Numa recente entrevista, [01] o artista Cyprien Gaillard, laureado em 2010 com o prêmio Marcel Duchamp, [02] fala de suas inúmeras viagens: a Washington, para uma exposição, a Copenhague, para um concerto, a Yucatán, ao Égypte e ao Camboja, para uma pesquisa. Ele, que vive em Berlim, declara: “é apenas uma base (…), o resto do tempo, estou na estrada”.
Desenha-se atualmente, do artista internacional, a imagem de um viajante tão incansável quanto satisfeito. Há algumas décadas, no entanto, um artista só viajava impelido pela necessidade. Pensemos em Erik Dietman, que, deixando a Suécia em 1959 para instalar-se em Paris, é preso em Bruxelas pour vagabundagem. [03] Pode-se ver em Dieter Roth, nascido em 1930 em Hanover, a grade figura do artista-vagabundo. Sua errância, que durou toda sua vida, tanto influenciou seus métodos de trabalho quanto lhe forneceu temáticas eminentemente pessoais.
A infância de Dieter Roth já é marcada pelo exílio. Em 1943 – portanto, com apenas 13 anos – é enviado em férias à Suíça e logo sua família decide que, por razões de segurança, ele não retornaria à Alemanha. Separado de seus pais, Dieter escreve a eles todos os dias. É nesta época que passa a se dedicar à poesia e ao desenho: para ele, meios de comunicação e também de auto-educação. Para este jovem, a atividade artística já é uma necessidade vital.
É significativo que as primeira obras de maturidade de Dieter Roth sejam abstrações geométricas. Nelas ele declina a utopia, retirada do Bauhaus, de uma arte cujo alcance seria universal. Estes desenhos logo dão origem a livros. Muito mais que obras únicas, o artista prefere vetores de comunicação.
Em 1954 ele tem oportunidade de produzir desenhos um pouco mais lucrativos, destinados à produção têxtil em Copenhague. Dieter Roth vê finalmente suas pesquisas formais de confidenciais abrirem-se a produções concretas e utilitárias. Ele começa a conceber a idéia de desenhar a vida. A visão global que caracteriza sua arte nasce deste encontro com a preocupação industrial, da qual ele emprestará igualmente os procedimentos de delegação do trabalho.
É também em Copenhague que Roth encontra Sigridur Björnsottir, no verão de 1956. Casam-se e, em 1957, se instalam em Reykjavik, na Islândia, onde Sigridur trabalha num hospital como arte-terapeuta. Juntos têm três filhos: Karl em 1957, Björn em 1961 e Vera em 1963.
Sigridur Björnsottir lembra-se [04] do caráter absoluto que imediatamente assumiu sua relação com seu marido: ele pede a ela que se livre todas suas roupas, e faz-lhe outras, de acordo com seus próprios desenhos, com tramas que ele mesmo escolhe. Em seguida, exige que jogue fora todos seus livros para substituí-los, até nisso, por aqueles que ele lhe fabricará. O casal experimenta, assim, uma espécie de insularidade que reflete a sensação de isolamento que Dieter sente nesse exílio voluntário.
Na Islândia, Dieter Roth descobre a estética da degradação observando os casacos enferrujados dos navios dos pescadores no porto. Ele experimenta também uma ruptura radical com o mundo da arte, tanto assim que a associação dos artistas gráficos islandeses lhe recusa reiteradamente a concessão de uma autorização de trabalho. Este ostracismo o obriga a desenvolver a estratégia de delegação, que já se insinuara quando de seus trabalhos têxteis. Assim, ele adquire naturalmente o hábito de conceber projetos que podem ser enviados pelos correios e realizados, na ocasião de exposições, por amigos no continente. É desta maneira que conhecemos o exemplo[05] de Daniel Spoerri que executa duas esculturas de Roth para uma exposição em Anvers, em 1959: uma toma a forma de quadro de fios que lembra a arte ótica. O desenho preparatório enviado a Spoerri por correspondência revela que Roth deixa a seu executor uma grade liberdade. Roth não procura concretizar uma visão precisa, ao contrário: ele gosta da idéia de que seu trabalho carregue a marca de um outro, cujo savoir-faire está além de sua influência. Ele pode, por exemplo, pedir a não-gemanófonos que corrijam as provas de uma de suas coletâneas de poemas e integrar os erros tipográficos destes ao produto final.[06]
A sensação de isolamento que Dieter Roth experimenta na Islândia é agravada por uma persistente confusão linguística: ele e sua mulher nunca falaram a mesma língua. Uma evolução artística muito rápida – que logo o levará a utilizar comida em seu trabalho – leva Dieter a uma mudança de vida: ele é convidado aos Estados Unidos, pelo museu da Filadélfia, e depois pela escola de arquitetura da Universidade de Yale e, finalmente, pela escola de design de Providence; ele começa a perceber as vantagens e o interesse pecuniário do estatuto de artista em residência. Por correspondência, Dieter e Sigridur decidem separar-se em 1964. As crianças ficarão com a mãe, em Reykjavik. Este divórcio não é apenas uma anedota em sua carreira artística: quando as necessidades o obrigarão a viajar cada vez mais, ele não terá mais oportunidades ver seus filhos. A única maneira de passar algum tempo com eles será declará-los como seus assistentes, assim, a instituição que o recebe financia as viagens.
Esta é uma época de inflexão em sua trajetória e as obras que Roth realiza então frequentemente tratam do tema do território. De um modo significativo, ele mostra, afundando brinquedos que evocam a mobilidade (motoqueiros de ferro branco) no chocolate ou em açúcar colorido, que só podemos estar enviscados num lugar. Também é igualmente significativo que ele utilize a mesma forma e o mesmo esquema em dois de seus temas de predileção: a ilha e o auto-retrato consistem identicamente motivos circulares e centrados. As Ilhas, são alto-relevos compostos com comida fixada num suporte. O odor pestilento que é liberado conota, pelo menos negativamente, a temática da insularidade. Os auto-retratos são mais planos, e liberam odores mais apetitosos, já que são feitos com chocolate. O auto-retrato se identifica com a ilha pela forma, mas se opões a ela pelo odor.
Uma edição mais tardia ilustra de modo ainda mais claro a relação de Dieter Roth com a insularidade: a serigrafia Calm Life (1972) mostra, pela janela, um barco de partida. No primeiro plano, um cão se detém, não se sabe como, entre dois gueridons. O cão é um animal que o artista associa também ao auto-retrato. [07] É, portanto, ele próprio que se representa entre duas ilhas. Os dois grandes buquês pousados sobre cada um dos gueridons escondem um bulício de vidas indiferenciadas.
Essas ilhas metafóricas, entre as quais, depois de seu divórcio, Dieter Roth não parará de navegar, são ateliês espalhados na Europa do Norte. Ele conserva um porto-seguro na Islândia, em Mosfellssveit, que ele chama “Bali”, mas também ateliês em Bâle e em Stutgart. No início dos anos 70, um dos mais fervorosos colecionadores, o jurista Philipp Buse, propõe a ele instalar um ateliê numa de suas casas num bairro chique de Hambourg. Roth instala aí o Schimmelmuseum, ou “museu de mariscos,” no qual ele trabalha até 1998, ano de sua morte, em empilhamentos de auto-retratos de açúcar e chocolate. Pode-se ler nessas obras monumentais, que revitalizam o tema do auto-retrato de uma maneira menos alusiva que os discos de chocolate, uma espécie de desespero existencial bastante típico de Dieter Roth: ele despende toda sua energia em suportar seu próprio peso, e vez ou outra a construção desaba.
Com o projeto a longo prazo de Philipp Buse, de constituir uma coleção que possa servir de base a uma Fundação Dieter Roth, o artista começa a se inscrever mais conscientemente numa tensão entre o local e o global. A coleção da futura fundação será global, dado que Buse se compromete em adquirir todas as obras que Dieter Roth lhe indique como indispensáveis. Mas sua ressonância busca ser apenas confidencial, na medida em que ela permanece confinada a um espaço doméstico. Dieter Roth sempre desconfiou das instituições, e concebe seu próprio museu como um lugar que será aberto apenas a pessoas que figurem numa lista que ele próprio constituirá, sob a condição de que os inscritos o solicitem. A ilha de Dieter Roth tem aqui o tamanho de uma casa na Abteistrasse, em Hamburgo, e ela tem como vocação receber visitantes.
O ateliê de Bâle abriga uma série de pinturas que Dieter Roth realiza em colaboração com seu filho Björn. O processo é descrito assim: “Deixamos sobre o solo vários pedaços diferentes de papel. Qualquer um de nós dois que lá esteja, sem o outro para atrapalhar, pinta ou desenha (trabalha) nessas folhas. (…) Quando o outro não está no setor, seu comparsa brinca com as imagens”. [08] Mais uma vez, não se trata de cruzar quem quer que seja, sequer seu próprio filho.
O ateliê de Stuttgart é uma outra base, mas Dieter Roth também trabalha no museu: ele deixou como acervo na reserva da Staatsgalerie um assemblageintitulado Bar n°0. A pedido do museu, ele vem regularmente trabalhar no local, em princípio na restauração do objeto, mas na verdade ele acrescenta tantos novos elementos que a obra logo não atravessa mais a porta. Seu filho Björn acredita que Dieter desenvolvia aí uma estratégia que lhe permitisse passar mais tempo na cidade de Stutgart, que lhe trazia boas lembranças. [09]
Parece cada vez mais evidente que o que Dieter Roth fabrica não são objetos, mas lugares. Em 1973, numa nova tentativa de capturar a cidade em que fora acolhido, ele começa a fotografar todas as casas de Reykjavik. O conjunto, constituído de 34000 diapositivos, será terminado em 1993. Em 1973, da mesma forma, ele retira a prancha de seu ateliê e a apresenta como uma obra de arte completa. Sua superfície evoca tanto a vida cotidiana do artista como seu trabalho, suas performances, a batida ritmada de seus pés que se ouve de gravações num grande número de cassetes de música gravados por ele.
Em 1980, em Lucerne, Suiça, Dieter e Björn Roth começam a construção de Cellar Duo (Duo en sous-sol, 1980-1989), um estúdio de gravação, que se apresenta como um grande díptico de assemblages em alto relevo. Este conjunto permite executar, ouvir uma fita magnética e, ao mesmo tempo, ouvir o rádio. Os cabeçotes de gravação dos magnetofones foram suprimidos, de modo a se poder superpor as camadas sonoras. Dispersos em toda Europa, os filhos de Dieter Roth gravam horas de música, e seu pai as mistura no Cellar Duo, e executa por cima delas. Como é frequente em seus assemblages, Dieter Roth recobre a menor das superfícies disponíveis com colagens de fotos, de escritos, de pintura à bomba. Esta sedimentação faz de suas obras um diário.
No início dos anos 80, Dieter Roth toma o hábito de cobrir a superfície de suas mesas de trabalho, em seus diferentes ateliês, com um papelão cinza que registra, segundo ele, “sinais de suas atividades domésticas”. [10] Percebem-se aí marcas de tinta, rabiscos feitos ao telefone, fotos, desenhos de seus netos, manchas de toda espécie. Derivadas dos quadros-armadilha de Spoerri, essas toalhas de mesa não apresentam o aspecto do acontecimento instantâneo. Ao contrário, eles levam anos sendo trabalhados, como se por falta de algo melhor a fazer, até serem eventualmente expostos. Estas Table Mats foram tema de uma apresentação na galeria Hauser & Wirth, em Nova Iorque, em outubro de 2010, emolduradas como quadros. Mas Björn Roth, nesta ocasião, reconstituiu também ambientes inteiros de trabalho, como a mesa de trabalho de seu pai quando da retrospectiva de Marselha, em 1997. Em Nova Iorque, a impressão era desconcertante: o artista parecia ter se ausentado momentaneamente da exposição, quando estava morto já há 12 anos.
A idéia de apresentar um local de trabalho como obra de arte nos permite ligar a demarche de Dieter Roth à de Joseph Beuys. Os dois se frequentaram em Düsseldorf, em 1968, e é inegável que o pensamento de Beuys influenciou Roth. No entanto, se Beuys declarou que “todo homem é um artista”, entendendo com isso que a criatividade podia ser exercida em qualquer domínio de atividade, parece que apenas Dieter Roth conseguiu ultrapassar completamente o estágio de declaração de intenção para encarnar verdadeiramente este pensamento generoso. Ele faz arte quando cozinha e quando prepara um chocolate. Ele faz arte quando atende ao telefone, quando passeia pelas ruas de Reykjavik; quando bebe e quando para de beber. Ele faz arte quando não faz nada.
Em contrapartida a este talento em transformar tudo em arte, Dieter Roth permaneceu um artista confidencial; uma relativa ausência de conhecimento público de sua obra o obrigou a reduzir seu território artístico a sua mesa de trabalho. O paradoxo de Dieter Roth continua sendo, assim, que este artista-viajante tenha realizado uma obra tão radicalmente local. [11]
À extensão, ele substituiu a temporalidade. Ele não trabalha para o público, ou com o objetivo de transmitir uma mensagem; ela cava, ele aprofunda, ele acumula. Assim como Bar n°0 de Stuttgart, uma obra jamais pode ser terminada, pois a arte não é uma produção de objeto, é um processo contínuo de trabalho. Roth acreditava na possibilidade de continuação filial deste trabalho, como os artistas do Renascimento, como Cranach. Os filhos podem continuar o trabalho do pai, depois os netos e assim por diante. Neste sentido, Dieter Roth não está morto, pois que, de algum modo, um de seus descendentes continua o trabalho.
NOTAS
2. Fundado em 2000 por uma associação de colecionadores do Centro Georges Pompidou, este premio recompensa um artista francês com o objetivo de contribuir com sua difusão internacional.
6. Trata-se do volume Scheisse. Neue Gedichte von Dieter Rot [Merda. Novos poemas de Dieter Rot], publicado em Providência, em 1966, após correções dos estudantes de Dieter Roth.
7. Quando da Tibidabo Dog Compound 24 Hours of Barking (1977-78), tentativa de recenseamento visual e sonoro de um canil nos arredores de Barcelona.
8. Dieter Roth e Björn Roth, Stretch & Squeeze, 1997: MAC Marselha.
9. Björn Roth, Stuttgart trips, em Dieter Roth-here and there, Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz, 2003.
11. O que não excluiu peças monumentais, resultantes de anos de sedimentação, como Gartenskulptur, iniciada em 1970, que ainda em nossos dias é objeto de modificações escolhidas por Oddur Roth, neto do artista.
Phillippe Baryga (França, 1967). Professor de Artes de Ciências da Arte, na Université d'Artois (França). Autor de Un mobile homme dans le désert (1998), onde reúne seus artigos, de 1991 a 1993, para a revista de arte contemporânea Sans Titre. Contato: philippe.baryga@wanadoo.fr. Página ilustrada com obras do artista Dieter Roth (Canadá).
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