sexta-feira, 6 de março de 2015

FLORIANO MARTINS | A arte em Valdir Rocha


Valdir Rocha é um grande amigo. A curiosa revelação com que inicio este pequeno rol de reflexões acerca de sua arte não diz respeito à minha relação de amizade com o artista. Em primeiro lugar a sua amizade se confunde com uma obsessão valiosa à criação. Intuo que Valdir crê na realidade da obra de arte como um mundo constantemente refeito, em estado inesgotável de expansão, a tal ponto que a arte como ele supostamente a entende carece de ponto final. Mesmo assim, ele assina e dá nome a cada desenho, gravura, escultura. Não é uma contradição, embora encerre em si um mistério. O mistério polido, pintado ou patinado em bronze ocupa a primeira casa dessa enganosa contradição.
O modo como recorta a figura em uma dilacerada tridimensionalidade nos leva à visão que temos de nosso assento na plateia enquanto se desenrola a ação em um teatro. Ao visitar seu ateliê foi esta a impressão que me afiançou o modo como dispõe em prateleiras de estante a sua coleção de esculturas. A mesma que nos remete às páginas desse mesmo acervo publicado em livro. Há uma tridimensionalidade incontestável, porém temos que nos confortar com a dimensão de seu mistério na forma como ele se nos revela, graças à sua visão frontal. É um truque da imagem. Não que a arte se resuma a ilusionismo, mas bem sabemos o quanto que ela se utiliza desse recurso cênico.
A segunda casa de sua inquietude parece levitar um palmo acima da superfície de águas-tintas e águas-fortes. Dá-nos a impressão de que o metal escorre pela imagem prenunciada e não que tais visões tenham sido sulcadas por um ácido pacto com a linguagem. Em suas gravuras em metal Valdir Rocha mais me parece que se ocupa em elucidar os negativos da criação. O pensamento se define por sua ambiguidade, como um outro truque, seja o da raspagem ou do relevo fundido. Camuflagem ou fundo falso? Um segredo que a esfinge que ele ininterruptamente modela se nega a revelar.
Um breve intervalo na sequência de casas, por conta de minha referência a uma esfinge. Se olharmos bem para as cabeças inúmeras que pinta, esculpe, grava, desenha Valdir Rocha logo seremos visitados por uma vertigem: é sempre outra a figura que nos mira ou que nos permite mirar. No momento em que concluímos algo em favor de uma esfinge é outro o personagem que se fixa em nosso olhar. É como se o artista nos alertasse para a ausência de dureza na matéria. Como se dissesse - até mesmo garantisse - que nosso único pacto possível é com a metamorfose.



Intervalo findo, chegamos à terceira casa, o sítio mais confortável da alma de Valdir Rocha: o desenho. Aguadas, rasgões, grafites se somam ao olhar desconfiado de casulos e andarilhos. Em tal ambiente ele recorta suas feras anímicas, se delicia em tingir enigmas, escava álibis, confunde a nossa percepção, desafia a nossa incredulidade. A arte é mesmo o território do possível revelar-se impossível. A arte é o que sempre esteve conosco e nunca demos pela conta. Como um nanquim sobre plástico transparente ou um grafite sobre pedra. A arte indo ao mais recôndito passado em que o tempo tem uma mínima lembrança de si mesmo e ali descobre o mesmo rosto com que o artista vislumbra o futuro.
As casas estão completas e o primeiro que percebemos é que não fomos intrigados ou descartados pela ilusão. A arte não é estática e sim errática. Não é um jogo de palavras, mas antes um bailado existencial que não aceita a submissão ou o alheamento. Valdir Rocha não aceita o argumento apolíneo de que seu traço esteja a compor uma espécie de figurativismo inusitado, o que seria outra forma de render-se a uma ortodoxia. Se mesclamos as páginas de suas gravuras, pinturas, esculturas, desenhos, vemos que é outra a teatralidade que evoca através de máscaras, totens, obeliscos, perfis. A raiz simbólica de sua obra não está a serviço do mito. É um enigma em movimento. Por isto que não se completa no título ou assinatura de cada obra em isolado. E tanto sabe disto que evita datar as obras, pelo que se postam como frutas de um pomar do instante, ressonantes na eternidade.



Outra pincelada da ilusão está na remissão. A obsessão de Valdir Rocha não se acasala com as pinturas rupestres ou a necessidade de filiação a padrões de linguagem, de que são exemplo as escolas artísticas. Não que se diga que finca sua matriz em si mesma, desconhecendo a análise sutil do tempo. Não é isto. A voz inconfundível de um artista é parte tão íntima da história da humanidade que se confunde com todas as perspectivas e nenhuma. Ou seja, traz em si o mundo inteiro sem que o repita. Não há arte longe deste princípio essencial da metamorfose. Cada artista é sempre o outro sem deixar de ser ele mesmo. Os outros. Todos.
O traço enganosamente reiterativo que caracteriza a obra de Valdir Rocha é outra peça de cenário de seu ilusionismo. A centelha que infiltra em nosso espírito uma obra revolucionária independe de sua submissão a ritos de qualquer ordem. O próprio termo revolucionário se desgastou por infiltração de conceitos distorcidos. O obsessivo neste artista assume uma conotação do que inicialmente chamei de amizade. É imensa a família de recursos que ele abriga sob as asas de sua inquietude. Dele se pode dizer que busca mais o encontro com o inesperado do que a sagração de algum ambiente intelectual estabelecido. O que é bom de ver em sua obra é que opera em uma vertente distinta daquela ansiedade mundana, a golpe de uma lógica comercial, de atuar sob a pretendida guarda da ocasião.
A arte não é contra a ocasião, porém jamais se submete a ela. Eu penso nos motivos dessa vertigem irrefreável da criação em Valdir Rocha como uma resistência a não manchar a existência, a ela lhe dedicando um traço que a redefina. E para tanto é preciso prevalecer o acaso, a experiência, o sonho, o desejo, e a certeza, em especial, de que não cristalizaremos jamais a nossa passagem por este território. A arte é a afirmação de que toda realidade é contestável. Os motivos da arte não se resumem a seus aforismos e sim à singularidade com que observamos o mundo pela lente da sugestão. Olhando bem, todo artista é obsessivo, e alguém poderia difamá-lo dizendo que é reiterativo. Este não é o ponto.



As imagens na arte são uma deformação da realidade. Em tese, a realidade rejeita o vazio com que lhe mira a arte. A existência humana está como que destinada a um plano de objetivos comuns, no que diz respeito ao credo, à ciência e ao modo com que se apresenta em sua rotina pública. Mais do que dissipar hiatos ou implodir confessionários, o que faz a arte é dar ao horizonte uma tipologia elementar de contrastes. Acho que Valdir Rocha é um artista que compreende essa dimensão poética como algo de uma precisão invejável. Sua obsessão é a marca arriscada de uma harmonia. Uma harmonia que nos desafia a outra perenidade de resultados. Não há unidade estática. O mundo é definido por uma caligrafia do caos. Valdir Rocha transforma-se a todo instante nele mesmo em busca de um outro que o repercuta e transgrida.

Breve Cronologia

Valdir Rocha (São Paulo, 1951). Artista plástico, produtor e editor. Contatos: e-mail: vr@valdirrocha.art.br | www.valdirrocha.art.br.

2014
Exposição olhares, no Espaço Cultural UNESP, 29 de abril a 12 de maio, dentro do Projeto 15 x 15, em parceria com a APAP-SP, com texto de apresentação de Oscar d'Ambrosio.
2013
Lançamento do vídeo, de sua direção, Arthur Bispo do Rosário: Organizador do Caos, gravado durante a 30ª Bienal de São Paulo, com depoimentos de Antonio Carlos Abdalla, Antonio Zago, Célia Musilli, Claudio Willer, Ferreira Gullar, Jorge Anthonio e Silva, José Henrique Fabre Rolim, Juliana Motta, Marta Dantas, Omar Fernandes Aly, Oscar D’Ambrosio, Ricardo Viveiros e Valdir Rocha.
Publicação do livro Confidências, com 228 páginas, no formato 26,5 x 26,5 cm, 4 x 0 cores, capa dura, com desenhos e pinturas de VR efetuados sobre exemplar do livro SÓS.
Lançamento do vídeo, de sua direção, Helena Armond e as Tranças da Vida (com depoimentos da poeta e vozes de Jorge Anthonio e Silva, Rogério Martins e Valdir Rocha).
Indicado por diversos membros da Associação Brasileiro de Críticos de Arte, por iniciativa espontânea destes, para concorrer ao Prêmio Mário Pedrosa (para artista de linguagem contemporânea), juntamente com Dora Longo Bahia e Adriana Varejão (esta, depois premiada).
Publicação do livro Lembrança de homens que não existiam, em coautoria com Floriano Martins, ARC Edições, Fortaleza, 2013
2012
Publicado o livro Só sobre SÓS, coordenado por Péricles Prade, pela editora Letras Contemporâneas, de Florianópolis-SC, com 17 textos de Álvaro Cardoso Gomes, André Carneiro, Carlos Perktold, Claudio Willer, Guilherme de Faria, João de Jesus Paes Loureiro, Jorge Anthonio e Silva, José Neistein, Marcelo Grassmann, Mirian de Carvalho, Nelson Screnci, Oscar D’Ambrosio, Paulo Cheida Sans, Péricles Prade e Sandra Makowiecky, todos com ensaios e depoimentos em torno do livro SÓS.
Dirigiu e lançou o vídeo O Imaginário de Wega Nery, com depoimentos de Carlos Soulié do Amaral, Jacob Klintowitz, Milu Molfi, Olívio Tavares de Araújo, Raul Forbes, Ricardo Viveiros, Roberto Duailibi, Silvia Duailibi e Tão Gomes Pinto.
Encerramento das atividades do Lugar Pantemporâneo (com a permanência do selo editorial), para se dedicar mais exclusivamente às suas atividades artísticas e editoriais.
2011
Elaboração do livro Confidências (com 224 páginas, além das páginas de rosto e capa, no formato 26,5 x 26,5 cm), em que redesenhou com lápis china marker e nanquim todas as páginas de exemplar impresso do livro SÓS.
2010
Exposição individual Indivíduos, juntamente sós (pastel, crayon e lápis sobre papel tingido na massa), no Lugar Pantemporâneo, em são Paulo, com textos de Álvaro Alves de Faria, Eunice Arruda, José Armando Pereira da Silva, Nelson Screnci e Thereza Christina Rocque da Motta.
Exposição individual Criaturas que não existiam (nanquim e lápis dermatográfico sobre papel impresso).
Lançamento do livro SÓS (com 224 páginas, além das páginas de rosto e capa, no formato 26,5 x 26,5), em que se reproduzem pinturas e desenhos criados sobre páginas de um livro impresso - Images of Marilyn, Bath: Parragon, 2008-, que era um volume com registros fotográficos em branco e preto e pouco texto, onde a célebre atriz aparece como protagonista.
2009
Juntamente com Lídia, sua esposa, funda o Lugar Pantemporâneo, em São Paulo, espaço voltado à divulgação de imagens, livros e ideias, inclusive exposições de artes visuais e edição de livros.
Exposição individual Esculturas, no Lugar Pantemporâneo.
2007
Jorge Anthonio e Silva publica o livro A Torre de Babel de Valdir Rocha, em torno de uma única escultura, pela Editora Escrituras.
Álvaro Alves de Faria publica o livro Babel, com 50 poemas inspirados na escultura Torre de Babel, de Valdir Rocha. Por esse livro, o poeta Álvaro Alves de Faria ganhou o prêmio de melhor livro de literatura brasileira, do ano de 2007, outorgado pela Academia Paulista de Letras.
2006
Lançamento do livro Cárcere Privado, com reprodução de 100 gravuras em metal e textos de Fabrício Carpinejar (orelha) e posfácios de Alberto Beuttenmüller, Carlos Perktold e Nelson Screnci.
2005
Exposição individual A Memória Primordial de Valdir Rocha (esculturas, desenhos e gravuras em metal), na Galeria da ACAP, em Florianópolis, com texto de apresentação de Osmar Pisani, novembro/dezembro.
Lançamento do livro Títeres de Ninguém (Florianópolis: Letras Contemporâneas), com 61 textos em versos e igual número de reproduções de gravuras em metal.
2004
Lançamento do livro A Escultura de Valdir Rocha, de Mirian de Carvalho (São Paulo, Escrituras), com 105 reproduções.
Lançamento do livro O Desenho de Valdir Rocha, de Péricles Prade (São Paulo, Escrituras), com 156 reproduções.
Exposição individual Impressões Digitais (esculturas), na Galeria da Paulista - Conjunto Cultural da Caixa, em São Paulo, com texto de apresentação de Jorge Anthonio e Silva, outubro/dezembro.
Exposição individual Valdir Rocha - Esculturas e Desenhos, na Galeria de Arte IBEU, no Rio de Janeiro, com texto de apresentação de Mirian de Carvalho, outubro/novembro.
2003
DVD Torre de Babel de Valdir Rocha, dirigido por Américo Córdula.
DVD Leitura Tátil de Esculturas de Valdir Rocha, por Glauco Mattoso.
2002
Lançamento do livro Gravuras em Metal (São Paulo: Artemeios) com texto de apresentação de Carlos Soulié do Amaral, com 127 reproduções.
Lançamento do livro Cabeças (São Paulo: Arte Aplicada), com reproduções de pinturas e esculturas em bronze, texto de apresentação de Péricles Prade e texto de orelha de Sabina de Libman.
Exposição individual Domínios e Dominações (xilogravuras e gravuras em metal, inclusive matrizes), na Sala Mário Pedrosa, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, com texto de apresentação de Péricles Prade, setembro.
2001
Lançamento do livro Vagas Lembranças (São Paulo, Quaisquer), com 27 xilogravuras de sua autoria, acompanhadas de poemas de Álvaro Alves de Faria, criados a partir daquelas.
Lançamento do livro Nus Frontais (São Paulo, Quaisquer), com 16 xilogravuras de sua autoria, acompanhadas de poemas de Raquel Naveira, criados a partir daquelas.
Lançamento do livro Sete (São Paulo, Quaisquer), com 25 xilogravuras de sua autoria, acompanhadas de poemas de Celso de Alencar, criados a partir daquelas.
Lançamento do livro Memórias (São Paulo, Quaisquer), com 17 xilogravuras de sua autoria, acompanhadas de poemas de Eunice Arruda, criados a partir daquelas.
Lançamento do livro Xilogravuras (São Paulo, Escrituras), com 113 xilogravuras reproduzidas e apresentação de Nelly Novaes Coelho.



1998
Lançamento do livro Fui Eu (São Paulo: Escrituras), volume em que 41 poetas brasileiros, sob a coordenação de Eunice Arruda, escrevem poemas em torno de uma única pintura que lhes serve de ponto de partida. Participam do volume: Alcides Buss, Álvaro Alves de Faria, Álvaro Faleiros, André Carneiro, Anibal Beça, Aristides Sergio Klafke, Astrid Cabral, Beatriz Helena Ramos Amaral, Carlos Nejar, Celso de Alencar, César Leal, Cláudio Willer, Donizete Galvão, Dora Ferreira da Silva, Eunice Arruda, Fernando Py, Flávia Savary, Iacyr Anderson Freitas, Ieda Estergilda de Abreu, João de Jesus Paes Loureiro, Jorge Tufic, Leila Echaime, Leila Miccolis, Lindolf Bell, Lucia Ribeiro da Silva, Luciano Maia, Maria Lucia Dal Farra, Maria Rita Kehl, Neide Arcanjo, Núbia N. Marques, Olga Savary, Orides Fontela, Renata Pallottini, Rodrigo de Haro, Rubens Jardim, Ruy Proença, Samuel Penido, Terêza Tenório, Ulisses Tavares, Urhacy Faustino e Virgilio Maia, com apresentação de Marlise Vaz Bridi.
1996
Lançamento do livro Intimidades Transvistas (São Paulo: Escrituras) com reprodução de 80 de suas pinturas, ilustradas com poemas de 20 autores, a saber: Alonso Alvarez, Christiane Tricerri, Cristina Bastos, Eunice Arruda, Gonzaga Leão, Hamilton Faria, Helena Armond, Ives Gandra, Jorge Mautner, Marola Omartem, Neide Arcanjo, Nilson Machado, Olga Savary, Pedro Garcia, Raimundo Gadelha, Raquel Naveira, Renata Pallottini, Renato Gonda, Thereza Motta e Wilson Pereira, com apresentação de Aguinaldo Gonçalves. Nesse volume, inverte-se a ordem usual das edições em que desenhos ou pinturas ilustram textos anteriormente escritos: os poemas partem de algo sugerido pelas pinturas de Valdir Rocha, com elas se harmonizando.
1994
Lançamento do livro Mentiras, Verdades-meias e Casos Veros (São Paulo: Escrituras), mistifório em que juntou pequenos textos (aforismos etc.) com reproduções de pinturas, esculturas, desenhos etc.
1970
Exposição individual Os Primórdios, na Galeria do SESC, na Rua Doutor Vilanova, em São Paulo, com texto de apresentação de José Geraldo Vieira, setembro.

ALGUNS VÍDEOS COM A OBRA DE VALDIR ROCHA

c) CRIATURAS QUE NÃO EXISTIAM http://www.youtube.com/watch?v=TUbCt2deS1k
f)  INDIVÍDUOS JUNTAMENTE SÓS http://www.youtube.com/watch?v=ezJlS__N28Y



Floriano Martins (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta e tradutor. Um dos editores de ARC. Página ilustrada com obras de Valdir Rocha (Brasil).





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