terça-feira, 25 de novembro de 2014

JOAQUIM SIMÕES | Encontros com Nicolau Saião






Este questionário/entrevista resultou de conversas tidas através do tempo em diferentes circunstâncias. Congeminado em projecto em momentos de jovial confraternização, umas vezes de longe outras de mais perto, andou alguns meses em stand by e só viu a sua concretização ganhar corpo há um par de dias.
Da sobreposição alternada de uma garrafa e de um telefone poderá surgir um fogão alquímico? Só a quem nunca sequer suspeitou da existência de praias surreais poderá parecer bizarro tal resultado. O telefone transporta a voz do náufrago da era moderna para as paragens do convívio que a distância ou o isolamento lhe fez perder, amenizando-lhe e enriquecendo a ausência forçada — assim substituindo, com vantagem, a garrafa cheia com a carta da esperança do milagre do reencontro. A garrafa, quando o reencontro se dá, essa transforma-se numa espécie de depósito onde as ideias e as vivências se transmutam numa espécie de vinho envelhecido, que faz brilhar ainda mais a mente e as palavras que ela origina.
Vertido da garrafa, primeiro, temperado pelo telefone, depois, redefinida a ligação dos inúmeros elementos em ligações mais ou menos previsíveis ou inesperadas numa espécie de petisco degustado entre amigos, o questionário que apeteceu para esta entrevista visa apenas e tão-somente uma nova garrafa.
Achámos por bem partilhá-la. É a nossa maneira de ir recheando a Eternidade.

Manuel Bolinhas (MB) | O que entende o surrealista Nicolau Saião por realidade?

Nicolau Saião (NS) | Dito de modo sucinto, o que se apreende através dos sentidos mas duma forma alargada. Sem entraves absurdos ou inconsequentes.
Naveguemos um pouco mais fundo: o que se apreende se os nossos sentidos não estão bloqueados pelos mecanismos do hábito e da obrigatoriedade incrementados e sustentados pelos manejos de uma sociedade controlada por indivíduos, grupos ou instituições que visam a sufocação, quando não mesmo a extinção, do pensamento autónomo e criativo, o atravancamento das grandes vias mentais por onde passam a curiosidade de espírito e a sua independência que são as que propiciam o desejo da liberdade de expressão, bem como de investigação dos ritmos do mundo e o livre relacionamento entre os seres e destes com o universo que integralmente os rodeia, sublinho, por fora e por dentro.

MB | E como intuía essa realidade numa infância em que o realismo lhe puxava pelos calções e disputava o pião?

NS | O realismo não é só o que faz parte do quotidiano que se observa nas nossas horas despertas, mas também o que existe à nossa volta e capturamos mediante o inconsciente e que com enorme frequência se mistura com o outro. Digamos que funciona como uma viagem incessante e que não se separa, nem deixa que a separem, do que é visível e do que, parecendo fazer parte do invisível, está de facto intimamente ligado aos dois.
A infância, não o esqueçamos, é algo que apesar de ter sido eventualmente atravancado pelas caquexias circundantes, continua a sentir-se como um território cheio de encantos. E ainda que um pretenso realismo (o “realismo” que certa gente tenta propor como o único possível) queira fazer-se passar por uma totalidade, ele é apenas uma parte do que ao ser humano em geral, à criança e ao muito jovem em particular, serve de continente.
Digamo-lo duma vez por todas: o realismo, o verdadeiro realismo, o que abarca esse existir global, não tem mal nenhum — antes pelo contrário. Aliás, o surrealismo é esse intercâmbio incessante entre, como diz o postulado alquímico, o que está em baixo e o que está em cima para que se faça o milagre de uma só coisa.
E acrescentarei: por vezes também se tenta fazer passar por surrealismo, em oposição ao realismo “coerente”, o destrambelhamento de frases, o acúmulo de imagens desconexas e sem sentido que, na verdade, mais não são que maneirismo pedante de sujeitinhos com a mania dos monstros e de cultores da aldrabice descarada, afivelados com intenções confusionistas de artilhadores “artísticos”. Que ora armam em dadás retardados ou em imagistas tão enjoativos e ridículos como aqueles.
Refutamos liminarmente essa tentativa de proximidade. Definitivamente, não comemos desse pão.
Não podemos esquecer que o surrealismo não tem a ver apenas com o automatismo psíquico (psíquico, sublinho), mas com o humor (ora negro ora colorido…), com a crítica liberta de entraves necrosados, com o amor e a liberdade de investigar os grandes temas da vida, tanto os que se adquirem mediante observação sensata e normal em qualquer ser não pervertido ou jugulado pelos vários fideísmos, como os que necessitam de uma linguagem científica, mas sem preconceitos ou superstições.
 O surrealismo que o é não pode consentir que o afastem dos conhecimentos e descobertas que entretanto se foram adquirindo, seja no sector da astronomia, da física espacial, da medicina, etc. Procurar saber, em suma, o que são os poderes do Homem e o que são os perfis dos deuses (ou assim chamados), sem se deixar pear pela repressão dos que tentam exaurir ou punir essa feição prometaica. Como vamos defrontar-nos, isto como exemplo liminar, com os problemas que nos coloca, por um lado, o superpovoamento e, por outro, a extinção de espécies — o que dará uma assustadora ideia do que poderá suceder à humanidade num futuro que muitos olham como não tão distante assim.

MB | A paisagem de Portalegre que via no espelho frente ao qual trabalhava a melena adolescente mostrou-lhe mais ou melhores coisas do que qualquer outra?

NS | Faço questão, em primeiro lugar, de dizer que a minha infância e adolescência decorreram de forma a possibilitar-me que na idade adulta e agora, na idade madura, tenha guardado delas um profundo reconhecimento e uma profunda saudade.
Tive a sorte de ter progenitores compassivos, esclarecidos e bondosos no âmbito duma família funcional e isso permitiu-me progredir sem traumas através desses tempos juvenis e dos que se lhe seguiram.
Tive portanto um relacionamento afectuoso com as pessoas e com a Cidade que, para mim, foi sempre um lugar de comprazimento (de aventura, de sonho, de incursão no conhecimento que se extrai dos anos e da existência).
Claro que por vezes tive de me defrontar com factos penosos como, por exemplo — mas isto já na idade madura — actos de difamação e de calúnia agravada por parte dum par de sujeitos que mesclavam a mediocridade com a maldade e a inveja filhas da sua personalidade distorcida e mesquinha. O que aliás foi equacionado pelo tribunal que, em audiência de juízo, os condenou a todos. (O Sistema Judicial, que no nosso país é comprovadamente o cancro que está orientadamente a destruir a democracia possível, felizmente ainda tem em si magistrados dignos e que, em instâncias de relação, emendam o que outra gente desonesta ou incompetente tenta obscurecer de maneira lamentável).
Em suma: a minha Portalegre, que naqueles anos de juventude para mim era um picolo mondo, não a deixo, nunca a deixei, ser inquinada por gente ou por colectivos nefandos.
Estive em muitos lugares — muitos deles belíssimos — de várias partes do vasto mundo (e gostaria que tivessem sido mais). Mas regressar a Casa, à minha casa e à minha região, foi sempre uma alegria que sem quebras tem permanecido em mim.

MB | Quais foram e são as grandes paisagens da realidade real da sua vida?

NS | Creio que sempre andei em estado de admiração para com o que me rodeia. Tudo me agrada e como que me espanta, desde as coisas da casa onde vivo e me são tão familiares até àquilo que vou vendo nos lugares onde me desloco, por onde passeio ou viajo. Apesar da sociedade pseudo-civilizada (nesta expressão, civilização não significa repressão do desejo e da autonomia pessoal) em que os diversos grupos de interesses (económicos, fideístas, políticos) finjam-se ou não humanistas, nos tentam encafuar prejudicando-nos sem remorsos, não abdico da alegria de viver.
Luto, como sempre lutei, pelo direito a ela. E uso de forma própria, sem abdicar da dignidade de estar vivo, das “armas miraculosas”, ainda que frágeis, que possuo. E que fui, digamos, tentando adestrar através dos anos.
A magnificência da música, da escrita, da pintura, do que contemplo e do que faço, todos esses momentos que se vivem e nunca mais voltam, são para mim essas paisagens a que alude. A meditação, as conversas com os outros, os pequenos instantes de felicidade…
Tudo isso tem sido fecundo material para encher uma vida.

MB | As palavras são como as sereias ou como as cerejas?

NS | Umas vezes como as primeiras, mas eu prefiro as que são como as segundas.
Dizia Chesterton que “Todo o encadeamento de palavras leva ao êxtase, todas podem levar ao país das fadas”. Essas sequências de palavras que se organizam em frases que juntam a justeza à imaginação forjadora de mais luz e não são mero pretexto para seduções espúrias e destrambelhadas, constituem verdadeiramente o eixo do mundo que liberta e não que está ao serviço da repressão camuflada, nomeadamente aquela que se disfarça de aparentemente livre ou progressista e apenas visa acorrentar o Homem a jogos aparentemente mais “modernos” mas na verdade inqualificáveis.
O surrealismo que eu perfilho, de que me reivindico, o que segue em direcção ao futuro salubre, recusa as palavras cantadas por essas sereias velhacas, que tentaram inclusivamente pela via da incoerência e de um discurso paranoide lançar a ideia de que a Voz surreal seria sem sentido, incoerente e arbitrária — uma espécie de pudim metafísico — para extinguirem aquilo que, acima de tudo, é uma actividade conceptual lúcida, verdadeiramente organizada e crítica que nada tem a ver com peralvilhices ou encenações de palhaços ricos ou pobres…

MB | A pintura é uma capa com que se enfeita algo ou uma decapagem para mostrar uma beleza que se encontrava coberta de sujidade e pó, esquecida ou posta de lado, embrulhada no Tempo?

NS | Posso dizer que a sua questão está excelentemente formulada? Embrulhada no Tempo, diz muito bem. Cabe então ao pintor, como um verdadeiro trabalhador braçal que num gesto resoluto junta acção e concepção, efectuar uma verdadeira limpeza do que foi posto de lado, depois de ter sido conspurcado e sulcado por regueiros doentios e por teias de aranha, pelos que visam transformar a pintura numa actividade descendente do espectáculo com que procuram confundir a visão clara e salutar da existência em todas as direcções.
O verdadeiro pintor não abdica de perseguir a originalidade, mais — a originalidade é algo que se lhe impõe nessa incursão, é algo que o cobre como uma luz, o que inclui também a penumbra criadora e repousante. Não há fórmulas — para quem é sério e autêntico nessa busca muitas vezes trabalhosa — para garantir negociatas, notoriedades e famas que muitas vezes só dependem de iletrados pretensiosos ou ricaços de letras-grossas.
O verdadeiro pintor, que no caso vertente tenha uma visão surreal da existência e da criação, não se atém a feituras “de escola”, mas usa os seus poderes interiores e exteriores para descobrir e encontrar. Como um demiurgo, ainda que sem perder a humildade daquele que busca, que procura, que tenta acrescentar um dado novo ao conhecimento, antecâmara da eventual e possível sabedoria.

MB | Definiria a guerra como “o mostrengo da realidade”?

NS | Que é um mostrengo não cabe dúvida… Fundamentalmente tem sido o monstrinho que se solta dos ninhos construídos pelas avantesmas da avidez manhosa, do cinismo dos poderosos, da crueldade dos que se cobrem com a sotaina da hipocrisia que tenta fazer da vida, do mundo da natureza, uma coutada para os seus vis interesses de casta ou de orientação. Tudo escorado pelos idiotas úteis cuja mentalidade foi capturada por esses fantasmas regimentais.
O que até é, convenhamos, dizer pouco…

MB | “O que não me mata, fortalece-me.”, dizia Nietzsche. A guerra constituiu, para si, a visão de uma realidade irrisória, de tão triste, que por isso mesmo reafirma ainda mais a visão surrealista?

NS | Com efeito estive, enquanto militar por imposição, num teatro de guerra, a hoje Guiné-Bissau. Tive momentos muito penosos e, talvez devido à maravilha da juventude, outros que me gratificaram e enriqueceram (o contacto com colegas, com pessoas e lugares dali, com realidades quotidianas nos momentos de folga e deambulação principalmente por uma cidade, Bissau). Conheci nesses tempos gente de uma dignidade a toda a prova, assim como outra na qual a estupidez e a canalhice sórdida se uniam da maneira mais deprimente.
Mas sim, essa vivência — e recordo que ela aconteceu entre os 21 e os 24 anos de idade — cimentou o meu sentir e a minha visão surrealista, pois ficou imersa num cenário ora dramático ora lírico (se assim me exprimo). E não esqueçamos que ela sucedeu num continente que já se descreveu como surreal, a África, um lugar, uma região e um universo muito próprios com os seus cheiros, as suas cores, os seus horizontes, o seu perfil humano e geográfico (as árvores, os animais, por vezes o inusitado de hábitos e de paisagens). De movimentos interiores e de realidades quotidianas…

MB | Que tipo de aleijões provocou na alma portuguesa a proverbial bota com que o falso beato Salazar subjugou o país, convenientemente escondido debaixo de uma sotaina? E como se apresentaram eles no rosto da cultura em Portugal e no rosto do surrealismo, em particular?

NS | A meu ver, o aleijão a que sagazmente alude teve como consequência misturar duma maneira inqualificável razão com desrazão sem se ter possibilidade de distinguir bem entre o que era uma e o que era outra. Isto tanto no campo da arte, como no da economia, da política, da ciência — em tudo enfim.
A consequência foi o atraso conceptual, o provincianismo assustador, o oportunismo de possuidores e a falta de caracter de despossuídos.
Isso fez com que o rosto do surrealismo estivesse sempre percorrido por sombras que tinham a ver com a pobreza (pobreza mesmo, se ler por exemplo cartas já publicadas, trocadas por protagonistas dos primeiros tempos, verificará que falavam incessantemente na falta de dinheiro que os oprimia e impedia de publicar normalmente o que criavam); com as questiúnculas provocadas por gente que ou procurava ir para outro patamar (e por isso perdia de vista que o surrealismo é uma busca interior honrada a favor dos poderes humanos de liberdade e dignidade despreconceituosa), ou tinha uma formação que se revelava autoritária ou intolerante ou pouco esclarecida e de pendor academizado.

MB | 40 anos passados, ainda se notam alguns deles ou, pelo menos, as suas marcas no presente e no futuro que talvez se possa prever?

NS | A meu ver notam-se, tanto mais que a sociedade lusa conservou certas características que fazem dela uma democracia apenas aproximativa, enquanto por outro lado agravou outras que dependem de ritmos já europeizados, ou mundializados, mas que são tão nefastos como o “orgulhosamente sós” do salazarismo apoiado por entidades fideístas reaccionárias e conservadoras, tendo do outro lado do espectro político-social formações de cariz totalitário que, também elas, visam mistificar os cidadãos e servirem-se deles para os seus fins.

MB | Agora a sério: gosta de futebol?

NS | O jogo, por extenso, é um dado claramente apelativo para o ser humano. Acompanhou o Homem desde os primeiros tempos e em todas as civilizações. Pertence à sua estrutura profunda. No que diz parte ao futebol, fenómeno filho da idade contemporânea, filho desta modernidade em que estamos inseridos, é efectivamente um fenómeno de massas e mobiliza o interesse e o apreço de milhões. O problema está em que perdeu a inocência dos primeiros anos e hoje é um negócio, aliás entendível, mas também um elemento de que os donos do mundo se servem para aprofundar a manipulação e a alienação dos seus apreciadores.
Do jogo gosto — quem não sentiu o entusiasmo de o praticar na infância e adolescência e, depois, de o ver em directo ou nas transmissões? Do que o rodeia e aquilo em que o transformaram para manipular as pessoas e enlouquecer os adeptos, obviamente não gosto mesmo nada.  


JOAQUIM SIMÕES (Portugal, 1950). Em 1979, publicou um livro de poemas em edição de autor, com prefácio de Manuel Grangeio Crespo. Entre 1980 e 1983 participou no projecto de teatro para a infância e juventude do Teatro do Nosso Tempo, em Lisboa. Em 1982, em parceria com o músico Francisco (Xico Zé) Henriques, constrói um espectáculo, Astrolábio, composto por canções feitas a partir de poemas seus. Entre 1989 e 2010, colaborou permanentemente em diferentes realizações na área da performance teatral. Em 2010, com Maria Morbey Henriques colaborou no espectáculo Banjazz — Um bichinho esquisito, levado à cena, em Fevereiro, no Centro Cultural de Belém. Contacto: aperoladanet@gmail.com. Página ilustrada com obras de Nicolau Saião (Portugal).

Agulha Revista de Cultura
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