Mário de Andrade é o poeta pederasta – quando encarnado na vida poética de Roberto Piva. Lá está ele no Largo do Arouche paquerando colegiais que saem das escolas; ou nas lassidões do Cambuci delirando na Alameda dos Beijos da Aventura. Na imaginação excitada de Roberto Piva, ambos poetas transam adolescentes numa bacanal no Parque do Ibirapuera e saem de mãos dadas noite afora. Juntos na poesia, juntos na orgia, juntos na pederastia.
É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa. No início dos anos ‘60 era comum uma retomada da fase heroica do modernismo. A verve de Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário de Andrade – muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento.
Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes[1], a tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas conversas populares – o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade do poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos anos ‘60.
Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar.
É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para tanto, centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San Paulo’s Improvisation (1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera(1963).
A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961). Já neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho inicial do último poema:
SAN PAULO’S IMPROVISATION
“Ruas do meu São Paulo,
A culpa do insofrido,
Onde está?”
MARIO DE ANDRADE
De um bar qualquer
Do Largo do Arouche
assisto São Paulo passar dentro de mim
Imerso na paisagem cinza-úmida
pela “água-benta das garoas monótonas”
como disse Mário de Andrade.
Do bar recorto no asfalto umedecido
o olhar dos pederastas
mariscando colegiais farfalhantes nas esquinas[2].
[…]
A cidade atravessa o poeta imerso em sua “paisagem cinza-úmida”. Um cinza que opera desde dentro, com a moral da “água-benta das garoas monótonas”. São características da poesia de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a fusão entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista empresta ainda os versos da epígrafe, onde se pergunta: onde está o “amor vivo”, o “amigo”, a “culpa do insofrido”, nas ruas de São Paulo? [3]
Essa busca do “amor vivo” colide com as convenções da cidade. É exatamente em Tristura, poema dePaulicéia Desvairada, que Mário de Andrade descreve o matrimônio do poeta com a cidade: a “água-benta” pode ser lida como símbolo de sua moral conservadora, tão repetitiva quando a garoa que representa São Paulo. Se o poeta busca um amor vivo, a cidade só lhe oferece a relação contratual do casamento – o amor encarcerado na moral patriarcal. Como filha, poeta e cidade tem a “Solitude das Plebes” – uma pobre monja com os cabelos cortados – aqui mais uma imagem de castração à sensualidade.
A filha monja é mencionada ainda no poema A Caçada, em que o poeta se queixa do vento gelado da cidade que repeli “os poetas, os moços e os loucos”, reduzindo a vivência arlequinal da poesia a um ideal ilusório. Aí surge uma caçada, numa “deliciosa mania” do companheiro modernista: “- Abade Liszt da minha filha monja, / Na Cadilac mansa e glauca da ilusão, / passa o Oswald de Andrade / mariscando gênios entre a multidão!…” [4]. O músico abade, representando essa aliança da arte com a moral cristã, é contraposto ao companheiro modernista. É esse último verso que aparece parafraseado no poema de Roberto Piva. Talvez Oswald mariscasse “gênios” para uma renovação da arte nacional, encharcada pela água-benta. Mas em Piva, são pederastas paquerando colegiais. A renovação viria não pela genialidade, mas por um erotismo transgressor.
Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e seus influxos do inconsciente:
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos [5]
Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre os pederastas mariscando colegiais?
“Colegiais infantes” aqui, “colegiais farfalhantes” acolá – ambos os poetas parecem tê-los observado bem. A imagem de Mário de Andrade os coloca de mãos dadas, num clima ao mesmo tempo ingênuo e malicioso. Já Piva ambienta a cena no Largo do Arouche, local conhecido pela frequentação de pederastas.
No ano de publicação de Paulicéia Desvairada corria o boato sobre a “pederastia” de Mário de Andrade – como ele mesmo admitiu saber, em carta a Sergio Milliet. Se ainda hoje causam escândalo essas manias deliciosas de nosso venerando modernista, o que dizer do clima de 1960? Certamente as cartas de Mário de Andrade ainda não eram de conhecimento público; e Roberto Piva era tido por maluco – muito embora tenha antecipado em muitos anos a recente especulação em torno da biografia de Mário de Andrade.
Sexo e drogas no Cambuci
À luz do dia a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral da burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais, como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e família. É a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria.
Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das “sempiternas mesmices” e atualiza a crítica do modernista à cidade. São Paulo surge como o “convento do Brasil” e seu orgulho pela modernização crescente é ridicularizado: “Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?” [6]. Com tom ora satírico, ora cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de Direito do Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas.
Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia Desvairada. Ali a cidade ganha asas:
[…]
Luzes do Cambuci pelas noites de crime…
Calor!… E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores…
Gingam os bondes como um fogo de artifício,
Sapateando nos trilhos,
Cuspindo um orifício na treva cor de cal…
Num perfume de heliotrópios e de poças
Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan;
E traz olheiras que escurecem almas…
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nos oscilantes de Ribeirão Preto…
– Batat’assat’ô furnn!…
[…]
Calor!… Os diabos andam no ar
Corpos de nuas carregando…
As lassitudes dos sempres imprevistos!
E as almas acordando às mãos dos enlaçados!
Idílios sob os plátanos!…
E o ciume universal às fanfarras gloriosas
De sáias cor de rosa e gravatas cor de rosa!…
Balcões a cautela latejante, onde florem Iracemas
para os encontros dos guerreiros brancos… Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguem, ninguem, ninguem se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu… Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
Enquanto as travessas do Cambuci nos livres
Da liberdade dos lábios entreabertos!…
Arlequinal! Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores…
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
O estelário delira em carnagens de luz,
E meu céu é todo um rojão de lagrimas!… [7]
[…]
O poeta transpassado pelas sensações se multiplica nos versos simultâneos encharcados de cores, cheiros e visões. O clima é inebriante e o teor é altamente sexual. Um mulato cantarolando aqui, corpos de putas acolá e diabos numa fanfarra que inclui todos os sexos e relações (“saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!”). Todos embarcam nessa orgia, mas o poeta tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar contrasta com as grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais o poeta experimenta a tristeza das lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade fica explícita: o gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra correspondência em Roberto Piva.
Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias. É nesse contexto que Roberto Piva se dirige a Álvaro de Campos: “veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ‘as luzes do Cambuci pelas noites de crime’, onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio, Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo de Mário de Andrade (aí de nós se ele desperta!)” [8].
Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização – sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da cidade, mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de Andrade mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O poeta paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima de Campos: “Ah, ser tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! […] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!” [9]
O entrelaçamento dos modernismos português e brasileiro via erotismo fica claro na seguinte imagem: Álvaro de Campos andaria “de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche” [10]
Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom provocativo: “(aí de nós se ele desperta!)”. Remete aos verso do autor de Lira Paulistana nos quais dizia que, quando morrer, “No Paissandu deixem meu sexo” [11]. Mas tudo o que Roberto Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em meio a pederastas e maconheiros!
No poema de abertura de Paranóia (1963), Roberto Piva tem a seguinte visão: “na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas” [12]. É no mínimo inusitado: Mário de Andrade em posição meditativa, recebendo uma iluminação num comboio de maconha! O contraste da santidade do lótus com a criminalidade do tráfico. E tudo em torno de Mário de Andrade! A princípio se pode pensar em exagero, impertinência ou mero absurdo – e quantos críticos não caem nesse lugar-comum? Mas, vejamos de novo os seguintes versos de Mário de Andrade no poema Noturno: “Num perfume de heliotrópios e de poças / Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan; / E traz olheiras que escurecem almas…”. Heliotrópios, flor-do-mal, Tusquestan?! Mário de Andrade delira tanto quanto Roberto Piva! Mas ambos com muita lucidez. Senão, vejamos.
Desde as famosas viagens de Marco Polo, a região do Turquestão é associada à origem da utilização do cânhamo (cannabis). O autor de Flores do Mal, Charles Baudelaire, inicia seu Paraísos Artificiais exatamente com menção a Marco Polo, discutindo a utilização do cânhamo nesta região russa na qual camponeses ficavam com “crises de sonambulismo” ao utilizar a erva na alimentação[13]. Na apresentação escrita por Théophile Gautier sobre Baudelaire, exatamente nas edições de Flores do Mal a partir de 1868[14], fala-se dos paraísos de “perfumes” acessados por “êxtases olfativos” após exalar o olor de um “heliotrópio”. São os elementos do trecho de Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do poeta francês, seria a flor-do-mal uma referência à cannabis sativa originária do Turquestão? Estas “olheiras” não seriam menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as “crises de sonambulismo” de que nos fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo dessa erva na região barra-pesada do Cambuci.
Se podemos colocar em dúvida essa interpretação dos versos de Mário de Andrade, os versos de Piva são inequívocos. A imagem delirante de Piva se baseia em uma leitura ousada da própria poesia de Mário de Andrade. Convém repetir: uma leitura feita no início dos anos ‘60, sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata suas experiências com alucinógenos.
Mário de Andrade surge como um “lótus”, uma iluminação espiritual simbolizada nessa flor oriunda do mesmo Oriente que o Turquestão. E o poeta modernista tem essa iluminação deitado, olhando as estrelas, com a boca colada no ouvido de Roberto Piva, ao seu lado. Onde estariam os poetas deitados gozando essa intimidade?
NO PARQUE IBIRAPUERA
Nos gramados regulares do parque Ibirapuera Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha imaginação Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri para a banalidade dos móveis Teus versos rebentam na noite como um potente batuque fermentado na rua Lopes Chaves Por detrás de cada pedra Por detrás de cada homem Por detrás de cada sombra O vento traz-me o teu rosto Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna? É noite. E tudo é noite. É noite nos pára-lamas dos carros É noite nas pedras É noite nos teus poemas, Mário! Onde anda agora a tua voz? Onde exercitas os músculos da tua alma, agora? Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem como numa lagoa É impossível que não haja nenhum poema teu escondido e adormecido no fundo deste parque Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol? A noite é interminável e os barcos de aluguel fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo seguir contigo de mãos dadas noite adiante Não só o desespero estrangula nossa impaciência Também nossos passos embebem as noite de calafrios Não pares nunca meu querido capitão-loucura Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo. [15]
O poema é ambientado naquele parque inaugurado nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo. A história é conhecida: entusiasmo diante da industrialização da cidade; leitura de poesia modernista patriótica; monumentos históricos. São os “gramados regulares”. Roberto Piva parece criticar a institucionalização do movimento modernista e sua cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade.
São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das comemorações diurnas. “É noite” – conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a noite às paixões humanas, suas obscuridades, seus ímpetos inconscientes. Essa “noite insone e humana” finda com o susto da aurora, que transfigura o poema. Com a luz do dia se vê os “arranha-céus”, “trabalhos e fábricas”: “Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada forma / Humana corrupta da vida que muge e se aplaude” [16]. Roberto Piva retoma esse poeta noturno: o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do ambiente natural; distante da civilização e sua vida corrupta.
É à noite que Roberto Piva imagina-se com o autor de Girassol da Madrugada paquerando adolescentes, com Mário de Andrade perguntando a um deles se seria seu girassol. Piva encontra um poema escondido de Mário de Andrade, anunciado já no início quando menciona o retrato do modernista sorrindo para a “banalidade dos móveis”:
SONETO
(Dezembro de 1937)
Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas. [17]
Seria um daqueles adolescentes o jovem amante de Mário de Andrade, que o próprio modernista nomeia como “girassol”? – se pergunta Piva. Com ou sem esse girassol, Mário de Andrade e Roberto Piva passam uma “noite interminável” com os garotos. Após a orgia, ambos poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do modernista como este o encara!
É Piva de mãos dadas com a tradição modernista fortemente erótica. Em entrevista a Fábio Weintraub[18], o poeta afirma: “…Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado homoerótico”, ressaltado no modernista sua “forte sensibilidade homossexual”. Piva cita os versos sobre “teu corpo nu de adolescente” para avalizar esta sua interpretação.
Exatamente na análise do poema No Parque do Ibirapuera, o crítico argentino Mario Cámara afirma, num tom provocativo:
La de Piva puede considerarse como una primera lectura corporal y sexual del modernismo brasileño. Y testimonia la búsqueda alternativas al discurso más técnico y, por lo tanto más mental, del concretismo, a la modernidad desarrollista que está emergiendo de los claustros de la Universidad de San Pablo, y a la poesía militante y “piadosa” de la izquierda literaria brasileña [19]
Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionante quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na ruas mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha – na simultaneidade desordenada de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente dirigia aos parnasianos. Mas, em plenos anos ‘50, ninguém menos que Sérgio Buarque de Holanda já falava do “latente parnasianismo” e pendor formalista de nossa poesia[20]. Antônio Cândido também denominou como “neoparnasianismo” a poesia formalista a partir da tal Geração 45[21]. É exatamente o movimento concretista e a Geração 45 que Roberto Piva irá criticar – já nos manifestos de 1962. O racionalismo e anti-lirismo de uns e a disciplina fabril e formal de outros. Ambos expressões da ideologia da modernização: seja na administração racional da poesia, ou na ingênua exaltação da modernização e da mercadoria. Ou seja, Roberto Piva atualiza a crítica modernista também no que diz respeito à poesia nacional. Exatamente essa atualização, distante da institucionalização estatal ou das escolinhas literárias, permite a Roberto Piva a radicalidade erótica e livre.
Mais em termos de atualização, convém lembrar a opinião de Mário de Andrade sobre uma das contribuições do movimento modernista: “a atualização da inteligência artística brasileira”. Pois não apenas no erotismo Piva tem importância. O poeta atualiza a expressão poética brasileira, especialmente com dicções da poesia norte-americana.
Como bem observou Claudio Willer[22], o poema “No Parque Ibirapuera” mantém forte intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen Ginsberg. Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt Whitman, conclama o “grande pederasta”:
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isso, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.
Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo [23]
Como em Álvaro de Campos, Piva também traz essa imagem do “retrato” de Mário de Andrade em seu quarto – um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta da fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em todos objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página: “Camarada, isto não é um livro / quem toca neste livro, toca num homem […] Eu salto de suas páginas em seus braços” [24]. É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário, caminha com ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e tempo, como queria Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada pedra, em cada homem, etc – como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência poética, Piva, como Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação da presença com a angústia da busca.
Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não só. Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da Califórnia. Ali Allen Ginsberg inicia o poema pensando em Whitman enquanto caminhava “olhando a lua cheia”. A partir daí também recompõe imagens nas quais encontra Whitman “lançando olhares para os garotos da mercearia”: “Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?” [25]. Os poetas provam tudo sem nunca passar pelo caixa e, quando o supermercado fecha, caminham juntos pela “noite”.
Supermercado aqui, Parque acolá, o encontro de Piva com Mário de Andrade é um pilhagem de Ginsberg. Até detalhes da “lua”, da “noite”, da imaginação que recompõe os versos, da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se sente “absurdo”, Piva não; se os dois poetas americanos ficam na paquera com os garotos angélicos, os brasileiros vão além.
E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da seguinte passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman: “¿Qué ángel llevas oculto en la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus anémonas manchadas?” [26].
Eis a complexidade do intertexto em Roberto Piva. Em primeiro lugar: Piva vivencia os versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes de textual é sexual. E essa relação transparece nos versos que, a um só tempo, fazem menção a Mário de Andrade (com o girassol), a Garcia Lorca (já que o girassol dialoga com a anêmona: outra flor com forte teor erótico e mágico) e a Allen Ginsberg (já que o girassol corresponde ao anjo).
Nessa retomada erótica de Mário de Andrade, Roberto Piva atualiza a inteligência artística brasileira com versos surreais de Lorca e a beat de Ginsberg. Todos colocados numa espécie de genealogia da poesia homoerótica que irradia de Whitman e passa por Álvaro de Campos.
Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical são feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia crítica.
Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura atenta das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o tema do erotismo para o debate sobre o “primitivismo”, numa pegada político-revolucionária que inclui outros heróis sem caráter.
Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos, nem o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas.
NOTAS:
[1] MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005.
[2] PIVA, Roberto. San Paulo’s Iprovisation. Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos Novíssimos (Coleção dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97.
[3] ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 283.
[4] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1922/1972. p. 44
[5] Idem, p. 21
[6] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 25.
[7] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, p. 44-5.
[8] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 23
[9] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117
[10] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 22.
[11] ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, p. 300
[12] PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
[13] Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les chefs-d’oeuvre français). p. 14.
[14] GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Calmann Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: “Il en est de même pour les extases olfactives qui vous transportent en des paradis de parfums où des fleurs merveilleuses, balançant leurs urnes comme des encensoirs, vous envoient des senteurs d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante, rappelant le souvenir de vies antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans quelque O'Taïti du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire imprégné de patchouli négligemment jeté sur un fauteuil”.
[15] PIVA, Roberto. Paranóia. pp.64-5.
[16] ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 305.
[17] ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1.
[18] WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135.
[19] CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa (Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35.
[20] HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1950/1996, pp. 165-9.
[21] CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira – III. Modernismo. 5. ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p.
[23] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, p. 149
[24] WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. (2ª ed.), 1860. Disponível em: whitmanarchive.org/published/LG/1860/ Data da consulta: 12/05/2008.
[25] GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188).
[26] LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p. 148.
Ricardo Mattos (Brasil, 1979). Poeta. Pesquisa em seu doutoramento a vida poética de Roberto Piva, na área de Psicologia da Arte (Universidade de São Paulo). Contato: acasosubversivo@gmail.com. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES | MILENE M. MORAES
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