segunda-feira, 6 de abril de 2015

CLAUDIO WILLER | Jack Kerouac e o primeiro On the road








Jack Kerouac
Quando Jack Kerouac morreu a 21 de outubro de 1969, aos 47 anos de idade, em Saint Petersburg, Flórida, famoso, porém isolado, decadente, pesadamente alcoólatra, deixou 19 dólares em sua conta bancária. Havia publicado alguns textos de circunstância como Satory in Paris, que saiu na Playboy, para fazer caixa. Dilapidara, é certo, o que ganhara, por beber de modo desenfreado e por mudar-se a toda hora – ele e sua mãe Gabrielle, amemére, em seu último ano de vida acompanhados por sua terceira esposa, Stella Sampas, movidos por uma difusa inquietação, não conseguiam residir por muito tempo no mesmo lugar.
Em maio de 2001, passadas pouco mais de três décadas da morte de Kerouac, o rolo com a primeira versão de On the Road – aquela escrita em três semanas, em abril de 1951 – seria arrematado em leilão por nada menos que dois milhões e quatrocentos e vinte mil dólares. Bateu o recorde do valor de originais literários. Mereceu cada dólar desse valor. Esse rolo original de On the Road acabaria sendo publicado em 2007, pela Viking Press, assim comemorando os 50 anos do lançamento da sua versão final pela mesma editora.
On the Road na versão editada – aquela finalmente publicada em 1957, aqui traduzida como On the Road: Pé na Estrada (L&PM Pocket, 2008, tradução de Eduardo Bueno reedição, com mudanças, do que foi publicado pela Brasiliense em 1984 na tradução de Bueno e Antonio Bivar) – exerceria uma influência única.
No prefácio dessa edição brasileira, Bueno comenta esse impacto:

Bob Dylan fugiu de casa depois de ler On the Road. Chrissie Hynde, dos Pretenders, e Hector Babenco, de Pixote, também. Jim Morrison fundou The Doors. No alvorecer dos anos 90, o livro levou o jovem Beck a tornar-se cantor, fundindo rap e poesia beat. Jakob Dylan, filho de Bob, deixou-se fotografar ao lado da tumba de Jack em Lowell, Massachusets, como o próprio pai o fizera, vinte anos antes. Em 1992, Francis Coppola (o produtor), Gus van Sant (o diretor) e Johnny Depp (o ator) envolveram-se numa filmagem nunca concretizada do livro – e, apesar da diferença de idade, os três compartilharam o mesmo fervor reverencial pela obra.

Aliás, esse projeto de filmagem de On the Road por Coppola vai se transformando em novela infindável ou saga inconclusa. Pelas notícias mais recentes, a direção agora ficaria a cargo de Walter Salles. Acredito que, apesar da paixão e empenho de Coppola, o filme nunca será realizado. Pelo seguinte: é muito; as centenas de páginas de On the Road, narrando os cinco ciclos de viagens de Jack Kerouac, Neal Cassady e amigos pelos Estados Unidos e México, se viessem a ser filmadas como merecem, com atenção ao detalhe, incorporando o estilo de Kerouac, são cinematograficamente inviáveis. Iriam requerer a dimensão dos filmes-epopéia, divididos em episódios, a exemplo do que os japoneses fizeram no momento de maior prosperidade de sua indústria cinematográfica, por volta de 1960. A forma para dar conta da transposição de On the Road para o meio audiovisual seria antes aquela das novelas e séries de TV: só assim caberia, sem trair o original. O criador de Apocalipse Now devia pensar nisso: afinal, hoje as mídias convergem no DVD.
Bueno ainda trata, no prefácio aqui citado, de repercussões propriamente literárias e artísticas de On the Road:

[...] toda uma legião de escritores, artistas, cineastas, dramaturgos e músicos – a geração que se multiplicou em muitas – seria profundamente influenciada pelo estilo e pelas visões de Jack Kerouac. Difícil imaginar a obra de Sam Shepard, de Bob Dylan, de Charles Bukowski, de Jim Morrison, de Lou Reed, de Tom Wolfe, de Bret Easton Ellis, de Joni Mitchell, de Wim Wenders, de Hunter Thompson, de Neal Young, de Jim Jarmush, de Jack MacInerney, de Beck, de Bobo, de Tom Waits, de Gus Van Sant, de Bob Wilson sem On the Road. Todos eles pagaram tributo à fraqueza fluídica e generosa do católico louco e místico que viu a luz nos trilhos e trilhas da América.

On the Road, inspirou autores, é certo; mas, principalmente, projetou-se na vida, na sociedade, contribuindo para mudanças de valores, de comportamentos. O que estava sendo oferecido, naquele leilão de 2001, não era apenas um original de obra, porém a matriz de um mito. Mais que qualquer outra obra literária, contribuiu para realizar a profecia de uma revolução de jovens de mochila às costas tal como proclamada em outra das narrativas de Kerouac, The Dharma Bums, Os Vagabundos Iluminados (tradução de Ana Ban, L&PM Pocket, 2007), em uma fala atribuída ao poeta Gary Snyder (Japhy Rider no livro):

Pense na maravilhosa revolução mundial que vai acontecer quando o Oriente finalmente encontrar o Ocidente, e são caras como nós que podem dar início a essa coisa. Pense nos milhões de sujeitos espalhados pelo mundo com mochilas nas costas, percorrendo o interior e pedindo carona e mostrando o mundo como ele é de verdade para todas as pessoas. [...] eu quero que meus vagabundos do Darma carreguem a primavera no coração.

Risques Pereira

Tais conseqüências, é claro, suscitaram controvérsia. Existe bastante crítica literária de qualidade tratando de On the Road, do restante da obra de Kerouac e da geração beat. Biografias, debruçando-se sobre a gênese e o processo de criação de On the RoadOs SubterrâneosDoctor Sax, etc, preenchem uma extensa prateleira de estante. Mas, se no Brasil On the Road circulou proporcionalmente mais que em outros países ibero-americanos e em Portugal, como o atestam as reedições, ainda assim não recebeu a atenção equivalente da crítica. O que se vê são as ocasionais manifestações desfavoráveis, negando, em tom depreciativo, o valor literário dessa narrativa, em especial, e da produção beat, em geral. Trata-se, para usar o termo bem chão, direto, de caretice, moralismo requentado, formalismo exacerbado, defesa da distinção acadêmica entre literatura e vida. Incapacidade ou recusa de perceber o quanto Kerouac, com toda a extensa lista de defeitos que lhe podem ser atribuídos, com todas as passagens em que é epígono de si mesmo, piegas, fácil, ao mesmo tempo é um autor absolutamente original. E isso, não só pelas viagens e aventuras, mas pelo estilo e relação com a língua; especificamente, com o inglês norte-americano.
É o paradoxo Kerouac: sua primeira língua foi o joual, um dialeto kanuk; conversava em francês dialetal com sua mãe, que nunca dominou plenamente o inglês – há um espirituoso testemunho de como eram as conversas de Kerouac com memére Gabrielle por sua segunda esposa, Joan Haverty, na excelente coletânea Women of the Beat Generation organizado por Brenda Knight (Conary Press, Berkeley, 1996). Foi aprender inglês na escola, a partir dos cinco anos de idade. Chegou a declarar que, escrevendo em inglês, pensava em francês. Isso se reflete em sua escrita: estrangeiro em seu país, operava com a língua inglesa toda, com uma amplidão vocabular espantosa. E desenvolveu uma sensibilidade especial para o som, para a prosódia. Daí resultou sua poesia, as séries dos blues, e tantas passagens simplesmente intraduzíveis, como Old Angel Midnight, além da obra máxima, o postumamente publicado Visions of Cody.
Esse descompasso entre as duas esferas, aquela da circulação e influência da obra, e sua recepção crítica e jornalística, é um dos motivos do presente artigo, chamando a atenção para o lançamento de On the Roado manuscrito original. Trata-se da edição daquele rolo, o que foi leiloado em 2001 e publicado em 2007, preparada por Howard Cunnell, agora lançado no Brasil pela L&PM (tradução de Eduardo Bueno e Lucia Brito). Um bloco só de texto, 256 páginas (as últimas seis, que haviam sido mastigadas por um cachorro, reconstituídas) sem parágrafos, sem divisão em partes e capítulos. Tal como Kerouac o havia concebido.
Edição cuidada. Vem com quatro estudos introdutórios, ocupando suas cem primeiras páginas. Apoio crítico com informações relevantes, que pode contribuir para compensar a desatenção da crítica. Algo para estudioso nenhum de teoria literária reclamar: há crítica genética (em Rápido desta vez: Jack Kerouac e a escritura de On the Road, de Howard Cunnell); leitura política e sócio-cultural (em Reescrevendo a América: a nação de “monstros subterrâneos de Kerouac, de Penny Vlagopoulos); filosofia (Em direção ao coração das coisas: Neal Cassady e a busca pelo autêntico, de George Moutaridis); pós-estruturalismo (A linha reta só o levará à morte: O manuscrito original e a teoria literária contemporânea, de Joshua Kupetz).
Risques PereiraHoward Cunnell narra a odisséia da publicação, o que aconteceu entre abril de 1951 e setembro de 1957, quando finalmente On the Road saiu. Uma história de recusas, agravadas pela confusão que o próprio Kerouac provocou, ao enviar a editores, alternadamente, originais de On the Road e de sua seqüência, o ainda muito menos palatávelVisions of Cody, que acabaria vindo à luz apenas em 1972, postumamente. A publicação de On the Road tornou-se possível pelo empenho do importante crítico Malcolm Cowley, também difusor da lost generation, pelo impacto do lançamento de Howl and other poems de Allen Ginsberg pela City Lights de Ferlinghetti (aqui, Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg, L&PM Pocket, tradução minha, reedição em 2005) e, principalmente, pelo fato da beat já estar na mídia, ter-se tornado assunto, desde os artigos de John Clellon Holmes, o autor de Go, a publicação de Jazz of the Beat Generation do próprio Kerouac, e a histórica leitura de poesia da Six Gallery de San Francisco em outubro de 1955 (com Ginsberg, Michael McClure, Philip Lamantia, Philip Whalen e Gary Snyder).
Principal motivo dessa demora na publicação de On the Road: o medo. A preocupação de editores com processos, com a censura dos tempos de guerra fria – tempos em que Henry Miller e D. H. Lawrence, entre outros, circulavam clandestinamente, proibidos de serem publicados nos Estados Unidos. Censura que acabaria derrotada com a vitória de Ginsberg e da City Lights no processo por obscenidade movido contra Howl and other Poems, em 1956.
O mais importante: nesse ensaio introdutório, Cunnell relata a gênese de On the Road e comenta seus proto-textos, os escritos que, cronologicamente, precederam ou acompanharam as viagens. A idéia de criar On the Road, alternadamente também batizado de The Beat Generation, vinha desde o término de The Town and the City (Cidade pequena, cidade grande, tradução de Edmundo Barreiros, L&PM, 2008) em 1948 (o livro sairia em 1950), e a percepção, por Kerouac, de que precisava empreender uma ruptura e um salto qualitativo, pois sua relação com a narrativa convencional se havia esgotado. Não deve, portanto, ser entendido apenas como crônica de viagens e aventuras. Kerouac relatou suas viagens em companhia de Neal Cassady, é certo – mas a recíproca também é verdadeira: viajou para realizar um projeto literário; afeiçoou-se por Cassady, aventureiro sexualmente sem limites e delinqüente juvenil por ver nele um personagem, e mais, uma fonte, uma matriz de estilo, com sua fala torrencial e improvisação verbal.
Além disso, como observa um de seus biógrafos, Yves Buin (em Kerouac, L&PM Pocket, 2007), entre a saída da universidade em 1942 e seu ingresso na Marinha, Kerouac já havia circulado pelos Estados Unidos, tentando chegar ao Sul de carona para refazer trajetos de Thomas Wolfe, um de seus narradores prediletos. Portanto, On the Road é uma tentativa de síntese, transformação de realidades pertencentes a duas esferas distintas, as viagens já feitas e aventuras já vividas, e os textos já escritos, em uma coisa só. Nada menos que a superação da dicotomia entre o mundo dos símbolos e aquele das coisas, o mundo “real”.
Como já observei em outras ocasiões (inclusive em ensaios sobre Ginsberg), a perspectiva de Kerouac e seus pares não era aristotélica, aquela da literatura como mimese, réplica do real; antes, era mitopoética. Onde o escritor realista supõe a distinção entre dois mundos, o da realidade e aquele da literatura que a descreveria, e o escritor formalista não vê interesse em examinar relações entre o mundo autônomo dos signos e a vida, o escritor visionário confunde os dois planos. Os beats são um exemplo de crença extrema na literatura, atribuindo-lhe valor mágico, como modelo de vida e fonte de acontecimentos, e não só de textos.
Conforme é bem exposto em outro dos ensaios de On the Road: o manuscrito original, de Joshua Kupetz, desde o começo Kerouac quis escrever uma epopéia: um espaço metafórico que lhe era inacessível por meio da prosa convencional; algo além da narrativa realista. Mitografia, a expressão utilizada em Jack’s Book (Gifford, Barry, e Lee, Lawrence, Jack’s Book: An Oral Biography, Penguin, 1979) para caracterizar On the Roados parceiros de salões de bilhar de Neal adquirem as qualidades dos companheiros do herói em uma antiga épica, afirmam. E não só parceiros de bilhar, mas vagabundos nas estradas e vagões de trem, e desconhecidos jazzistas negros, todos videntes, conhecedores de algum mistério, transmissores de mensagens cifradas. On the Road é obra épica, e o próprio Kerouac a designava como epopéia. É interessante: o estudo da mitologia nos mostra que heróis são destruídos pelos deuses, têm morte prematura, pela hybris, por ultrapassarem limites (e não só na mitologia grega clássica, porém de Gilgamesh a Siegfrid); semelhante destino pode ser associado ao final prematuro de Kerouac, o herói da beat, e de Cassady, o herói de Kerouac (morto pouco antes, em 1968).
Kerouac viajou para realizar o que escrevia e o que havia lido: viagens intra e intertextuais. Pegou a estrada para reverter o tempo e retornar às origens, tentando refazer, entre outros, os registros da impossível recuperação do passado de Proust (autor de cabeceira, dele e de Cassady) e de outro prosador-viajante, Thomas Wolfe; a poesia de longo curso de Whitman, poeta itinerante; a prosa de Dostoiévski, com sua religiosidade, sua mística do submundo e, principalmente, sua escrita paroxística; e do francês Louis-Ferdinand Céline, o autor de Voyage au bout de la nuit (algo como ‘viagem ao fim da noite’ ou ‘ao fundo da noite’), que vejo como a matriz ou influência mais forte em On the Road, principalmente após a leitura de sua primeira versão; isso, pelo modo como Céline rompeu com o beletrismo francês ao fazer prosa oral e introduzir a língua falada em sua narrativa.
Risques PereiraAs comparações com Dostoiévski e Céline são esclarecedoras, não só pelo que Kerouac partilha com esses autores, mas pelas diferenças. Com relação a Céline, e nisso diferindo de seu exacerbado niilismo, a religiosidade, a idéia-chave da ‘busca espiritual’ através das viagens e  aventuras. Com relação a ambos, Dostoiévski e Céline, a alegria de viver: incursões pelo lado B da realidade vão dar em momentos epifânicos; sombras se dissolvem em animadas festas beat por dias seguidos e nas noitadas em caves de jazz, com jam-sessions até as nove da manhã seguinte.
Além disso, Kerouac tem humor, se comparado a Dostoiévski e Céline, autores amargos, raivosos, sombrios em tempo integral (especialmente Céline). Passagens memoráveis nas duas versões de On the Road provocam riso: as cândidas descrições da irresponsabilidade extrema da dupla, Jack e Neal ou Sal e Dean, com sua disposição infantil para encarar tudo o que viesse pela frente, sem noção de limites, submetendo caroneiros perplexos a experiências arrepiantes, reduzindo um cadilaque novo em folha a um destroço no acelerado percurso desde Denver até Chicago. A excitação, as exibições de vitalidade, neutralizando os anátemas por seu desregramento e os momentos de exaustão e desalento, chegadas ao fundo do poço. Euforia e tristeza alternando-se nas viagens ambivalentes, série de entradas no paraíso e descidas ao inferno, como aquela, final, no México: o maravilhoso mundo arcaico povoado por índios, suas portas se abrindo com a ajuda de possantes charutos de maconha, para, logo em seguida, chegando à Cidade do México, Kerouac, doente, ser largado lá por Cassady, sem mais nem menos. Viagens erráticas, assim como o foi a vida do próprio Kerouac, conforme observaram seus críticos e biógrafos. Para Penny Vlagopoulos, em outro dos ensaios que acompanham esta nova edição, Kerouac permite que você se afeiçoe à idéia de se perder.
Há mais diferenças importantes de Kerouac, com relação a Dostoiévski e Céline. Uma delas, o deslumbramento diante das paisagens norte-americanas, da vastidão das planícies, dos elevados paredões de montanhas, dos caudalosos rios borbulhantes que atravessa. O mundo em Kerouac; mais especificamente, os Estados Unidos: um lugar onde é possível maravilhar-se.
Outra, o tema da comida: desde a incrível geladeira repleta de sua mãe em sua obra de estréia, The Town and the City (Kerouac, Cidade pequena, cidade grande, tradução de Edmundo Barreiros, L&PM, 2008), da qual não pára de sair comida, até o melhor brioche que jamais comera ao chegar à França em Lonesome Traveler (Kerouac, Viajante Solitário, tradução de Eduardo Bueno, L&PM Pocket, 2006), passando pelo melhor guizadinho de carne de porco, ou os deliciosos feijões fritos nas versões de On the Road: exultantes comilanças, metáforas da alegria de viver. Traço distintivo de Kerouac, inclusive se comparado aos demais beats, e algo ainda a ser examinado e interpretado.
Mas em que diferem as duas versões, o On the Road: Pé na Estrada, e este novo On the Road:o manuscrito original? O On the Road originário sofreu, na passagem para a versão final, com a pontuação abusiva, as vírgulas impostas na edição. Teve reduções, inevitáveis naquela época: o encobrimento dos nomes através de pseudônimos, além das supressões de personagens para evitar processos (principalmente, de Justin Brierly, mecenas, animador cultural e protetor de rapazes de talento, inclusive Cassady, em Denver). E do sexo mais explícito, da referência ao que havia entre Neal Cassady e Allen Ginsberg, de maiores detalhes sobre o que o que Gifford e Lee denominaram de quadrângulo sexual na estada de Ginsberg e Kerouac em Denver, envolvendo Cassady, Ginsberg, LuAnne Henderson e Carolyn Cassady, ou do registro de Neal fazendo sexo com outro homem na tentativa infrutífera de arrancar-lhe alguns trocados. Cenas como essas seriam mencionadas, mesmo antes da publicação de On the Road, em Uivo de Ginsberg (que por isso foi recebido pelo processo por obscenidade) e, mais tarde, em incontáveis biografias, além dos depoimentos de participantes dessas aventuras, como registrados no fascinante Jack’s Book: An Oral Biography de Gifford e Lee.
O primeiro On the Road é, portanto, mais biográfico. Formalmente, também corresponde mais fielmente a uma poética, aquela do fluxo de consciência; em Kerouac, na versão jazzística, bop. Por outro lado, o interregno de 1951 a 1956 – quando Kerouac e a Viking, pela intercessão de Malcolm Cowley, finalmente se entenderam em matéria de edição e publicação – é aquele do seu maior envolvimento com budismo, através de leituras e do estágio com Gary Snyder. Foi quando escreveu Scripture of the Golden Eternity e Some of the Dharma, bem como o melhor de sua poesia; isso, além da vertiginosa produção de narrativas em prosa, incluindo o alegórico Doctor Sax, baseado em um sonho relatado em On the Road, e a obra-prima Visions of Cody, o mais oral e menos discursivo de seus relatos.
Risques PereiraPor isso, há, no On the Road final, elaborações que o enriquecem: mais filosofia, mais reflexão. Por exemplo, no acréscimo da menção ao taoísmo nesta justificativa das viagens sem destino, nas quais o ponto de chegada é o que menos importa:
Ele [Dean Moriarty / Neal Cassady] estava atingindo suas decisões taoístas de uma maneira simples e direta. “Qual é a sua estrada, homem? – a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada... Há sempre uma estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?” Concordamos gravemente sob a chuva. (pg. 305 da edição L&PM Pocket)
Ou então, este detalhado relato de uma experiência de êxtase, também no segundo On the Road:

E por um instante alcancei o estágio do êxtase que sempre quis atingir, que é a passagem completa através do tempo cronológico num mergulhar em direção às sombras intemporais, e iluminação na completa desolação do reino mortal e a sensação da morte mordiscando meus calcanhares e me impelindo para a frente como um fantasma perseguindo seus próprios calcanhares, e eu mesmo correndo em busca de uma tábua de salvação de onde todos os anjos alçaram vôo em direção ao vácuo sagrado do vazio primordial, o fulgor potente e inconcebível reluzindo na radiante Essência da Mente, incontáveis terras-lótus desabrochando na mágica tepidez do céu. (pg. 217 da edição L&PM Pocket)

E assim prossegue, nesta prosa poética, original fusão de epifania cristã e satori búdico.
Entre um e outro dos On the Road, há, portanto, depuração e progressão na mitografia, conforme observado por George Mouratidis, em outro dos ensaios que acompanham este novo/primeiro On the Road: vê um movimento do simbólico para o mítico, do humano para a visão, marcando a separação gradual que faz Kerouac do Cassady verdadeiro da sua visão sobre ele.
Diante disso, qual dos On the Road se deve ler? Este, original, ou aquele editado? Em favor daquele que circula, no Brasil e mundialmente, em pocket, ter sido livro de cabeceira, bolso ou mochila de tanta gente; ter contribuído para desencadear uma rebelião juvenil; ter-se projetado na diacronia ao inspirar uma contracultura – em outro paradoxo aparente, por trair o conservadorismo e tradicionalismo católico de Kerouac, ao tornar-se ícone de uma cultura de resistência; traição às intenções do autor, fiel, porém, a seu conteúdo pleno, ao sentido da obra.
Sendo histórica, On the Road fez história: sua leitura é fruição, e também participação, gesto político ao atestar sua atualidade. É continuar acreditando que literatura é aventura; e que, assim concebida, pode mudar a vida e transformar o mundo.
On the Road II, este, primeiro a ser escrito e último a ser lançado, possibilita uma espécie de prazer voyeurista. É como olhar por trás dos bastidores. A vida íntima, os protagonistas desnudados. A história, menos ficcionalizada. Interessa enormemente à crítica – à crítica não-preconceituosa, àqueles que entendem crítica como prestar atenção no que estão lendo; por extensão, a quem estuda literatura. A obra em processo: assunto para a crítica genética. Isto é sugerido nos ensaios que precedem esta nova edição; entre outros lugares, nesta observação de Joshua Kupetz: A publicação do manuscrito do rolo cria um paradoxo necessário que problematiza a própria noção do significado em um texto e desmonta a habilidade do leitor em diferenciar, de modo confiável, o fato da ficção.
A leitura mais recomendável, mais instigante, portanto, não é de uma ou outra das duas versões, mas do que está entre elas. Compará-las; e assim enxergar mais naquilo que Penny Vlagopoulos bem designa como a mais monumental das cartografias sobre o desejo humano.
Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta. Um dos editores da Agulha. Contato: cjwiller@uol.com.br. Página ilustrada com obras do artista Risques Pereira (Portugal).

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