«Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E vi que era amarga. – E injuriei-a.», escreveu Arthur Rimbaud (1), nome da vertigem, do desregramento dos sentidos, da transgressão, da procura de um verbo novo que as enfornasse, de uma estética que lhes servisse. Procurar a transgressão na poesia portuguesa contemporânea é encontrar, obrigatoriamente, o nome de José Emílio-Nelson para quem o verbo maldito vê na estética do feio o veículo da libertação. PESA UM BOI NA MINHA LÍNGUA (2) é o título do seu mais recente livro de poesia e mais um andamento dum projecto estético muito próprio, de uma invejável coerência, que desenvolve há 34 anos. Com o título colhido numa expressão do Agamémnon, de Ésquilo, o poeta, todavia, evidenciando o símbolo do boi enquanto animal terreno e sacrificado, imprime-lhe um deslocamento de sentido.
No Agamémnon, o Vigia espera o momento de apertar na sua mão a mão do seu senhor herói regressado de Troia, mas encobre o horror da traição da esposa durante a sua ausência, cala-se, porque «pesa-lhe um boi» na sua língua, i.é., inibe-se, recalca o fardo pesado que não o deixa dormir. O título, Pesa Um Boi Na Minha Língua, é uma engenhosa subversão da expressão de Ésquilo, porquanto solta um boi negro que não é manso nem amansado, que exulta a sua verdadeira natureza intensa e plena para depositar o fardo da sua existência no branco luzente das páginas.
«Porque me amarga a verdade, /quero lançá-la da boca», escreveu Quevedo anunciando os excessos que carregou de sátira e burlesco. José Emílio-Nelson liberta a poesia dos compromissos morais e do estético asséptico para escavar a imperfeição, o inferno humano e a divina comédia da vida, dando-nos a ideia de que os bons sentimentos inviabilizam a inquietação imprescindível ao acto de criar. Já Gomes Leal, em Fim de um Mundo, se arrogava «um cirurgião» que havia de retalhar a escalpelo a «carcaça linda e podre do mundo». A poesia de José Emílio‑Nelson «ocupa o território tenebroso do feio expressivo, princípio estético da intensidade realista que organiza a experiência existencial», escreve Luís Adriano Carlos na majestosa introdução à antologia A Alegria do Mal – Obra Poética I, 1979-2004, editada em 2004, pela Quasi Edições. «Esta é uma poesia que assume a agressão ao velho e conformado bom gosto do leitor, levanta os véus, e o que se observa sob os véus são as fibras moles e corrompidas da carne, sem disfarces ou unguentos que mascarem a humana, demasiado humana condição do que decai, se degrada, se corrompe, se extingue», escreve Fernando de Castro Branco, no ensejo da publicação do segundo volume da obra reunida de José Emílio-Nelson, a antologia Ameaçando Vivendo – Obra Poética II, 2005-2009, editada em 2010 pela Edições Afrontamento. Consciente de que a fealdade é o que sobra quando o belo se ausenta, a poesia de José Emílio-Nelson adorna a beleza de sarro, «cospe mísero canto», faz do feio o espaço de exploração e, consequentemente, de conhecimento.
No laboratório poético, onde o gesto selvagem e grotesco esgrime liberdade artística, dialoga-se com autores – quer explícita quer implicitamente – da literatura universal de todos os tempos, e dialoga-se com outras artes, como a pintura, escultura, música e fotografia, artes que emprestam o seu gesto à iluminação dos corredores escuros do ser humano.
Na Conversão à luz, as palavras de José Emílio-Nelson surgem como aves «derramadas no seu voo sobre a bruma inquinada», voam em «águas ermas», retêm-se no fundo das águas, e desafiam o leitor com perguntasobscuras, carácter, ainda, de uma poesia de questionamento de si mesma: porquê?, o «Que as retém lá fundo?»(p.10), «que mão desaparece e aparece por dentro de nós? /É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica? /Qual mão? /A que mortifica muda e confusa e nos consome? / Ou a que evola Deus?» (p.9); ou, ainda, intercetemos o desígnio desta poesia detendo as chaves do poema Lux Aeterna: «A mão que faz de si um sopro enlaça os dedos e canta. /É a voz de quantos gestos? /Sobre ela se enxerta uma e outra voz que escurece. /Num sítio ermo, bem fundo, /A sua magnificência na vacuidade do Mundo. /E apodera-se dum silêncio que depois clamoroso se repete /E repete belamente a sua escuridão. /Perde-se e relampeja em orlas escuras, /Sulca e assenta, acalmada.» (p. 22).
Iluminar o feio é pôr a nu a decadência e a miséria humanas. Sem nos falhar, o texto faz a pergunta e dá a resposta clara: «Como aparece Deus velado ao que perde a nudez esbelta? /Maravilhado.» (p.12). É por esta razão que a nudez de San Sebastián, de El Greco, é profanadora, e é também por isso, e porque aquela dor nos identifica, nos é familiar, que a sua beleza convulsiva nos maravilha e nos fascina: «A devoção encandeia, afadiga-se, alastra até ao amortalhamento./ As flechas mortíferas escoram o corpo vazado. /Detenhamo-nos, sem mais detalhes. /Escorre o óleo santo na nudez profanadora.» (p.54).
O Homem é carne, mas também é espírito, e só a sabedoria artística do espírito pode harmonizar a fealdade do mundo em destroços. Acha-se o belo removendo escombros, escreveu o poeta Antonio Porchia, cita-o José Emílio-Nelson. Cumprindo a ideia de que a obra de arte deve devolver o homem a si mesmo, na inteireza vital, espiritual, material e física, a sua poesia adopta um processo análogo ao da fotografia que adquire a sua força deslocando o objecto do seu contexto para o imprimir num outro e novo contexto. O resultado são imagens de espanto e inquietante estranheza. Para José Emílio-Nelson, o ar é uma zona corporal do homem, o que vem ao encontro do defendido por Novalis, de que «O ar é tanto órgão do Homem como o sangue», que «o exterior não é mais do que um interior distribuído» (3).
O ar do corpo interno também se liberta em burlesco sonoro, como no exemplo do texto Dama Canhão: «A dama move-se, /Nada mal, as nádegas em tacão /Deixam rasto de lagartas /Castrenses, só que a mulher usa pestana escarlate. /O cinto seca-lhe a cintura farta, é seca, /A dama para quem em redor a faz de louca. /(Detona pó sem dó que nem canhão. /Ou serão gases?)» (p.77).
Por outro lado, «Em divergência com as mitologias literárias, a cosmogonia de Emílio‑Nelson começa na urina, a água da vida segundo a tradição medicinal», diz Luís Adriano Carlos. Com efeito, se o «verdete agonizante do metal da alma» se estende às reveladoras «alvíssimas lágrimas», a (outra) água da vida irrompe purgadora no texto Cães: «Vou ser asceta, piedade pela cadela./O chumaço das tetas, vou ser vulgar, lágrimas rosas,/ A arrastar a matilha estouvada que a morde à vez, de joelhos./Cadela em fuga, prostrada nas urinas,/A rezar, julgo eu, a rezar.» (p.51), ou em purificação apolínea, numa viagem a Delfos: «Nas poucas horas que passei em Delfos, /Miniatura do folclore grego, uma mulher rendada /Oferecia os seus olhos cegos poisados na mão com que me tocava. / (A excursão inteira continua atenta ao guia que mal fala.) / Iludindo a mais amada, urinei para os olhos da cega, / Que por isso implorava.» (p.72).
Falar do feio é falar do Tempo – tempus edax omnium rerum –, o feroz devorador de todas as coisas até as tragar totalmente; o tempo é «Impiedade» apresentada, por exemplo neste texto: «Com sapatinha de espalhar trampa, chagado. De capuz, carapinhoso. /Agitava-se empoleirado no vinho drogado./ Desfalecido, as pestanas escurecem./ Repousará, tão atroz, outra vez dentro de sua mãe. <Doía.>/ Ah, que importa. Jaz Morto.». (p.59). O regresso ao útero materno indicia que, se «O decorrer do tempo ofende a Beleza», o texto também lhe reconhece a capacidade de recomeço, ideia plasmada na Fénix que se regenera: «a fénix aflitíssima mede o tempo justo para repetir as cinzas» (p.49). Nas Metamorfoses, Ovídio apresenta a Fénix rediviva e também a Fénix do poeta latino «Não é de grãos ou de ervas/que vive, mas de lágrimas de incenso e da seiva de amomo.» (4). Símbolo da morte e renascimento, também a cobra é chamada ao texto; nela se conjugam metamorfose e erotismo patentes na mulher que se contorce voluptuosamente, confundindo-se com a serpente, metamorfoseando-se na própria serpente, do poema «Cobra, a Morbideza»: «A mulher que trabalha na morgue vai vomitando. / Enrosca-se cerosa nas gavetas como se fosse dormir /Demasiadas vezes na morte. / (Muda, a cobra escuta-a, /Suspira noutra muda repentina.)» (p.70).
Com admirável rigor, o vasto bestiário está ao serviço do reconhecimento da dimensão infernal da dita vida interior e de um programa poético que nomeia a penitência da lesma, a pomba que martiriza o espírito, o pelicano que «obedece a Deus ao aspergir o seu sangue redentor sobre as crias que mata», o asno com desejos de autoflagelação, a gralha cuja crista é o «abanico de certas almas» ou o cisne, «a soberba que alegra os órgãos genitais de suspiros». As pulsões sexuais, o sadismo e o masoquismo têm terreno fértil na palavra que exprime o subterrâneo, a perversão, o licencioso, pelo que esta poesia não se coíbe na utilização de vocabulário erótico e pornográfico, provocatório e agressor para o qual concorre a atenção sobre os detalhes físicos da violência sexual que compõe a coreografia dramática do discurso corrosivo e satírico; vejamos doisclips: «Assisti a um clip [bondage] em que eram penetrados / Uns tantos pelo corpanzil dum latino que os cobria empenhado /Untando com vaselina nas pálpebras doutro mais alheado. /Consumido nisso, pondo-se a jeito, implora, e é enfiado. / (E sem óleo santo que o salvasse.)»; «O cão cobria-a como pele de raposa, empertigara-se, /A pata rosa abusava, deixava mossa. <A cauda estranha>. / O focinho mordia, ia avançando, encostou-se, / E ao bambolear ela gemia, devia ser mau, /Mais do que no vídeo se ouvia.» (p.74).
Se na origem da beleza está unicamente a ferida, há pois que isolar as feridas para lhes descobrir o significado, iluminá-las, pelo que cada texto é um espaço infinito e de luz imensa. Neste sentido, a poesia de José Emílio-Nelson é um humanismo, e em muitos dos seus textos ecoa o grito das figuras cruas, delicadas e terríveis, e por isso, de beleza avassaladora, de Alberto Giacometti. Confira-se no texto Mina San José: «Rezo pelos mineiros chilenos. /As almas soltando labaredas de El Greco./Ciclopes à espera de subirem ao céu azul pelos tubos dum órgão de luzes que os ressuscita no sepulcro. //Estes mineiros extraem Deus.» (p. 60).
Ainda, o jogo de acasos, imagens e metáforas e hipálages com que se liga o mundo interior ao mundo exterior fazem lembrar a prática surrealista do cadavre-exquis. Veja-se o poema Moeda com que esta poesia paga a experiência da realidade esmagadora: «Numa viela, em cima de cartão prensado, /Senta-se mais engelhada que os trapos. /Raspa com as unhas a cabeça do cão atormentado. /O fundo da garrafa serve de caçarola /E atira para aí as moedas. / (Ferrugentas são peças de coleccionadores.)» (p.84).
A poesia de José Emílio-Nelson não é de fácil leitura. Independentemente de questões de gosto, ela não é acessível ao leitor pouco experimentado. A sua «escrita em mosaico», assim caracterizada por Luís Adriano Carlos, prenhe de deslocamentos de sentido, associações insólitas, movimentos espiralados, vocabulário onde dialogam o erudito e o brejeiro, a dor e a mofa, a inevitabilidade e o recomeço, fazem sacudir um outro novo nervo, outro latejar se impõe, outra releitura se inicia, e a sua poesia nunca está lida. Mas não será este o privilégio da melhor literatura?
NOTAS:
1. Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, Assírio&Alvim, 2007, p.117.
2. José Emílio-Nelson, Pesa um boi na minha língua, Edições Afrontamento,2013.
3. Rainer Maria Rilke in Poemas, ed.Asa, Lisboa, 2001, tradução de Paulo Quintela, p.84.
4. Fragmentos de Novalis, Assírio&Alvim, tradução de Rui Chafes, 2000, p.95.
5. Ovídio, Metamorfoses, Livros Cotovia, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, 2007, p.375.
Teresa Sá Couto (Portugal, 1965). Licenciada em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, Professora de Língua e Literatura Portuguesas, Editora de Cultura em www.kaminhos.com onde artigo e entrevista foram originalmente publicados (Lisboa, Agosto de 2005). Contato: teresa_sacoto@sapo.pt. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
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