sábado, 22 de novembro de 2014

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Cada um morre por si, de Hans Fallada






O ano era de 1911. Necker começou a contar lentamente. No número três o tiro disparou e acertou uma árvore. Necker e Ditzen carregaram a arma de novo. Necker contou novamente, mas desta vez tão rápido que mal deu tempo de Ditzen mirar. Ditzen levou um tiro que raspou o coração ferindo o pulmão, Necker caiu morto com um buraco no peito. Rudolf Ditzen foi acusado de ter matado o colega de ginásio e foi internado em uma clínica psiquiátrica. Postumamente, em sua biografia, seria revelado o motivo deste esquisito duelo: fora uma tentativa dissimulada de suicídio duplo. Necker, que na época tinha dezesseis anos, e Ditzen, com dezoito, combinaram de se matar por não suportarem mais o cotidiano em uma sociedade massacrante, mecanizada e monótona, sob o peso do conservadorismo e do autoritarismo.
A própria biografia de Rudolf Ditzen, conhecido como Hans Fallada, daria um romance instigante, tão agitada e trágica foi a sua vida! O sobrenome Fallada sugere o nome do cavalo falante no conto de fadas A menina dos gansos, dos irmãos Grimm. Depois de morto, a cabeça do cavalo falava. Nascido em 1893, Hans Fallada era filho de um respeitado juiz. Na família chamavam-no de pechvogel (azarado). Teve todas as doenças complicadas de criança, com três anos de idade caiu de quase dois metros de altura permanecendo, alguns minutos, inconsciente no chão. Aos dezesseis anos foi atropelado por uma carruagem, as patas do cavalo lhe causaram graves ferimentos no abdômen e na cabeça, quebrou uma perna e alguns dentes. Só depois de meio ano teve alta da clínica. Não terminou o ginásio e iniciou um estudo técnico de agronomia. Trabalhou na câmara da agricultura e, em 1924, passou três meses na prisão acusado de desvio de dinheiro. Em 1926 foi de novo condenado, desta vez por dois anos, acusado novamente de desvio de dinheiro. Fallada possuía uma personalidade difícil, com distúrbios psíquicos, sofria de insônia e dor de cabeça crônicas, foi viciado em ópio e alcoólatra. Fallada, apesar de ter sido um marido complicado, foi pai de três filhos, e quando a mulher pediu a separação, embriagado, tentou acertar a esposa com um tiro. Divorciado, voltou a se casar, desta vez com a viúva Ursula, trinta anos mais nova e também viciada em ópio.
A temática de Hans Fallada aborda o homem em meio às ciladas da sociedade, enfatizando a questão social, trata-se de indivíduos de classe-média baixa acirrados ao meio em que vivem, como o prisioneiro, o alcoólatra, o funcionário pobre, camponeses, prostitutas, entre outros. Fallada seguia a tradição do Naturalismo em que a realidade empírica era descrita de forma exata e os temas se restringiam às causas sociais. Entre as suas obras que merecem menção estão incluídas as seguintes: Bauern, Bonzen und Bomben (Camponeses, figurões e bombas, 1931),  livro que trata dos protestos de camponeses no norte da Alemanha baseado em uma situação real ocorrida na cidade de Neumünster, em 1929. Fallada trabalhava como jornalista de um jornal local e foi enviado à região para fazer uma cobertura dos acontecimentos. Com o terceiro romance, Kleiner Mann, was nun? (Pequeno homem, e agora? – 1932, cujo título poderia ser traduzido como E agoraJosé?), o autor irrompeu no mercado internacional. O romance, escrito em apenas quatro meses, narra as dificuldades de subsistência de um casal no final da República de Weimer, que, apesar de todas as derrotas cotidianas, as limitações financeiras e a exaustão por consequência do trabalho, conserva o amor existente entre eles. Em Wer einmal aus dem Blechnapf frißt (Quem tem que comer da marmita, 1935), o autor expõe, de forma socialmente crítica, as suas experiências na prisão de Neunmünster. Wolf unter Wölfe (Lobo entre lobos, 1937), mostra o retrato de uma sociedade sufocada pela alta inflação da época, a anonimidade do indivíduo em um mundo em que cada um quer levar a sua vantagem. As ações e estórias, os caracteres distintos das personagens estão de tal forma amalgamados em Lobo entre lobos, deixando transparecer assim a complexidade do tema sem, entretanto, cair no erudito. Pelo contrário, o estilo empregado nesta obra é sóbrio e coloquial, cheio de diálogos, como é típico deste autor. O romance Der eiserne Gustav (O Gustavo de ferro, 1938), descreve o declínio da família Hackendahl durante o período de grande inflação, no meio dos conflitos sociais na República de Weimar. Mas a causa maior do desastre na família é o próprio soberano, cuja tirania determina de forma decisiva o destino de seus cinco filhos: um se torna vigarista, a filha se transforma em uma solteirona fria e calculista, outra filha vira escrava de um cafetão em Berlim, e assim por diante. Hans Fallada era então um escritor reconhecido no meio literário, mesmo assim, seu nome quase não vem a aparecer nas antologias ou livros especializados na história da literatura em língua alemã.
É de se esperar que, com o relançamento do último romance, Jeder stirbt für sich allein, 1947 (Cada um morre por si, tradução livre), Hans Fallada tenha garantido o seu merecido lugar de relevância na história da literatura em língua alemã, mesmo que tenha sido décadas depois. Dennis Johnson, tradutor do romance para o inglês, não entende por que o livro demorou 60 anos para despertar a atenção dos leitores de língua inglesa. Segundo Johnson o livro pertence à literatura mundial: “fiquei comovido com os temas tratados por Fallada, e com a época que ele relatouQuanto mais eu conhecia a sua biografia e as circunstâncias sob as quais ele escreveu, maior era o meu apreçoÉ admirável a sua diversidade literária. Não apenas porque Fallada possuía a ousadia de tratar de temas completamente diferentes, mas adotava sempre uma nova perspectiva cada vez que os narrava. Ele também mudava seu estilo e estrutura de uma obra para outra.” O livro Cada um morre por si ficou esquecido durante seis décadas e só no início dos anos dois mil surgiu um novo e forte interesse pelo tema. Hoje a obra se tornou um fenômeno até mesmo na própria Alemanha. Tudo começou com o lançamento na França, em 2002, sob o título Seul dans Berlin, onde vendeu mais de cem mil exemplares. Em 2009, nos EUA, Every Man Dies Alone, alcançou duzentos mil exemplares, em seguida foi lançado em vários países, na Inglaterra, Itália e Holanda, também em Israel o entusiasmo foi semelhante.
A obra, de oitocentas e sessenta e seis páginas, foi escrita em apenas um mês, o que significa escrever por volta de trinta e seis páginas diárias. Fallada escrevia à mão, iniciando de manhã, às cinco, e terminando às dezessete horas. Neste período ele estava submetido a um tratamento contra o vício e encontrava-se internado em uma clínica, em Berlim, onde veio a falecer, em 1947, de insuficiência cardíaca, antes de o livro ser publicado, três meses depois. Na ocasião, algumas passagens consideradas críticas foram extraídas do livro para reduzir o número de páginas. O original, com os trechos excluídos, foi encontrado no porão da editora Aufbau Verlag, em Berlim, e a versão na íntegra foi publicada em 2011, acompanhada de um mapa antigo de Berlim e fotos de cartas, documentos, dos cartões postais e do casal Hampel.
Antes de penetrarmos no enredo fascinante deste romance faço um conciso esboço do panorama literário alemão daquela época. Interessante mencionar a literatura de exílio que perdurou de 1933 a 1945 e constituía a tendência literária em língua alemã anterior a 1947. Durante o regime nacional-socialista quem criticasse a ditadura era morto. Sob tal circunstância dois grandes talentos foram assassinados, Jakob van Hoddis e Carl von Ossietzky. Muitos escritores consagrados como Berthold Brecht, Thomas Mann, Heinrich Mann, Stefan Zweig, Robert Musil, Anna Seghers, entre outros, exilaram-se em outros países. Muitos foram para os Estados Unidos, alguns para o Brasil, como Stefan Zweig e Vilém Flüsser. Longe da pátria, esses autores procuraram criar uma estética de resistência, mas não havia uma tendência predominante entre eles, uma vez que viviam espalhados em países diferentes. Como representantes da literatura antifascista encontram-se as seguintes obras: A sétima Cruz (1942), de Ana Seghers, Henrique IV (1935/38), de Heinrich Mann, Mãe Coragem e seus filhos (1938/39) e bom homem de Sezuan (1938/40), de Berthold Brecht, e José e seus Irmãos (1933/43), de Thomas Mann. O chamado “Grupo 47”, um divisor de águas na história da literatura em língua alemã, abrangia o fascismo e possuía como principais integrantes nomes como Heinrich Böll, Ingeborg Bachmann, Günter Grass, Paul Celan, entre outros. Na Alemanha oriental sobressaíam-se os nomes de Berthold Brecht, Arnold Zweig e Anna Seghers. Logo no início de 1947, Thomas Mann lança Doktor Faustus, em uma editora em Estocolmo, tendo pouca ressonância no meio literário nestes primeiros anos.
Fallada não se viu obrigado a partir para o exílio como foi o caso da maioria dos bons escritores (mais de mil). Ele nunca se posicionou claramente, alterava os manuscritos conforme as expectativas dos censores e foi muitas vezes intimidado por eles. Por sorte, foi tolerado pelos nazistas que não o consideraram crítico e político o suficiente a ponto de ser uma ameaça ao regime nacional-socialista. Alguns escritores que, de uma forma ou de outra, arranjaram-se com a ditadura de Hitler foram Gottfried Benn, Ernst Jünger, Gerhart Hauptmann e Erick Kästner, entre outros. Para esses autores que permaneceram na Alemanha predominava a chamada innere Emigration, “emigração interior”, significava o recuo ao silêncio, ao afastamento de temas políticos, à espera de melhores tempos: melhor sobreviver, melhor ainda estar aqui, e só continuar a escrever depois que o assombro passar, (Marie Luise Kaschnitz). Fallada não praticou ainnere Emigration, foi bastante produtivo nesta época, talvez devido a um misto de oportunismo, sorte e por causa de seu estado psíquico lábil, em que a literatura lhe proporcionava certo equilíbrio interior.
Vale a pena mencionar algumas obras importantes, que também abordaram a complexa temática que permeava o regime nacional-socialista, descrevendo o holocausto, as perseguições, a censura, enfim, as atrocidades da segunda Guerra Mundial, e que obtiveram grande sucesso internacional, repercutindo até nos dias de hoje. Dentre estas obras incluem-se: Le grand Voyage (A grande viagem), de Jorge Semprum, Se questo è un uomo (Se Isto É um Homem), Primo Levi,Sorstalanság (Sem destino), Imre Kertészos, diários de Victor Klemperer e de Anne Frank, a biografia do famoso crítico literário alemão Marcel Reich-Ranick,Geschichte eines Lebens (História de uma vida)também o excelente romance de Angelika Schrobsdorff, Du bist nicht so wie andere Mütter (Você não é como as outras mães), escritora menos conhecida, alemã e judia, viveu vários anos em Israel, residindo atualmente em Berlim.
Em Cada um morre por si Fallada inspirou-se na história da vida real do casal Elise e Otto Hampel, condenados à morte por decapitação no início do regime nacional-socialista. Foi o amigo e ministro da cultura, Johannes R. Becher, quem lhe sugeriu escrever um romance tratando do caso. Becher, ao visitar o escritor internado na clínica, entregou-lhe a pasta contendo o processo sobre o casal que, entre 1940 a 1942, iniciou uma pequena e particular chamada à resistência. A ação ingênua e inofensiva do casal era um contraste com a condenação à morte por decapitação, revelando a latente paranoia arraigada no regime. A resistência limitava-se em simplesmente depositar nas escadarias dos prédios cartões postais contendo dizeres antinazistas como: o líder manda! A gente segue! Sim, nos tornamos uma manada de cordeiros… Desistimos de pensar.
A seguir, a nota introdutória do romance escrita pelo autor:

“Os acontecimentos deste livro seguem, em primeira linha, os processos da Gestapo sobre as atividades ilegais de um casal de operário berlinense durante os anos de 1940 a 1942. Somente em primeira linha – um romance possui as suas próprias regras e não pode ser em tudo fiel à realidade. Por esta razão, o autor evitou aprofundar-se mais na autenticidade sobre a vida particular das duas pessoas: ele precisou descrevê-las assim como surgiram diante de seus olhos. Elas são duas figuras fictícias, assim como foram inventadas todas as outras personagens deste romance. Mesmo assim o autor acredita na “verdade interior” do enredo, mesmo quando algumas particularidades não correspondam às verdadeiras circunstâncias.
Alguns leitores serão da opinião de que há demasiadamente muita tortura e morte neste livro. O autor se permite chamar atenção para o seguinte, o livro  trata quase exclusivamente de pessoas que lutaram contra o regime de Hitler, e foram perseguidas por ele. Neste meio, nos anos 1940 até 1942, e anterior e posteriormente, muito se morreu. Quase um terço deste livro se passa nas prisões e hospícios, também aqui a morte estava muito em voga. O autor também não gostou de traçar um quadro tão sombrio, porém mais complacência teria significado mentira.
H.F.
Berlim, em 26 de outubro de 1946.”

A história do casal Quangel, como foi chamado no livro, nos faz lembrar a dos irmãos Scholl, iniciadores do movimento de resistência Rosa Branca, criado por jovens estudantes de 21 a 25 anos de idade, em 1942. O movimento constituía em distribuir panfletos antinazistas nas caixas do correio de intelectuais nas grandes cidades no sul da Alemanha e Áustria. Os jovens foram presos e condenados à morte. O nome da líder, Sophie Scholl, permanece até hoje como um símbolo da resistência pacífica contra o regime de Hitler. Provavelmente o casal Hampel soube do Movimento Rosa Branca e se inspirou nele ao pensar em escrever os cartões postais. Tal fato nunca será esclarecido. No romance, os Quangel não possuíam uma estratégia bem elaborada. Movidos pelo sentimento de frustração, perda e tristeza, após receberem a notícia da morte do único filho, que tinha sido abatido nos campos de luta contra a França, começaram, de forma espontânea e ingênua, a escrever os cartões postais, depositando-os na escadaria de algum prédio. Acreditavam que alguma ou outra pessoa pegaria e leria o cartão, aderindo ao movimento, proliferando-o ainda mais. Ninguém aderiu ao movimento e ironicamente muitas vidas foram mortas por culpa indireta do casal.
O autor povoa o enredo com figuras marginais: alcoólatras, pequenos criminosos, prostitutas, operários, e conduz o leitor a um mundo sinistro, sufocante e absurdo, onde a luta pela sobrevivência é baseada no medo ininterrupto e no forte sarcasmo. O drama e a tragédia das personagens são narrados com estilo dinâmico, eloquente e vivo. Fallada adota uma linguagem abundante em diálogos, fazendo uso, em parte, do dialeto berlinense falado nos becos da cidade, para narrar a história de indivíduos envolvidos na voragem de um sistema ocluso, arremessados nos seus mecanismos de repressão, censura e extermínio, e sem a mínima chance de escapatória. Mas a questão principal nesta obra é a batalha unilateral de um casal de velhos solitários e revoltados com o rumo de suas vidas em um ambiente nazista cada vez mais sinistro. Em um prédio em Berlim, nos anos quarenta, os Quangels levavam uma vida isolada, solitária e discreta em meio a uma vizinhança que infalivelmente denunciava uns aos outros. As constantes interrogações por motivos irrisórios tornavam-se abissais, induzindo o interrogado à denúncia recíproca, à deturpação de fatos e, por fim, à morte. Como no caso da família Persickes, cujos dois filhos pertenciam a SS (Schutzstaffel, Seção de Segurança, criada a princípio para proteger Hitler e foi aumentando a ponto de se tornar a principal célula de terror e opressão do regime nazista), o marido era um alcoólatra e fiel ao nazismo, ninguém da família possuía escrúpulos, deduravam qualquer um para obter vantagens dentro do Partido Nazista. Os Persickes moravam em um dos andares do prédio e os Quangel precisavam passar pelo apartamento deles para chegar ao andar de cima: “mais uma razão para passar no apartamento deles, porque era preciso mostrar a todos que tinham uma posição como a deles, que um se mantém fiel ao partido, a fim de conseguir privilégios, mas isso só era alcançado fazendo algo para o partido. Fazer algo significava denunciar o outro, por exemplo, notificar: este ou aquele ouviu um programa estrangeiro de rádio”.
Otto, o marido, era um homem avarento que só não entrou para o partido não por motivos ideológicos ou humanistas, mas porque tinha enorme dificuldade em gastar dinheiro. Eram atribuídas tarefas humilhantes àqueles que não faziam parte do partido. Mas ele preferia aturar a humilhação na oficina de marcenaria a gastar um centavo a mais. Otto foi um pai que nunca amou o filho. Desde o seu nascimento o via como um estorvo de sua tranquilidade e no relacionamento com a esposa. A sua tristeza pela morte do filho deveu-se à preocupação com o estado de espírito de Anna, como ela superaria a perda e pensava em tudo aquilo que seria transformado entre eles devido à morte do filho. A esposa trabalhava para a chamada Frauenschaft (Organização das Mulheres), em que as mulheres, sob a ideologia nazista, ocupavam-se com a casa, o marido e os filhos, ou eram empregadas na Arbeitsfront, (Frente de Trabalho). A ideia de escrever os cartões postais partiu de Otto, na ocasião em que a esposa lhe deu a notícia da morte do filho e exclamou, em tom de acusação: “Você e o seu líder!” Otto ficou encafifado com a frase e, com o passar dos dias, começou a elaborar um plano para mostrar a Anna que ele não tinha nada a ver com o líder. O primeiro cartão dizia: “Mãe! O líder matará também o seu filho, ele não vai cessar enquanto não trouxer luto em todas as casas deste mundo.” Toda semana um cartão era escrito e depositado na escadaria de algum prédio. Significava correr um imenso risco de vida por semana. Mas através desta ação os velhos voltaram a se unir profundamente, o respeito mútuo foi recuperado, certa vitalidade surgiu dando lugar a uma nova fase em suas vidas, uma fase de esperança de, em um futuro próximo, ver o sistema ser derrotado e poder dizer: nós contribuímos para a sua derrota. Anna passava o tempo pensando nas novas frases, reformulando-as, discutindo com o esposo sobre a melhor expressão a ser adotada. Otto passava os domingos sentando à mesa da cozinha escrevendo com dificuldade, com as letras tortas e cometendo erros ortográficos.
Outro casal que aparece no enredo é Eva e Enno Kluge. Ele, um mulherengo e alcoólatra, sempre desempregado, buscando conseguir licença médica para não ter que trabalhar, vivendo à custa das mulheres, furtando aqui e ali. Ela se mantinha com o emprego no correio e tentava se livrar do marido parasita e infiel. O casal possuía dois filhos. O filho mais velho ingressara para a SS e a mãe se recusava a acreditar nos boatos tenebrosos sobre a SS que pairavam na vizinhança. Que o filho, tanto amado por ela, violentava as meninas judias antes de matá-las. Anteriormente Eva possuía forças e podia lutar contra deus e o mundo para defender os dois moleques travessos quando pequenos e na juventude, mas aos poucos foi perdendo as forças, sobretudo depois que os filhos precisaram servir o exército. Esta guerra não deveria estar acontecendo. Eva era da opinião de que Hitler não tinha tido uma mãe que realmente tivesse cuidado dele, por isso ele desconhecia a dor das mães cujos filhos tinham que ir à guerra, desconhecia o permanente medo de se perder um filho. Em um determinado capítulo, depois de Enno ter entrado no apartamento da esposa sem o seu consentimento, para se vingar da esposa por ela não ter lhe dado comida, ele lhe conta um dos atos funestos que o filho andava cometendo na SS: o filho pegava bebês judeus pelos pés lançando-os contra a carroceria de um carro. Trata-se do dilema da mãe ao saber que o filho, que fora uma criança de cachos loiros que ela levara ao circo quando pequeno, tornara-se um nazista fanático e iníquo. Para Eva Kluge foi pior perder o filho desta forma do que se ele tivesse morrido na guerra. Também ela perde o seu filho para o líder.
No decorrer do enredo surgem várias personagens, como Emil Barkhausen, um tipo ocioso, pernicioso, mau caráter, que possuía vários filhos com mulheres diferentes e sua mulher recebia visitas de homens diferentes. A Trudel, ex-noiva do filho falecido dos Quangels, militante, que a princípio se simpatizava com o comunismo e posteriormente tentou levar uma vida tranquila e isolada, sendo presa pela Gestapo devido aos cartões postais, dos quais ela nada sabia. A senhora Rosenthal, judia, cujo marido fora deportado, e ela sozinha vivia aterrorizada pela solidão, o medo e a vã esperança de rever o amado marido. A Sra. Rosenthal era submetida às mesquinharias dos Persickes e sofreu as consequências da tragédia que se seguiu. O comissário Escherich, que depois de vinte e quatro cartões terem sido distribuídos e ele sem descobrir os autores, foi deposto do cargo, humilhado e brutalmente agredido, e assim por diante.
O enredo foi filmado três vezes, as duas primeiras para a televisão: em 1962, na Alemanha Ocidental, sob a direção de Falk Harnack. E em 1970, na Alemanha Oriental, sob a direção de Hans-Joachim Kasprzik. A versão mais recente foi cinematográfica, em 1975, também na Alemanha Ocidental, sob a direção de Alfred Vohrer, tendo a famosa atriz Hildegard Knef no papel de Anna.
Característica que diferencia Cada um morre por si dos outros livros abordando a ditadura de Hitler é, em uma primeira leitura, o caráter diversificado e conflitual, subjetivo e inconstante das personagens que de bonzinhos passam a ser iníquos ou oportunistas ou de maldosos a bonzinhos. A ambiguidade revela o quão vulnerável é o homem, assim como as antagônicas facetas do ser humano. O que justifica, desta forma, o mérito de Hans Fallada, em Cada um morre por si, é a capacidade de relatar os acontecimentos atrozes, durante o regime nacional-socialista, com inusitada perspicácia e sensibilidade. 

UM CAPÍTULO | O correio traz uma notícia ruim

A carteira Eva Kluge sobe lentamente os degraus da escada do prédio à Jablonskistrasse, 55, está muito exausta, não porque a bolsa com as cartas pesa, mas porque na bolsa está uma destas cartas que ela odeia entregar. E agora, daqui a pouco, mais dois patamares, precisa entregá-la aos Quangels. A mulher com certeza já está espiando na porta. Desde mais de duas semanas fica esperando na porta, se não há nenhuma carta do campo de batalha para ela.
Antes de a carteira Kluge entregar a carta, escrita à máquina, tem que passar no Persicke, neste andar, e entregar a correspondência da “Observação do Partido Popular”. Persicke é advogado ou diretor político ou sabe se lá o quê no Partido. Apesar de Eva Kluge, desde que trabalha para o correio também fazer parte do Partido, confunde todos esses órgãos. Em todo caso, é preciso cumprimentar os Persickes com Heil Hitler e prestar atenção no que se fala. No fundo, isso é preciso em toda parte. É raro haver uma pessoa à qual Eva possa falar o que realmente pensa. Ela não possui nenhum interesse em política, é apenas uma mulher, e como mulher é da opinião que não se pare filhos neste mundo para serem baleados e mortos. Também um lar sem um marido não tem valor. No momento ela nada possui, nem os dois filhos, nem o marido, nem o lar. Ao invés disso precisa calar a boca, ser cautelosa e entregar cartas asquerosas do campo de batalha que não são escritas à mão, mas à máquina, e possuem como remetente o Regimento Adjunto.
Ela toca a campainha dos Persickes, cumprimenta-os com Heil Hitler e entrega a correspondência ao velho “pinguço”. Ele possui na lapela do paletó a suástica e a Insígnia Nacional (ela sempre se esquece de colocar a suástica), e pergunta: “quais as novidades?”
Ela responde com cuidado: não sei. Acho que a França capitulou, e logo indaga: será que os Quangels estão em casa?
Persicke ignora a pergunta. Abre o jornal apressado. Tá aqui, sim: a França capitulou. Gente! Mulher! E você diz assim sem mais nem menos, como se estivesse vendendo peixe. Precisa falar logo, dizer pra todo mundo, isto convence até os maiores cabeças duras! Vencemos também a segunda batalha relâmpago, e agora, na Trumeau, na Inglaterra! Em meio ano os ingleses estarão aniquilados, e então vamos ver como a vida vai ficar com o nosso líder! Os outros podem sangrar e nós seremos os donos do mundo! Entre, moça, tome uma conosco! Amelie, Erna, August, Adolf, Baldur, venham todos aqui! Hoje não se trabalha! Nenhum trabalho! Vamos nos emborrachar, hoje a França capitulou e à tarde talvez vamos lá na velha judia, no quarto andar, e a filha da puta vai ter que nos oferecer café e bolo! Eu digo a vocês, a velha deve tá arrasada, agora que a França capitulou, agora eu não tenho mais nenhuma pena! Somos os donos do mundo e todos têm que se arrastar diante de nós!
Enquanto Persicke continua falando em um tom cada vez mais entusiástico diante de sua família já enchendo os primeiros copos de aguardente, há muito a carteira subiu ao andar de cima e tocou a campainha na porta dos Quangels. Ela possui a carta na mão, preparada para entregar de imediato. Mas teve sorte, não foi a mulher que lhe abriu a porta, que quase sempre troca algumas palavras simpáticas com ela, mas o homem com o olhar perscrutador, cara de pássaro, boca de lábios finos e olhos gélidos. Mudo, ele pega a carta em sua mão e lhe bate a porta na cara, como se ela fosse uma ladra querendo espionar o que haveria para furtar lá dentro. Mas Eva Kluge levanta os ombros para tais coisas e vai embora descendo as escadas de novo. Algumas pessoas são assim mesmo, o homem nunca lhe dirigiu uma única palavra todo esse tempo em que ela entrega o correio na Jablonskistrasse, nem mesmo Heil Hitler ou boa tarde, entretanto, ele também possui um cargo na Frente de Trabalho, como é do conhecimento dela. Ah, deixa ele! Ela não pode mudá-lo, não conseguiu mudar nem o próprio marido que desperdiça seu dinheiro nos bares e nas apostas e que só aparece em casa quando está totalmente arrasado.
Os Perickes deixaram a porta aberta na agitação e do apartamento escuta-se o ruído dos copos e de festejo da vitória. A carteira passa pela porta aberta e continua descendo. Neste momento ela pensa que a notícia pode ser boa, pois com a rápida vitória contra a França a paz deve estar cada vez mais próxima, assim os dois filhos regressarão e ela poderá lhes proporcionar um lar. Pensando assim, apenas uma coisa lhe incomoda, a impressão de que pessoas assim como os Perickes se sairiam bem. Ter pessoas assim como superiores e ter que calar a boca o tempo todo, jamais poder dizer como uma pessoa se sente, pareceu-lhe não ser nada correto. Ainda pensa furtivamente no homem com cara de águia, para o qual acabou de entregar a correspondência, e que também possui um posto superior no partido. Pensa na velha judia, a Sra. Rosenthal, lá em cima no quarto andar, cujo marido a Gestapo levara há duas semanas. É de se dar pena! Antigamente os Rosenthals possuíam uma loja de roupas à Prenzlauer Allee, a qual foi arianizada e agora ainda lhe levavam o marido que devia ter lá por volta dos setenta anos. Com certeza os dois velhinhos nunca fizeram nada de mal a ninguém, mas sempre anotavam, incluindo Eva Kluge, quando alguém não tinha dinheiro para as roupas de criança. As mercadorias dos Rosenthals não eram, entretanto, pior ou mais caras do que nas outras lojas só porque eles eram judeus. Agora a velhinha está lá em cima totalmente sozinha no apartamento sem coragem de sair à rua. Somente quando escurece ela faz as compras carregando a estrela de Davi. Provavelmente passa fome. Não, pensa Eva Kluge, mesmo que tivéssemos vencido a França duas vezes, não é justo como as coisas estão indo por aqui…
Chegou à próxima casa onde continuou a entregar a correspondência.
O mestre de fábrica, Otto Quangel, entrou com a carta no recinto e depositou-a sobre a máquina de costura. Tá aqui, diz apenas, deixando à mulher o direito de abrir a carta. Sabe o quanto ela é apegada ao único filho. Ele se encontra diante dela, com o fino lábio inferior retraído entre os dentes, esperando o brilho alegre de seu semblante. Adora o jeito taciturno, quieto e rude da mulher.
Ela abre a carta. Por um momento o seu semblante realmente se ilumina, depois se apaga ao perceber a escrita à máquina, a fisionomia se contrai. Lê devagar, bem devagar, como se tivesse pavor de cada palavra por vir. O marido se curvou e tirou as mãos dos bolsos. Os dentes estão agora firmes sobre o lábio inferior, e ele prevê algo ruim, permanecendo completamente imóvel no recinto. Então a respiração da mulher começa a ficar ofegante. De repente ela dá um grito abafado, um grito que o seu marido jamais ouvira, sua cabeça cai para frente, primeiro bate na roda da máquina de costura, em seguida afunda entre as dobras do tecido ocultando a carta nefasta.
Ele esta há dois passos atrás dela, logo deposita a mão de trabalhador nos seus ombros, o que não lhe é nada habitual. Sente que a sua esposa treme no corpo todo. Anna! Exclama, Anna, por favor, e espera um momento, em seguida se atreve a perguntar: é alguma coisa com o Otto? Está ferido, como? Muito grave? O tremor no corpo da mulher diminui, mas nenhum tom sai de seus lábios, nenhum movimento de que levantaria a cabeça para vê-lo.
Ele a observa da cabeça aos pés, a mulher tornou-se bem magra durante esses anos que estavam casados. Enfim, eram velhos, se aconteceu alguma coisa com Otto ela ficaria sem ninguém em quem se apegar. Só teria ele, e ele sempre achou que não havia nada para se amar nele. E jamais conseguiu, com nenhuma palavra, dizer-lhe o quanto precisava dela. Mesmo agora não consegue acariciá-la, ser um pouco amoroso, consolá-la. Simplesmente deposita a mão pesada e forte sobre a sua cabeça, forçando-a levemente para ver o seu rosto e diz meio firme: “O que escreveram? Você vai me dizer, não é Anna?” Agora que os seus olhos estavam próximos dos dele, ela não o vê e possui as pálpebras quase cerradas. O rosto está pálido, desapareceu o viço de frescor. Também a carne dos ossos parece ter sido arrancada. É como se ele visse a cabeça de um defunto. A face e a boca tremem, aliás, o corpo inteiro como que atingido por um terremoto interior.
Um medo profundo lhe abate ao olhar para este rosto tão conhecido que agora se tornou tão estranho, ao sentir o seu coração bater cada vez mais forte e ao perceber a sua completa incapacidade de lhe proporcionar um pouco de consolo. No fundo era um medo ridículo perante a sua mulher, o receio de que ela pudesse gritar ainda mais alto e descontrolado do que acabou de gritar. Ele sempre gostou de silêncio. Ninguém devia perceber nada na casa dos Quangels, muito menos alguma evasão de sentimento. Não! E mesmo com este receio o marido não consegue dizer nada mais além do que já disse anteriormente: o que escreveram? Diga Anna!
A carta está lá aberta, mas ele não se atreve a tocá-la. Precisaria soltar a cabeça da mulher e sabia que a cabeça, em cuja testa surgiram duas manchas de sangue, cairia de novo sobre a máquina. Contém-se e pergunta mais uma vez: o que é com o Ottozinho?
É como se este diminutivo, nunca usado pelo marido, arrancasse a mulher do mundo da dor. Ela engole algumas vezes até abrir os olhos intensamente azuis e que agora parecem desbotados. Com o Ottozinho? Murmura. O que poderia ter acontecido com ele? Não aconteceu nada com ele, não existe mais Ottozinho, só isso!
O marido exclama apenas um “oh!”, um profundo “oh!”, do fundo do coração. Sem perceber soltou a cabeça da esposa e pegou a carta, seus olhos fixaram as letras sem entretanto lê-las.
A mulher arranca a carta de suas mãos, sua voz transformou-se subitamente, com raiva rasga a carta em pedacinhos, um monte de pedacinhos e lhe grita na cara: o que você ainda quer ler nesta porcaria, estas mentiras horrorosas que eles escrevem? Que ele morreu uma morte heroica para o seu líder e povo? Que ele era um exemplo de soldado e camarada? Isto que você quer ouvir deles, quando bem sabemos que o Ottozinho preferia ficar consertando o rádio em casa e que ele chorou quando teve que ir para o exército! Quantas vezes ele não disse que preferia ter a mão direita amputada só para se livrar do exército! E agora um exemplo de soldado e uma morte heroica! Mentira, tudo mentira! Mas foi isso o que vocês conseguiram com esta guerra de merda, você e este seu líder!
Neste momento a mulher está diante dele, menor do que ele, e nos seus olhos brilham faíscas de ódio.
Eu e o meu líder? Murmura totalmente vencido por este ataque. Por que ele é de repente o meu líder? Eu nem estou no partido, só na Frente de Trabalho e todos precisam fazer parte dela. E fomos nós dois que o elegemos e você também tem um posto no Comitê Feminino. Ele fala de um jeito estranho, devagar, não tanto para se defender, mas para esclarecer as coisas. Não entende como a mulher de repente vem com esta acusação contra ele. Sempre foram da mesma opinião.
Mas ela diz transtornada: pra que você é o homem da casa e manda em tudo e tudo precisa ser como você quer, até quando eu quero dar uma sugestão para guardar as batatas no porão, precisa ser sempre como você quer, nunca como eu quero. E com relação a algo assim tão importante você decide errado? Mas você é um sonso, só quer a sua tranquilidade, não quer nunca chamar a atenção de ninguém. Você faz o que todo mundo faz, e se alguém grita “o líder manda, a gente segue” aí você corre atrás igual um cordeiro. E nós precisamos correr atrás de você de novo! Mas agora o meu Ottozinho está morto, e nenhum líder do mundo vai trazê-lo de volta, e você também não!
O marido ouve tudo sem contradizer, nunca foi um homem de controvérsias e além do mais acredita ser a dor que a incita a falar dessa maneira. Está quase alegre por ela o provocar, por deixar fluir a sua tristeza, e apenas retruca: alguém vai precisar falar com a Trudel.
A Trudel é a namorada do Ottozinho, quase a sua noiva. A Trudel diz mãezinha e pai quando se dirige a eles, visita-os frequentemente à noite, mesmo agora que o Ottozinho não está, e bate um papo com eles. Durante o dia ela trabalha em uma fábrica de uniformes.
A menção da Trudel logo induz Anna Quangel a outros pensamentos, lança um olhar para o relógio brilhando na parede e indaga: você consegue até o término do seu expediente?
Tenho hoje o expediente de uma até vinte e três, eu consigo.
Está bem, então vai, mas apenas traga-a até aqui, não lhe diga nada ainda sobre o Ottozinho. Eu mesmo quero dizer-lhe. A sua comida ficará pronta ao meio-dia.
Então eu vou e falo com ela, que ela deve passar aqui hoje à noite, diz, mas ainda não vai embora, permanece observando o seu rosto amarelado, branco, doentio. Ela o olha de novo e, por um momento, fitam-se mutuamente, estas duas pessoas que estão juntas quase há trinta anos, sempre unidas. Ele de poucas palavras e sossegado, ela trazendo um pouco de vida ao apartamento. Mas por mais que se fitem agora, não possuem mais nada a dizer um ao outro, então ele consente com um gesto movendo a cabeça e sai.
Ela ouve a porta bater. Mal ele sai volta-se à máquina de costura para juntar os pedacinhos da carta fatal. Tenta reconstituí-la, mas logo percebe que demoraria muito tempo, antes de qualquer coisa precisa preparar o almoço. Coloca os pedacinhos cuidadosamente dentro do envelope e o guarda no interior do livro de cantos. À tarde, quando Otto realmente estivesse ausente, ela teria tempo de colar os pedacinhos. Mesmo que se trate de mentiras bobas, malvadas, são as últimas coisas que possui do Ottozinho! Apesar de tudo, guardaria a carta e mostraria a Trudel. Talvez ela pudesse chorar, está tudo entalado e queimando no peito. Seria bom se pudesse chorar! Então, movimenta a cabeça com raiva e segue para o fogão.

Viviane de Santana Paulo (Brasil, 1966). Poeta e ensaísta, residente na Alemanha. Publicou Passeio ao longo do Reno (2002), Estrangeiro de mim (2005), e Depois do canto do gurinhatã (2010). Contato: vsantanapaulo@yahoo.com.br. Página ilustrada com obras de Kurt Seligmann (Suíça), artista convidado desta edição de ARC.



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