sexta-feira, 6 de março de 2015

Agulha Revista de Cultura | Fase II | Número 10 | Editorial


Nossa contribuição frente ao desvario

Pelos idos do que muitos supõem tenha sido a nossa entrada na Modernidade - não há prova alguma de que tenhamos deixado de ser caipiras -, intelectuais brasileiros achavam engraçadinho dizer que não sabiam o que queriam, mas sim o que não queriam. Um leitor outro dia nos indagou: Findo o período PT, o que viria em seu lugar? A julgar pela boa panorâmica da crônica política nacional, permanecemos estancados no ardil de não sabermos o que queremos, mas sim o que não queremos.
Porém o que há de verdadeiro nessa decantada e histórica consciência do que não queremos? Em 1971, na reinauguração do estádio de futebol da Fonte Nova, na Bahia, diante do ruído súbito provocado pelo estouro de um refletor, ouve-se o grito de um torcedor, anunciando que o estádio estava caindo. Seguiu-se um dos mais violentos desastres na história do futebol brasileiro. Em 2015 inúmeros torcedores assustados gritam em favor da defenestração não apenas da atual presidente, mas sim do partido que ela representa.
Na última frase nos deparamos com dois exemplos incontestes de nosso caipirismo: a defenestração - quando se faz necessária perante a lei - é um ato irresponsável quando não propõe algo ou alguém que substitua o titular a ser expurgado; nenhum presidente de país pode representar um partido. No entanto, a realidade brasileira certamente ganhou muita experiência desde os idos dos anos '20 do século passado. Nisto avançamos, de algum modo, ao ponto em que o torcedor assustado foi substituído por arautos bem instruídos e posicionados em sítios estratégicos. Arautos que anunciam o desastre sob encomenda.
A Semana de Arte Moderna expurgava o passado da mesma forma que também o fez o Concretismo - este caso ainda pior, pois considerava expurgável apenas o nosso passado -, do mesmo modo irrefletido com que agora muitos querem simplesmente expurgar o presente. Desnecessário lembrar que a defenestração do PT, por exemplo, por mais que se faça inadiável, em muito interessa ao PMDB. Vazios gestados por este tipo de comportamento alienante costumam ser preenchidos por um extenso período de desastre, cultural ou político.
Ou seja, antes intelectuais e artistas não sabiam o que queriam, embora declarassem saber o que não queriam. Agora esta péssima influência se alastrou por toda uma sociedade que segue pagando um alto preço por não ter se organizado. O caipirismo resultou em tiro no pé. A crença em que Deus seja brasileiro ou no Brasil como um país do futuro incorpora-se ao nosso relicário de barbarismos, da mesma ordem de outras vorazes plaquetas publicitárias que seguem nos derrotando. Recordemos aqui duas clássicas: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil, e o inesquecível cinismo do Ame-o ou deixe-o.
Não à toa a lírica brasileira acabou aderindo ao trocadilho. Outro dia um dos editores da Agulha Revista de Cultura recebeu uma simpática postagem no Feicibuquinho, que dizia: "enquanto muita gente faz só exercício de caligrafia, esse cara aí escreve". Não é o elogio que conta aqui, mas antes a referência ao exercício de caligrafia. O trocadilho disfarçou em estética um golpe publicitário em nome de um capricho, de um relaxo, enfim, em nome de um alheamento astuto. Levamos para cativeiro doméstico uma besta que se reproduziu em escala industrial, de tal modo que o poema-piada dos anos idos é a matriz de um insalubre camarão de tanque que grafou tolices como: não discuto / com o destino / o que pintar / eu assino. Ou as frases de muro, do tipo: Se votar mudasse seria proibido. Este, por sinal, é melhor flash poético e nos leva a melhor reflexão, não há dúvida.
A poesia brasileira, assim como a política, textualmente esgotou o pavio de seu entendimento de si mesma, pela simples razão de que uma casta intelectual resolveu tornar o país um lugar aprazível para seus exercícios de caligrafia. Que siamesas que agora as compreendemos, tão castas em sua recorrente declaração ao modo do não sabermos o que somos, mas sim o que não somos. Contraparodiando o título de um disco da Lucinda Williams, no Brasil o espírito jamais se encontra com o osso. Todos estamos aqui ou ali. Até hoje não sei por que não elegemos a metamorfose ambulante do Raul Seixas como a metáfora representante de nossa história.
Porque afinal queremos ser representados por algo. Não suportamos a ideia de representarmos a nós mesmos.

Os Editores



ÍNDICE DESTA EDIÇÃO


ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Da poética Shrapnel
ALFONSO PEÑA | Amirah Gazel: maniquíes, automatismo colectivo y megalópolis del inconsciente…
ANDRÉ COYNÉ | Três modos de recordá-lo
CLAUDIO WILLER | Aproximações a Jorge de Lima: o surrealismo
ENTRE CARLOS 2009- 2012 | Mensajes de Carlos M. Luis a Carlos Barbarito
FLORIANO MARTINS | A arte em Valdir Rocha
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2015/03/floriano-martins-arte-em-valdir-rocha.html

JAVIER PAYERAS | Actuar una ausencia: Luis Cardoza y Aragón
JUAN CARLOS OTOÑO | Celia Gourinski: testimonios sobre el Grupo Surrealista Argentino 
LUCILA NOGUEIRA | Contra o primado da pseudonímia no estudo da poesia de Fernando Pessoa
OMAR CASTILLO | En la escritura de otros
PAULO CÉSAR PEÑA | Álex Morillo habla de la obra de Jorge Eduardo Eielson

ARTISTA CONVIDADO | FRANKLIN FERNÁNDEZ | Entrevista a Fabio Rincones: La muerte es un cambio continuo


Página ilustrada com obras de Fabio Rincones (Venezuela), artista convidado desta edição de ARC.



Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 10 | Março de 2014
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
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