terça-feira, 25 de novembro de 2014

PAULO SPOSATI ORTIZ | Thomas Rain Crowe e os Postais do Peru






1. A OBRA DAS CULTURAS ABERTAS

Eles dizem: “urwarmaki.” O que significa: “mãos de sangue.” E que mãos estão limpas, sem sangue, entre os que tomam as terras dos outros? (pg. 16, ‘Querido Nate’, “Postais do Peru”)

Quem sai de casa e deixa para trás tudo com o que conviveu, logo se lançando a uma terra diferente da sua, esse homem será um eterno aventureiro. Mesmo quando retornar, não será senão, entre conhecidos, o estranho, e um sabor de Ítaca a deixá-lo, para sempre, longe de seu doce lar. De agora em diante, talvez seu olhar somente sinta familiaridade em outro tão perdido quanto, turbulento espelho d’água no qual as origens, de repente, se tocam por estranhamento, por curiosidade.
Thomas Rain Crowe e seu livro “Postais do Peru”, lançado pela Sol Negro Edições em 2013, com apurada tradução de Márcio Simões, pertencem a esse lugar, por excelência utópico. Livro composto por poemas e breves cartas, apolineamente intercalados, sugere uma ondulação entre os versos, muitas vezes narrativos, e as anotações de viagem para amigos também artistas, elas, quase sempre, poéticas. Assim, o lugar debaixo de nossos pés muda de lugar. E o hibridismo não para aí: não contente em questionar o gênero em literatura, nosso autor avança nessa empreitada, fazendo a língua, aos poucos, em frangalhos, na qual torna palpáveis aqueles relatos, pois mescla a sua àquela língua nativa, num jogo pueril, a princípio, mais complexo a cada página folheada. Uma pequena amostra disso, extraída apenas dos poemas, está na compilação a seguir:

“An aurora borealis du Sud/ as we split distance”; “Red of cochinilla worm”; “I’m drinking chicha in the Cesar Vallejo Bar” e “on the chicheria wall”; “would be to grace the chicha with his name”; “In Spanish we have the spression ‘Yo no sé!’”/ In Quechua means ‘Imach Kampas!’; “Go slowly, slowly.../ Vámonos!”; “The big blue label on every bottle of water in Peru says: sin gas”; “and gallons of sin gas”; “CURANDERO”; “themestizo medicine man prepare a low altar”; “fetus of llama, starfish, colored fleece, corn, wayuro seeds, algae, magnetic rock, sugar, kaniwa”; “Place  onalpaca cloth”;“Papasllama fat and silver stars”; “like/ a puma / prowls near/ Intihuatana/ in clouds”; “where alpaca graze/ beneath/ Torreón door”; “The town the Quechua call Ollantaytambo”; “Somewhere that was now here when native people danced for days drinking chicha along this figures of animals and”; “Very poor. Barrios: cities of shrapnel”; “our soles for Inca Kola and chirimoya shaded by umbrellas from the noonday sun”; “a mestizo medicine man/ had told me that in Chinchero”; “With the curandero’s words still in my ears,/ I put down my axe”.

Repare que Crowe transtorna, com termos e expressões em espanhol, o fluxo da língua inglesa, confundindo a construção frasal com inserções, até sintáticas, desde a mera citação à inclusão selvagem de outro território em seu registro, e, distraído, recolhendo, da paisagem por que passa, objetos simbólicos deste lugar que não lhe pertence. No instante em que tais brincadeiras, bastante perigosas, se armam, o poeta remetente parece se transmutar no relatado, numa sutil vivacidade que exige de seus leitores uma cumplicidade de turistas literários, ou melhor, literalmente turistas no reino do símbolo, obrigados, cada vez mais, a se virar com o mínimo de familiaridade que lhe resta no subconsciente oral da linguagem.
O que deveria ser uma simples resenha ganha ares de pretensioso ensaio, sendo a questão por ele pressuposta maior que um simples relato. Voltemos um pouco no tempo, a fim de vislumbrarmos, de ombro a ombro, de que lugar, longe dos lugares familiares, vem esta proposta da palavra, alguns poderiam dizer, helenística.

2. CRIOULO É A RAIZ DA LIBERDADE

Prossegui até a cidade de Sevilha e encontrei três navios preparados para uma viagem ao Rio da Prata, uma terra nas Américas. Essa região, o rico Peru, que tinha sido descoberto alguns anos antes, junto com o Brasil, formavam um só continente. (pg. 43, ‘Capítulo 5, Primeira Parte’, “Hans Staden”)

O hoje conhecido spanglish, dialeto usado entre falantes de países latino-americanos residentes nos Estados Unidos, tem como vovô o pidgin, sistema linguístico rudimentar baseado na língua do colonizador, da Era das Grandes Navegações. Se desejarmos ser mais ousados, o Período Helênico seria o ancestral comum entre ambos, no qual a fusão de culturas distintas foi a forma encontrada para a manutenção de territórios conquistados. Porém, nossa embarcação não irá tão longe, capturada pelos descobrimentos portugueses.


Quando os comerciantes quiseram fazer suas transações nas novas plagas aportadas, se viram perdidos entre dois códigos e nenhuma moeda de troca oral, além de mímicas e prováveis tradutores repentinos; então, a zona fronteiriça entra em ação, a gestar acordos de comunicação econômica, abreviadas pela urgência, pelo desejo de ser entendido, mesmo que no gelatinoso desentendimento geral. Línguas, ao trocarem suas peças de lugar, questionam a hierarquia, até quando a diglossia subjacente ainda pretende afirmar uma distância politicamente correta. Já era: quando nos confundimos com alguém, ainda mais a partir da língua, o plano da sedução instaura outro reino, sempre contrário aos desafetos.
Mais ainda: a forma econômica da linguagem nesta barganha que os fatos nos impõem tem um fundo, por excelência, poético, de condensação criativa, nascida de um olhar em deslocamento. Seria essa a razão para Rimbaud, nos primórdios da literatura moderna & absoluta, inserir termos em alemão, em inglês, para o completo ódio dos franceses? No “Iluminations (Painted Plates)”, título já na língua de Crowe, há este desfile selvagem:

‘Being Beauteous’, “squares”, “wasserfall”, “confort”, “inquestionable” (criado por analogia à “unquestionable”, segundo Rodrigo Garcia Lopes), ‘Fairy’, “brick”, “embankments”, “pier”, ‘Bottom’, “strom”, “stock” e “spunk”

até nos depararmos com “Voici le temps des Assassins” quando todos os sentidos são distorcidos, pois a origem árabe do vocábulo “Assassinos” tem a conotação de “fumadores de haxixe”, os “hashashin” (segundo interpretação de Claudio Willer).
Se na lógica de Rimbaud o outro é eu, Thomas Rain Crowe toma partido de um spanglish às avessas, oinglañol, como cunhou Salvador Tió, linguista e humorista porto-riquenho, politizando poeticamente sua viagem, os relatos feitos a amigos e versos surgidos depois de sua temporada no Peru.
Leiam, no poema a seguir, demonstrações do que foi afirmado:

THE GUIDE
O GUIA
for David Machicao Oliveira
para David Machicao Oliveira

We are today in Ollantaytambo.
Hoje estamos en Ollantaytambo.
In this place was one Inca ruler.
Aqui tinha um soberano inca.
Whats happen?
O que houve?
I an going to tell you.
Voy contar a você.
Here, there are many walls.
Aqui, tinha muchos muros,
For szample… we are going to see
Por ejemplo… veremos
many big rocks. How they are made?
muchas piedras grandes. Como foram feitas?
No one can splain this. No one knows.
Ninguém puede explicar. Ninguém lo sabe.
These are not the same “muddy bricks”
Não são los mismos “tijolos de barro”
that are built the houses. No.
que se utilizan em las casas. Não.
These are especial rocks brought here
São piedras especiales trazidas aqui
from five or six kilometers away.
de más de cinco ou seis quilômetros de distância.
How these big rocks get here?
Como essas piedras grandes llegaron aqui?
No one knows…
Ninguém lo sabe.
In Spanish we have the spression “Yo no sé
Em español decimos “Yo no sé
In Quechua means “Imach Kanpas!
Em quécua se dice “Imach Kanpas!
No one knows…
Ninguém lo sabe...
What are know, is
Lo que se sabe, é
that the womens are never sleeping in this place.
que las mujeres nunca dormían aqui.
Only men, priests are living here.
Só los hombres, padres vivían aqui.
But you will see ˗̶  where this man sleepedd,
Mas verás ˗̶  donde dormían los hombres,
there was no bed.
Não había cama.
When I was a children, I
Quando era niño, eu
went to my grandmother’s farn.
ia a lo sítio de minha abuela.
And there, I was not sleeping on a bed.
E ahí, eu não dormia em la cama.
This is tradition, here.
É costume, aqui.
Sonetimes there are beds,
Às veces hay camas,
and sonetimes not.
às veces não.
Tomorrow, we can go to Cusco.
Amaña, vamos a Cuzco
In Cusco, there is this place: Sacsayhuaman.
Em Cuzco, tiene este lugar: Sacsayhuaman.
Some ’mericans call “sexy woman.”
Alguns americanos llaman “mujer sexy.”
Some rocks there, even bigger.
Hay piedras lá, incluso más grandes.
You will see. We are going to go there.
Ya lo verás. Vamos lá.
Is twelve thousand feet.
juna simi.” Significa “saído da boca do homem.”. (pg. 16, ‘Querido Nate’, “Postais do Peru”)

Seguindo a radical tradição rimbaudiana, nosso autor deságua na crioulização da literatura atual, em refinada conversa com o Henri Michaux de “Ecuador” (1929), exemplo a ser ampliado num dos tópicos à frente. E o que seria isso, crioulizacón lapsus litteris? O instante em que o eu-lírico decide abandonar os limites do próprio corpo e desafiar a improvável travessia pelo Outro completamente diferente, possível apenas na poética da possessão, distinta daquela que observa e reproduz uma cópia infiel.
Sabemos: o fundamento de qualquer representação é a imitação; se arte é fingir, com a maior eficiência, que a realidade apresentada não é ficção, o princípio racional da arte é a mentira, e a imitação é o instrumento mais perspicaz para confundir o receptor daquilo que se mostra. Porém, a arte nunca será veículo de realidade, se não comungarmos, com ela, a mesma mentira, fundidos na mesma crença, encantados pelo objeto, por que não, de adoração.
Na entrevista dada a Floriano Martins, Thomas Rain Crowe discorre sobre a importância que o sagrado ganhou ao longo dos anos (http://www.revista.agulha.nom.br/ag53crowe.htm):

FM Lamantia observa que no Surrealismo tudo começa com o sagrado, com a premissa de que poeta individualmente procura o velocino de ouro em si mesmo. O que procura Thomas?
TRC Eu penso que teria que concordar, amplamente, com ponto de vista de Lamantia, aqui. Eu não comecei como poeta pensando que tudot"> É cuatro mil metros.
No problem.
Não hay problema.
Is easy.
É muy fácil.
Today, we are climbing stairs.
Hoje, subindo escadas
Go slowly, slowly…
Lento, lento...
Vámonos!
Vámonos!

3. AH! COMO NOS SENTIMOS MAL NA MINHA PELE!

Nosso guia nos disse, hoje, que o verdadeiro nome do começava com o sagrado, mas com o decorrer do tempo eu passei a acreditar que, no fim, é o que é o mais importante. Que a poesia é parte de um ato sagrado, e tem implicações sagradas. Eu diria que, embora eu ame escrever poesia pelo puro prazer do ato, ao se levar em consideração o resultado, eu esperaria que meus poemas contivessem, aos olhos de meus leitores, algo de sagrado. E, sim, está tudo em torno da busca pelo “velocino” de ouro dentro de mim mesmo. Já que a verdadeira busca do poeta é encontrar a si mesmo ou a si mesma e encontrar o “ouro” (num sentido metafísico) na natureza de uma pessoa – para penetrar nesse veio e minerá-lo (escrever) em benefício de todos, não apenas para si mesmos.


Nesse estágio, a imitação não é apenas um instrumento adulto, leia-se domesticado, de representar realidades, mas possessão, como nas crianças, ao serem atravessadas pelo encantamento, quando não necessidade de se comunicar numa língua ainda desconhecida para elas, e suas mãos e seus rostos são papel em branco no qual se apresenta o sensível. Por isso, a primeira forma de reprodução foi nomeada de infiel, quando a finalidade é o que importa; no segundo caso, o meio é soberano, e todos nós seremos possuídos se experimentarmos, com ele, a impossível, mas provável, travessia real.
Se houvesse espaço e fosse lugar para isso, poderíamos dissertar sobre a diferença entre o teatro brechtiano e o artaudiano quanto a essa questão, exemplares das duas vertentes citadas, mas precisamos seguir em frente, voltando, novamente, alguns séculos.
Michel de Montaigne surpreende, em pleno século XVI, com sua visão do paraíso selvagem, em “Sobre os Canibais”, a Europa, acostumada, desde a Grécia Antiga, a retirar a alma de tudo o que lhe fosse estranho, dos negros às mulheres, escravos da concepção fundada na imagem e semelhança daquele que observa. Os bárbaros são, segundo o ensaísta francês, humanos como nós, e todos cruéis à sua maneira, diferente noutra chave àquela de Rousseau, cristã demais para um verdadeiro atravessador.
A antropofagia manifesta por Oswald propõe que a História seja feita por esses bárbaros, deglutindo a cultura estrangeira para a nossa própria interpretação, que o enredo de Hans Staden fosse levado às últimas consequências; houve instigante espetáculo, “Regurgitofagia” (Michel Melamed, 2004), numa tentativa de rever esta teoria hoje, saturada de informações e, quem sabe, estranha à dialética da colonização.
Creio na aparição de um bem-aventurado, aquele cuja sina é a de parodiar a linha evolutiva da História da Arte a partir do Paganismo literário, visão esta paralela à do cânone, num ideal romântico da singularidade, mas também verdadeiros criadores de problemas para o centro de domínio. Esses, sim, conhecedores da periferia da alma, não aquela geográfica e desculpinha para mantermos o velho jogo hierárquico entre vítimas e algozes. O Paganismo literário é, antes de tudo, libertação.

4. MINÚCIAS QUANTO À DESAPARIÇÃO

Com isso em mente, e inconscientemente, que seja feita a recepção, à porta de “Postais do Peru” de Thomas Rain Crowe, em forma da, até agora, prorrogada resenha.

4.1
Para um povo que não tinha linguagem escrita, o inca moderno é certamente apaixonado pela leitura! (pg. 11, ‘Querido John’)

O livro começa por um poema e termina por outro, emoldurando os demais, e deles separados. Entre eles, os cartões-postais são coligidos, logo em seguida complementados por um poema. E aquele primeiro, ‘As Luzes do Sul’, anuncia a ida para o Peru e o que reserva a travessia de avião, visão de cores de um “vão de arco-íris” também presente no “traçado dos tecidos quéchuas”.
Em ‘Querido John’, parte da perspectiva literária (livrarias, nome de escolas, poemas de Che escritos lá, pichações e escritor candidato à presidência) para fazer uma análise da capital do país e como a vida, flechada pela escrita, implica outra dimensão política. O nome do bar, em ‘Tomando Chicha...’, amplia a investigação da importância da literatura e a fama dos escritores, no caso, o do poeta peruano Cesar Vallejo.
Ao vermos as primeiras linhas de ‘Querido Nate’, adentramos, com Crowe, no universo histórico daquele país, e já percebemos como ele inverte os papéis, um norte-americano criticando seu país de origem ao tomar partido dos seus queridos estranhos, “os descendentes dos incas”, e o quanto o seu destinatário, também escritor e ativista, também é uma voz singular, com “sua decisão de ficar do lado dos povos indígenas”.
Em ‘O Guia’ (já inserido aqui, ao final do Tópico 2), sua voz se une à personagem do título da breve carta, a misturar uma língua com a outra, transferindo para a linguagem aquela perspectiva política libertária, de fundo poético.

4.2                                                      
Assim, suas vidas tornaram-se a ironia esquizofrênica de ter que andar, simultaneamente, em dois mundos. (pg. 20, ‘Querido Bobi’)

A religiosidade é o tema de ‘Querido Bobi’, o predomínio de igrejas católicas, monopólio da invasão espanhola, em detrimento da cultura inca, e a luz em Cusco, “irmã mais escura” da “italiana da Toscana”, “luz calvinista”; a “erosão de suas crenças espirituais indígenas” não se faz completa, pois “o conceito de ‘graça comum’ não se perdeu entre essas pessoas”, de “católicos pagãos, alheios à dor”.
Sin Gas’ disserta, feito crônica, sobre as águas engarrafadas, “um remédio católico”, “elixir hispânico” e a purificação pela qual foi obrigado a passar. Está em Machu Picchu, a “pequena cidade inca”, em ‘Querido Michael’ e fala das pedras sagradas e do calor que delas emana, segredo para a sua construção. Já ‘Curandero’ relata “o médico mestizo” e a oferenda feita “aos deuses do calor” por ele.

4.3
Um lugar para viver. Para se deslocar, lentamente. Para ser. (pg. 27, ‘Querido Ken’)

‘Querido Ken’ é para falar das montanhas do Peru, Huayana Picchu, e sua magia, como nas pinturas de Marc Chagall. ‘Machu Picchu’, precisa descrição do local, com a pena da imaginação, e um dos poemas mais bonitos.
Em ‘Querido Joseph’, Crowe foca as “trilhas incas” para “os templos elevados”, “nas colinas das cordilheiras e picos montanhosos”, e como “os quéchuas deixaram seu legado na pedra. Blocos esculpidos em proporção sagrada”, até o Ocidente o invadir e o Sendero Luminoso piorar mais ainda. ‘Um Caminho Iluminado’ é o primeiro acróstico do livro, feito com o termo Sendero Luminoso.
‘Querido Jeff’, carta mais longa, estabelece uma ligação entre “os povos andinos” e “os Kwakiutl”, com quem o destinatário viveu “como aprendiz de fabricante de máscaras e entalhador” ̶  nos informa o ‘Apêndice’ ao final do livro  ̶ , e o desejo por um futuro primitivo; também, “os antigos costumes dos quéchuas”, com suas plantas em Urubamba (gengibre, ají/pimenta vermelha, moonya/hortelã selvagem, cogumelos selvagens, buganvílias, bromélias, eucaliptos, bambuzais, rododendros) e tecelagem em Chinchero, com uma cor vermelha extraída da cochinilla no cacto palma, “sangue inca derramado nas mãos dos espanhóis”. Segundo acróstico, ‘Ollantaytambo’ é sobre a cidade inca.
Em ‘Querida Barbara Ann’, se detém nos inúmeros animais da região (alpaca, lhama, vicunha, puma, condor) e a força mítica deles. ‘Os Pássaros de Paracas’ prossegue na coletânea de bichos, tópica cena de guia turístico se gabando das riquezas de sua região, a nomeada península.
‘Querido Will’ avança mais um pouco ao arrolar as espécies, agora das Ilhas Balestas, também falando de ‘A Praia Berçário’ (analisado no Tópico 5), próximo poema, no qual descreve a relação entre mães e filhotes de leões-marinhos, com o ápice na belíssima conversa que as focas, mãe e filho, travam, em afetuosas glossolalias.

4.4
Onde as linhas se encontram. Onde a noção de Eu se torna Nós.  (pg. 48, ‘Querido Chandler’)

Em ‘Querido Chandler’, relata as ‘Linhas de Nazca’, também, em seguida, poema e terceiro acróstico, linhas estas que são “caricaturas estilizadas de animais encontrados, curiosamente, nas selvas peruanas” e a aventura dentro um avião monomotor.
Última carta do livro, ‘Querido Jack’ volta a uma leitura simbólica, mas irônica, das palavras, seja o nome do café ou do parque e as notícias que correm nos jornais no dia em que retorna aos Estados Unidos, enquanto suas últimas horas no Parque del Amor, ao lado de sua esposa, seja uma forma de voltar ao café onde se conheceram e se apaixonaram por meio do gosto literário de ambos, e assim tentando reverter simbolicamente a guerra que se iniciaria do outro lado do mundo.
Em ‘Pobreza’, quarto e último acróstico, Crowe descreve o aglomerado de corrupção e subserviência que existe nas estradas peruanas, para fechar o livro com ‘Morchellas’, poema de “volta ao lar”, torna a religar a sua Carolina do Norte com Cuzco e obedece ao “curandeiro mestizo” ao sentenciar “quando os beija-flores chegam/ é dia de sair e procurar morchellas”.
Mas você só saberá se ele o encontra lendo o tocante “Postais do Peru”.

5. PLANETAS SE ENCONTRAM EM EXPLOSÃO

Seu amor à linguagem guiando-o mais profundamente na luta. (pg. 15, ‘Querido Nate’)

“Saúdo-te apesar de tudo, país maldito do Equador” (‘Chegada a Quito’, como as demais), assim se apresenta ao novo lugar Henri Michaux, em “Ecuador”, no relato de viagem poético que recolhe. Diferente de Thomas Rain Crowe, o autor francês parte para a porrada, enquanto o norte-americano é doce em sua percepção. “Mas és deveras selvagem”, e Michaux concorda com Montaigne, selvagem também, e se indaga “Por que me bates com tanta força, ó meu coração?”, pois o primeiro estranho familiar com o qual topamos é o inconsciente, o outro em nós. Crowe, quando desce no Peru, desenvolve sua ligação a partir da escrita, e nela se vê, parte ideal do que nem ao menos em seu país de origem ocorre, ou seja, o país andino é seu lado inocente.
“A primeira impressão é terrível e raia o desespero” (‘La Cordillera de los Andes’, e as demais), declara o escritor francês, diante da singularidade geográfica, ao passo que o outro se deslumbra, como a cena dos “papagaios verdes luminosos”, que nunca viu “tal revoada incandescente de aves, nem mesmo em meus sonhos (‘Querido Michael’). Mas quando Michaux brinca que “Quem não gosta de nuvens,/ que não venha ao Equador./ São os cães fiéis da montanha”, Crowe prossegue, “As nuvens cobrem Huayna Picchu como uma mortalha  ̶  então são suspensas, como a capa de um mágico” (‘Querido Ken’). Tudo bem, os dois viram paisagens parecidas em locais próximos; mas estariam eles literalmente em conversa? “A altitude do local é de 3.000 metros, dizem/ É perigosa, dizem, para o coração, para o estômago, para a respiração/ E para o corpo inteiro do estrangeiro”, até poderia estar em “Postais do Peru”, embora pertença a “Ecuador”.
Sãos dois olhares distintos, porém se cruzam no estranhamento, na curiosidade, pois “Para entrar nesta cidade tivemos primeiro de pagar o tributo do rosto” (‘Miragem de uma Cidade Índia’); carregam a poética da possessão, com a sutil ressalva: entrega irrestrita, banhada posteriormente por uma desconfiança maior ainda. Enquanto um passa mal e crê que isso lhe ajude na purificação, o outro deseja o ódio, existente apenas nas grandes cidades.
E então chegamos a ‘Nasci Esburacado’, do Henri Michaux deste “Ecuador”, através do qual carregarei ‘A Praia Berçário’, do Thomas Rain Crowe de nosso “Postais do Peru”, a fim de que demos por finda esta mentirosa resenha, com cara de ensaio infinito, mas apenas tentativa de literatura comparada.  O autor francês dá o pontapé inicial com “Sopra um vento terrível./ É apenas um pequeno buraco no meu peito”, como se estivesse morto; teria sido baleado? A morte que o atravessa diz mais sobre a surpresa com que se depara, a de outra forma de existência, ao mesmo tempo em que define o limite europeu que lhe dita as regras culturais. Em Crowe, são “Centenas de leões-marinhos e filhotes recém-nascidos”, ou seja, o “Sinfônico som de canto/ mais alto que/ as ondas agitadas do oceano contra a rocha” é o da vida que se anuncia, não menos terrível que o sopro descrito naquele autor; note que o mar tem “ondas agitadas”, também um sopro caracteriza a cena, sopros os quais se tocam, ambivalentes bakhtinianos.
“Tu não és para mim, pequena cidade de Quito”, quando Michaux se descobre irredutível estrangeiro nela, não comungando com sua falta de inveja; não haveria semelhante mal-estar no condutor, ao notar “uma fêmea solitária e seu filhote”, a “assistir/ como a foca mais velha ensina a mais nova/ a nadar”? Porque haverá sofrimento neste aprendizado, feito de solidão e independência, como descrito por Crowe. “Ah! Como nos sentimos mal na minha pele!”, e o escritor francês, referindo-se ao Rimbaud do outro eu, sugere a poética da possessão, mais ainda, como se houvesse outro ser a nascer de si, mas sem sair, duas almas numa só, o que o autor norte-americano aprofunda com a espécie de glossolalia animal entre o bebê foca e sua mãe, onomatopéias do afeto, como o seriam a audição da língua indígena e tudo aquilo impossível a nós, decifradores compulsivos.
Michaux tenta explicar, “É à esquerda, mas não digo que seja coração./ Digo buraco, não digo mais, é a raiva e eu nada posso./ Tenho sete ou oito sentidos. Um deles o da falta./ Toco-o e tacteio-o como se tacteia madeira”. Eis o estrangeiro que se torna ao deixarmos o familiar em casa, rumo ao desconhecido que, desde sempre, nos habita, mas o afastamos, com trejeitos civilizatórios; afastamos o bárbaro com redobrada barbárie, a da língua possível, sem faltas, lacunas ou espaços, os do deslocamento. “Construí-me sobre uma coluna ausente”, e “O meu vazio é um grande devorador, grande esmagador, grande aniquilador./ O meu vazio é algodão e silêncio./ Silêncio que tudo detém./ Um silêncio de estrelas”, com o qual devemos arrematar, para inglês ver, Crowe sugerindo as palavras invisíveis dos animais que deveríamos ter a coragem de ser:
 
“The baby’s eeaarrppp! A kind of begging/ to let it climb up on the mother’s back/ But the mother dives, again, out of sight/ after a coaxing aarrpff./ The pup calls out a ‘come back,’/ as it chokes on water from the choppy waves./ Eeaar... ggcc... rrppp!/ The mother: aarrpff.../ The pup: eeaarr... ggugcc... rppp!/ The mother: aarrpff.../ The pup: eeaarrrppp!/ As we pull away, turning east,/ and head for land.”


Paulo Sposati Ortiz (Brasil, 1982) é autor do livro de poemas A diferença do fogo, formou-se em Letras/Linguística pela USP. Foi coordenador de grupos de leitura e produção de poesia (Poenocine, 2008, e Facas na manga, 2011) e participou do Programa VAI da Prefeitura duas vezes (“Do sarau às oficinas, das oficinas aos sararaus”, 2009; “Sarau: humildade, paixão e poesia”, 2012). Deu a oficina A poesia brasileira hoje em CCSP (2011), sendo também assistente de Claudio Willer na oficina A criação poética (2012), debatedor de ensaios do Teatro do Incêndio na peça São Paulo surrealista: a poesia feita espuma (2012), assistente de som dos programas de entrevista Tea for two (2012-2013) com Natália Barros e Zootropo (2013) com Rafael Spaca, câmera deEncontros com autores com Mona Dorf (2013). Escreve nos blogs C.I:P.A. (Centro Internacional: Poesia Amanhã) (coletivo) e A diferença do fogo (pessoal), e publica ensaios e poemas em Cronópios, Mallarmargens, dEsEnrEdoS (virtuais), Grito Cultural e Polichinello (impressos). Além de ter feito parte da 41ª e 54ª edições como convidado, foi curador em 2013 das Quintas Poéticas da Editora EscriturasContatopaulo_sposati@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.


Agulha Revista de Cultura
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