e também a forte empatia com as suas personagens, geralmente trabalhadores e pessoas comuns, mas que têm a coragem de questionar o que se passa à sua volta.
UM ESCRITOR VISIONÁRIO E A SUA VISÃO DA REALIDADE | O tema deste trabalho, e que demonstra o porquê do pós-modernismo e dos escritores atuais, e não apenas os de Ficção Científica, usarem e aproveitarem os conceitos centrais da obra de Dick, cada vez mais atual, é o de compreender o que é a nossa Realidade, percebida como tal pelos nossos sentidos, e o que poderá ser um mundo que não é mais que um simulacro, uma simulação, virtual ou provocada pelos sentidos, ou através de fenómenos que não são facilmente explicáveis:
“Talvez cada ser humano viva num mundo único, um mundo privado, diferente daqueles habitados e experimentados por todos os humanos… Se a realidade difere de pessoa para pessoa, podemos falar de uma realidade singular, ou deveríamos pelo contrário falar de realidades plurais? E se há realidades plurais, haverá algumas mais verdadeiras (mais reais) do que as outras?” (Akgiray, 2004: 6).
Andrew M. Butler, na sua obra sobre Dick, descreve um episódio ocorrido com o escritor, e que todos já experimentámos, uma ou outra vez na vida:
“Entro na cozinha para pôr a chaleira ao lume. É de noite, por isso tento alcançar o interruptor de luz, à minha esquerda. Tacteio a parede um bocado, mas ainda assim, não o consigo encontrar. Olho com mais atenção a parede, e nada. De repente, apercebo-me que o interruptor está no outro lado da porta, sempre esteve do outro lado, embora me consiga lembrar, com toda a certeza, que houve uma altura em que o interruptor não estava nesse lado da parede…” (2000:7).
O título do capítulo inicial do livro de Butler é indicativo desta faceta da obra de Philip K. Dick: Para Além do Véu. Na sua obra, e para as suas personagens, a realidade está sempre sujeita a revisão.
Dick é o poeta laureado das falsas memórias e das falsas experiências. Várias vezes, as suas personagens consomem drogas alucinogénias que os levam até uma realidade diferente, a estranhos lugares, e no final do livro, o leitor nunca está certo de que as personagens voltaram à “sua” realidade. De facto, nem as próprias personagens sabem em que realidade estão. Ou então, as personagens de Dick vivem num mundo perfeito, com vidas perfeitas, apenas para se aperceberem, num golpe do destino, que essa realidade é uma ilusão, que o mundo é um palco e que as pessoas nele são meramente fragmentos da imaginação, como escreveu Shakespeare.
Mas Philip K. Dick está também interessado na natureza da nossa definição de Realidade. Como Butler explica:
“Serão tudo e todos os que vemos na televisão algo de real? Afinal, muitas das estrelas que vemos na televisão não envelhecem. Poderá esta ubiquidade ser explicada pelo facto de serem na realidade androides, simulacros, programados para nos venderem comida de gato, e manter-nos a todos hipnotizados com maus concursos, esperançados em obter produtos de consumo que nunca ganharemos, e sermos ricos para além dos nossos sonhos?” (2000: 8).
Mesmo com tantos significados dúbios e realidades que poderão não o ser, há alturas em que os seus protagonistas têm de acreditar que a sua realidade é a verdadeira realidade. E depois, têm de aguentar com todas as suas forças, quando o oposto prova ser verdade.
COMO CONSTRUIR UM UNIVERSO QUE NÃO SE DESFAÇA DOIS DIAS DEPOIS | Philip K. Dick, além dos seus livros de Ficção Científica, Fantasia (e alguns sobre a realidade contemporânea da América nos anos 50 e 60), foi sempre um estudioso muito sério de Filosofia, de História da Religião, da forma como o sobrenatural e o não explicado entram nas nossas vidas, tendo escrito extensas notas sobre Filosofia Grega, a História de Roma, Teologia, Cosmogonia e Cosmologia.
Este interesse em compreender um universo que o desafiava e o deslumbrava, está presente na maioria das suas obras, mas principalmente nos seus artigos, discursos e cartas.
O texto fundamental para compreender a visão de Dick sobre o mundo e sobre a natureza humana, é o célebre discurso que fez em Metz, na Conferência de Ficção Científica de 1978, intitulado “If you find this World bad, you should see some of the others/ Se acham este Mundo mau, deviam ver alguns dos outros”.
Nesta palestra, que na altura lançou o mundo literário da Ficção Científica num turbilhão, Dick apresenta várias teses, como a dos mundos simulados, mundos falsos, mundos alternativos, de dimensões que se sobrepõem umas às outras:
“Proponho-vos pensarem que a criação destes chamados “presentes alternativos” estão continuamente a ter lugar. O próprio facto de conceptualmente conseguirmos lidar com esta noção – ou seja, aceitá-la como uma ideia plausível – é o primeiro passo para conseguirmos distinguir esses processos por nós próprios (…) Mas provavelmente, tudo o que conseguiremos serão vestígios de memórias, fugidias impressões, sonhos, nebulosas intuições de que de alguma maneira as coisas eram diferentes – e não antigamente, mas agora” (Sutin, 1995: 242).
REALIDADE OBJETIVA E REALIDADE SUBJETIVA | Numa das suas histórias mais influentes, “The Electric Ant/A Formiga Mecânica”, a personagem principal, Garson Poole, depois de ficar magoada num acidente do qual não se recorda, acorda num hospital com um braço mecânico, e descobre que o que perceciona à sua volta não é mais do que um produto de uma máquina cibernética dentro do seu corpo, que transmite para o seu cérebro impulsos que determinam o que para ele é a “realidade”.
No final deste conto, Poole pretende sentir tudo o que o rodeia ao mesmo tempo:
“Tenho a oportunidade de experimentar tudo. Em simultâneo. Conhecer o Universo na sua totalidade, de estar momentaneamente em contacto com toda a realidade. Uma composição sinfónica a entrar no meu cérebro, fora do Tempo, todas as notas, todos os instrumentos, a tocarem ao mesmo tempo. E todas a s sinfonias, ao mesmo tempo” (Dick, 2002:330).
Depois desta experiência avassaladora, Poole tem uma “sobrecarga” de sensações e emoções, e desaparece dentro do computador que afinal albergava a sua “consciência”, durante todo o tempo em que pensava que estava vivo. Ao mesmo tempo que Poole desaparece, toda a sua realidade e as pessoas que conheciam, começam a ficar translúcidas e a desaparecer.
Dick tenta, no espaço de poucas páginas, chegar ao âmago da noção de “Realidade”, que ele definiu como “Algo que, no momento em que deixamos de acreditar nesse algo, não desaparece” (Sutin, 1995: 263).
Nas palavras de Poole, “A realidade objetiva é uma construção sintética, que lida com uma universalização hipotética de uma multitude de realidades subjetivas” (Dick, 2002: 331).
DROGAS, ALUCINAÇÕES E A DEMANDA DA REALIDADE | No discurso de Metz, Philip K. Dick leva ainda mais longe a sua demanda pela realidade, descrevendo as diferenças entre o reino empírico, o reino dos sentidos e o reino arquétipo que existe por detrás do véu:
“Podemos sonhar com pessoas ou lugares que nunca vimos, de forma tão vívida como se os tivéssemos na realidade visto, na realidade conhecido. Mas não saberíamos o que fazer desta sensação (…). A nossa única e pronunciada impressão seria, provavelmente, a de que já tínhamos feito o que estávamos a fazer naquele momento, que tínhamos vivido um momento anteriormente. (…) Teríamos a impressão avassaladora de que estávamos a reviver o presente, precisamente da mesma maneira, ouvindo e dizendo as mesmas coisas…” (Sutin, 1995: 243).
Philip K. Dick usou o reino da especulação para explorar a natureza da Humanidade e a sua nunca-terminada interrogação de si própria. É difícil encontrar um escritor mais pós-moderno que Dick, que nos fala do paradoxo em que vivemos, ainda hoje, no mundo moderno.
GASPAR GARÇÃO (Portalegre, 1974). Licenciado em Jornalismo e Comunicação pela Escola Superior de Educação de Portalegre e mestrando de Jornalismo, Comunicação e Cultura na mesma entidade. Dedica-se à análise da ficção científica nos seus diversos ramos, é autor de Relance sobre o humano na literatura de antecipação. Escreveu ainda Charlie Chaplin e o mito de Charlot. Orientou ciclos cinematográficos sobre Ficção Científica e sobre aspectos dos primeiros anos do cinema mudo. Contacto: ggarcao@hotmail.com. Página ilustrada com obras de Leonardo da Vinci, artista convidado desta edição de ARC.
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