Horas antes, já um ex-colega tentara entrar em contacto comigo para me
transmitir a triste notícia. E isto porque, à puridade aqui fica dito, a última
conversa que tivéramos no dia anterior fôra precisamente sobre Lud - Ludgero
Viegas Pinto - o pintor e poeta bissexto, o imprevisível Lud que contudo comigo
sempre agira como um cavalheiro e confrade fraternal.
Afinal, o Lud já estava morto à hora em que concertávamos pedir-lhe
desenhos para o suplemento que eu então co-coordenava (FANAL, in Distrito
de Portalegre) e em que combinávamos apanhá-lo, na próxima ida a Lisboa,
para uma conversata até às tantas. Mas a vida – a vida que a
morte, essa, não tem nada senão negrume – tem destes arrepios, destes
desconchavos que nos derribam a alegria. A essa hora, a esse tempo em que
congeminávamos projectos que o incluíam, já o Lud lisboeta dos quatro costados
e alentejano por casamento e inclinação (como tantas vezes me disse nos tempos
em que frequentávamos Monte da Pedra (Comenda), terra de sua mulher) percorria
outros caminhos, outras jornadas de peculiar desenvoltura. Talvez em passo
estugado, como usava nos seus bons tempos de empenhado fruidor de ritmos
epicuristas, ou em passeio mais pausado desde que uma recomendação de médico
lhe aconselhara dietas menos reconfortantes. À hora em que nós o recordávamos
pensando para ele diferentes enquadramentos, Lud retoiçava já noutras paragens
com o seu atento olho negro de português retinto, o cabelo asa de corvo e o
bigode à Douglas Fairbanks dos seus bons tempos.
Lá por setenta e um setenta e dois, em certo dia apareceu-me na Estação
Meteorológica onde eu, pela mão de Vitorino Caramelo, me iniciava como ajudante
de meteorologista (única profissão que de facto tive, o resto foi só caminho
civil para tratos de existência quotidiana) um sujeito de porte atlético
solenemente vestido com um desses fatos azulados que se usavam na década,
impecável camisa branca e gravata a condizer. Vinha falar com os responsáveis
dum Liceu ou duma Escola do burgo portalegrense para que cordatamente o
admitissem como professor de desenho. Propósito louvável, mas algo
quimérico. Como pouco depois vim a saber pelo mesmo Pedro Oom que para
mim lhe entregara recomendação, só por intemerato desígnio é que Lud se dera a
esse périplo de potencial labutador… Com efeito, Lud não era propriamente
cidadão que conseguisse estar dia após dia, com esmero, ensinando estudantinhos
com propósito e persistência. Ele mesmo se encarregou, digamos, de me
esclarecer sobre o inusitado da indumentária, da farpela de dandy:
“É só para a entrevista…”, elucidou-me na sua voz educada de alfacinha
encartado.
De modo que o que lhe ficou dessa viagem algo quimérica foi só um belo
almoço na aprazível “Casa Capote” e, dispersa pelos anos, a amizade do
signatário.
De tempos a tempos aparecia-me em Portalegre, em geral acompanhado de um
primo amigalhaço ou dum vizinho conterrâneo da esposa e lá íamos nós a caminho
da aldeia de Monte da Pedra onde, numa simpática tasquinha a condizer, depois
de lauta manducação de petiscos regionais nos entregávamos ao prazer singular e
algo desenquadrado da declamação de poemas e ao trautear de algumas canções –
manutenção de minha lavra – que o Lud acompanhava com fervor mas sem timbre
excessivo…
Em Lisboa, algumas vezes com
Carlos Martins e, pelo menos uma vez, com o grande pintor Luís Osório e o poeta
e editor Henrique Madeira, demos nossos passeios cortados eventualmente por
alguma partida das que gostava de artilhar. Pirraças em vol
d’oiseau mas que nunca indiciavam maldade, antes certificavam um
humor de cepa lusitana sem ferocidades.
Colaborou comigo em suplementos e revistas. Fez capa para um livro meu
que não chegou a sair na altura por o seu presuntivo editor ter falido com
pequenino estrondo, mas que foi o suficiente para se lhe entravar a rota.
Expusemos em conjunto aqui e ali, no país e lá fora com envios pela
prestimosa e bendita via postal. E até combinámos, num dia mais sonhador
e pachorrento, uma viagem a Itália que o Lud afinal não pôde fruir por mor de
outros afazeres e, razão muito ponderosa, por não lhe abundar marcadamente o
vil metal.
Em casa dos familiares próximos do Dr.Feliciano Falcão, médico analista
de excepção já falecido, conviva e amigo de Régio, está decerto uma obra sua.
Foi compra/venda feita durante uma das tais viagens até aos rincões da serra de
São Mamede. Por mor desse negócio artístico proveitoso, generosamente, o pintor
quis debruçar-se comigo, fazendo do seu bolso as honras do bródio, sobre uma
vasta pratada de marisco acompanhada de outros pitéus e líquidos condizentes,
numa Casa do ramo bem conhecida ali ao pé do Coliseu da capital.
Lud tinha mão de pintor e
era – para mim sempre foi, como o atesta uma dedicatória iluminada com um
desenho e aposta no meu exemplar de um livro de C.W.Ceram – um conversador
tonificante ainda que algo deambulatório. Levemente intempestivo para alguns,
não sei porquê mas sempre manifestou pelo que aqui o evoca e relembra uma
cordialidade afectuosa e um companheirismo intelectual que nunca desceu à
zombaria ou ao descontrole. Ares serenos do Alentejo o enlevavam nesses
momentos? Não o sei, nunca o soube nem procurei tirar isso a limpo, confesso
que jamais pensei muito nisso. Mesmo agora e quando ele se foi e só restou um
halo de saudade com uma dúzia de anos.
Nessa altura senti uma sensível amargura e disse para os meus botões
enquanto lhe recordava o perfil desaparecido: “Até sempre, amigo Ludgero.
Que descanses coloridamente, já sem as tuas habituais inquietações, na absoluta
paz final!”.
NICOLAU SAIÃO (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). Contato: nicolau19@yahoo.com. Caricatura do artista realizada por João Garção. Página ilustrada com obras de Lud (Portugal).
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 11 | Junho de 2015
editor geral | FLORIANO MARTINS | arcflorianomartins@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS
GLADYS MENDÍA | LUIZ LEITÃO | MÁRCIO SIMÕES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário