Agosto
de 1933, tudo levava a crer que a segunda metade do ano seria tranquila em seu
relativismo costumeiro, quando Deus coçou o olho, se distraindo um pouco e
passou por aquela agulha impossível aos camelos um Zuca de nome enganosamente
real: Carlos Felipe, na verdade o mais precoce dentre sátiros e patafísicos.
Logo se firmando Zuca Sardan sob suspeita eterna de que ainda no ventre materno
tenha escrito sua “Fábula rachada”, em que reza: “Da lagarta / saiu outra
lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu
outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu finalmente / meio
amassada a borboleta / que já estava muito velha pra voar”. Ao contrário da
borboleta, Zuca Sardan – há décadas residindo em Hamburgo, na Alemanha, graças
ao heterônimo Carlos Felipe Saldanha que para ali o levou em missão diplomática
– converteu em asas agilíssimas uma mistura de poema, prosa e desenho, que logo
seriam livros tais como Cadeira de
Bronze (1957), Le Visage de Tuli
(1959), Aqueles Papéis (1975), Os Mystérios (1979), Visões do Bardo (1980), Osso do Coração (1993), Ás de Colete (1994), La Muerte mi Violetera (1998), Eletrogramas (2001), Babylon (Mystérios de Ishtar) (2004), Cinefotorama (2009) e Cartas Portuguesas (de Soror Mariana)
(2011), em terras abençoadas por traço e letra como Estados Unidos, Brasil, Espanha
e até mesmo Campinas. Em antologias aclamadas como poéticas esteve em países
como Peru, Rússia, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e (um dia, há quase meio
século) Brasil. Como ele próprio gosta de destacar, “estudou arquitetura, mas
fez diplomacia; estudou desenho, mas faz poesia; perdeu o cavalo, mas viaja de
trem”, cujo resultado é uma “carreira atribulada, acometida de gralhas,
seguindo até hoje, numa série caótica de graffiti, gaffes, remix, macarronix,
vinhetas etc.”, moldada ainda em “variadas e imprevistas viagens e mudanças de
cidades e países”. Tudo – claro, não mais do que uma inspirada preparação para
o diálogo que aqui tivemos, há poucos instantes. Abraxas
FM | Quem estará à frente desta nossa conversa, embora eu
converse com todos: Zuca Sardan ou Carlos Felipe Saldanha? Como foi surgindo
toda a trupe?
ZS | A Realidade é um Contrato-Social implícito no sistema
jurídico-institucional da Nação. Carlos Felipe não confiava nas expectativas e
postulados desta Realidade, mas sabia que nela precisaria viver, conviver… e
sobreviver. Aceitou as regras do jogo na vida prática, mas não havia porque
concordar com esta Realidade, por mais evidente, lógica e ética que possa se
apresentar, baseada nos eminentes pareceres de sábios, reis, juízes e
sacerdotes, ao longo de séculos e séculos de progressos e porradas. Mas pra
escapar subjetivamente desta Realidade, era preciso um outro ego que pudesse
pensar uma outra Realidade. Aí começa a aparecer o Zuca, e sua simpatia
inicial, já na juventude, com o Surrealismo.
FM | E tal simpatia vinha de algum aspecto em especial? O que
no Surrealismo (ou mesmo quais surrealistas) mais te seduzia?
ZS | Quando jovem, achava o Existencialismo porcalhão e o
Marxismo catequético. Mas o Surrealismo sim, me seduzia por seu charme rebelde,
e a beleza de mulheres divinas e a maravilhosa aventura da vida, com que então
sonhava.
FM | A vida diplomática sempre viajou na mala da poesia ou
alguma vez causou incômodo de valer registro de memória? É verdade que eras
conhecido como o “Capeta do Itamaraty”?
ZS | Nunca fiz maiores alardes de minha poesia no Itamaraty.
A diplomacia era coisa do Carlos Felipe e a poesia eram as folias psicopáticas
do Zuca. O problema é que a ordem do Carlos Felipe se deixava impregnar pelo
caos do Zuca… Se o Zuca fosse um autor consagrado, um Guimarães Rosa, um João
Cabral, aí então tudo bem, seria perdoado de suas sucessivas gralhas, e
incensado pelo prestígio que traria à Casa do Barão. Mas o Zuca era tão só um
poeta marginal, desconhecidíssimo.
FM | Vamos aos ossos do ofício
poético. Apesar de algumas boas edições de tua poesia no Brasil, o mais
expressivo reconhecimento recebido (ora viva) ainda em vida veio da bela
revista do José Miguel Pérez Corrales, de Tenerife: uma edição inteira da
vultosa e vistosa La Página. O Brasil
será sempre um osso duro de roer em tal quesito?
ZS | Você saberá melhor que eu, o Surrealismo não cola no
Brasil. Nos 1950, só valia não-figurativismo, Bauhaus, École de Paris,
concretismo, neo-concretismo, marxismo. Arte era coisa séria, com certeza, uma
casa portuguesa. Salvador Dalí, um palhaço ridículo, e os demais surrealistas
um bando de alienados marginais. E
Maria Martins?… Os intelecos faziam
um amável sorriso e desconversavam. Em ‘64 veio a Era Militar… Marechal
Ferrolho fez manhas e carrancas, mas… foi-se em ‘85 e a Rolha acabou. Mas
agora, sem rolha, mudou tudo?… Acho que a Arte brasileira retomou o fio
interrompido em ‘64, e não vejo que agora vão nos deixar passar por debaixo da
lona do circo. Seguiremos marginais.
FM | Sempre se pode piorar este cenário. O João Cabral
diplomata quando vice-cônsul em Barcelona era simpatizante ativo do grupo Dau
al Set, grupo eminentemente surrealista da vanguarda catalã, páginas de sua
biografia que tratou de enterrar, bem como ao livro de estreia, Pedra do sono. Murilo Mendes já residia
na Europa quando passa a ser mais aberto em sua simpatia ao Surrealismo que
havia fartamente praticado. Sempre muito tênues ou cuidadosas são as afinidades
com o Surrealismo que saltam da boca de nomes como Jorge de Lima, Sérgio
Buarque de Holanda, Prudente de Moraes Neto, Raul Bopp, Aníbal Machado, Flávio
de Carvalho e mesmo o Oswald de Andrade da trilogia teatral (a meu ver a única
fatia de sua obra com consistência estética renovadora). Bopp dizia que havia
Surrealismo por toda parte e só não via quem não queria. Clero e Parnaso sempre
foram tutelares. Nenhuma luz no fim do túnel, então?
ZS | Clero e Parnaso andam meio balançando… mas o Mercado
Global está aí pra garantir nossa cerveja de cada dia.
FM | Em 1994 participamos, creio que em volumes distintos, do
livro The myth of the world, edição
inglesa a cargo de Michael Richardson que reúne principais nomes da prosa
poética, ligados ao Surrealismo, em todo o mundo. Leio os versos de “Veludosa
cantilena”: “E você / minha fofa gordinha / como se chama? / perguntou / pra
juvenil Mosquinha / cheio de manha / o ardiloso / Doutor Aranha.” A rigor teu
surrealismo tem uma profunda ligação com o espírito Dada. E aqui poderíamos
evocar aquele entendimento do Hans Arp de que através da poesia o homem
reencontra a inocência original. Afinal, de onde vem teu surrealismo?
ZS | Valorizando o Inconsciente, o Surrealismo procura se
livrar da camisa-de-força na Realidade lógico-racional-científica que domina a
Inteligência Ocidental desde a Independência dos USA e a Revolução Francesa. A
Revolução Marxista propôs uma mudança socioeconômica, mas dentro do
racionalismo-científico advindo do movimento iluminista. Só o Surrealismo se
propõe a romper as cadeias do racionalismo pra recuperar o Mundo Mágico do
Mytho.
FM | Com todos os desvios e vias bloqueadas de acesso à
inocência original, o poeta ainda segue fazendo seus versos, quase sempre
guiado pelo ego que sopra em seu ouvido que ele está a escrever um livro
sagrado. Qual a mais enganosa virtude do poeta em nosso tempo?
ZS | Se você interpretar enganosa virtude como sendo a
virtude de enganar a tirania da lógica racional vigente, esta é justamente a
mais esperta (e não inocente) virtude do enganoso poeta de hoje.
FM | Ao ler entrevista que fiz ao poeta e editor Márcio
Simões (Sol Negro Edições), me escreveste o seguinte comentário: “Simões e você
disseram tudo e muito mais sobre a pasteurização da cultura padronizada pelo
comércio globalizado em que prazerosamente nossos poderes políticos e culturais
se banham… Anchieta e Nóbrega seguem dando as cartas… e Moema segue nadando
atrás da caravela do Caramuru… Acho Sol Negro um nome maravilhoso pra editora,
Sol Negro, que fulgura na Anti-Terra… Aliás, como se percebe na entrevista, a
Anti-Terra não está do outro lado do Sol, como se acreditava, mas… na própria Terra,
porém… banhada justamente pelo Sol Negro. Só se pode driblar Nóbrega e Anchieta
com um time pré-socrático. E pra nós brasileiros, graças ao politeísmo do
candomblé, é possível um acesso direto aos mystérios
de Baco.” Evidente que o politeísmo a que te referes tem uma presença ausente
na negação ritualística da criação artística (não somente literária) em um país
assaltado pelo desamparo de si mesmo. Sempre recordo uma das máximas do Aníbal
Machado: “Deve-se olhar para os entulhos da catástrofe com o pensamento voltado
para as formas belas que eles podem assumir na reconstrução”. Aqui entre nós
não reconstruímos jamais coisa alguma pelo simples fato de que vivemos a negar
a ocorrência de uma catástrofe. Não se pode sair do nada sem antes aceitar que se
está no nada.
ZS | Há uma lacraia dentro da caveira… Não olhe, finja que
não viu… Assovie “La Cumparsita”.
FM | Vamos agora a um sarau: a antologia 26 poetas hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Holanda,
palco onde estrearam praticamente todos os poetas ali inseridos. Meados de uma
década que para nós, em relação ao ambiente da Contracultura em quase todo o
continente, vinha já com alguns anos de retardo. Se pensarmos em eclosões da
poesia como um veículo mais intenso de comunicação com os leitores ao vivo, do
modo como o tivemos no México, Estados Unidos, Colômbia, Venezuela, Argentina,
o Brasil foi uma vez mais muito acanhado internamente e inexistente no
relacionamento com os demais países americanos. Creio que só empatamos em um
quesito: o de que essa marginalidade evocada como característica da poesia nos
anos 1970 resultou em uma quase insignificante contribuição estética renovadora
e consistente. Falemos um pouco de dois aspectos: a relutância brasileira no
estabelecimento de relações com a cultura americana em geral e a interferência
de aspectos morais (que resultaram moralizantes a posteriori) – característica da própria Contracultura – nas
raízes estéticas da lírica. Recordo ainda que em 1997, por ocasião de uma
comemoração da maioridade da antologia aqui referida, promovida pela revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca
Nacional, comentas, em uma enquete, que “a poesia de hoje, poesia da
descontração, é a confirmação da poesia marginal dos anos ‘70”. Mas exatamente
a que descontração te referes.
ZS | Tenho mania inconsciente de inventar palavras que se
misturam com as palavras correntes, sem que eu me dê conta. Assim o Manfutismo:
a arte de descontração baseada no “pouco m’importa” do Urutau.
FM | Sempre mesclaste em tua obra o poema, a prosa e o
desenho. Mesmo com toda a balbúrdia tecno-circense da mistura dos gêneros
persiste certa dificuldade em compreender o plano alquímico da criação, em
especial no ambiente acadêmico, assim que deves colecionar frases como “por
trás do mau desenhista às vezes encontramos uma que outra frase de bom humor”
ou “a ironia de pé quebrado se salva pela graça desconjuntada de seu traço”,
quando me parece que separá-los – traço e verso – em teu caso é da mesma ordem
que decompor teatro ou cinema lendo em separado roteiro, cenário, trilha sonora
etc.
ZS | Exato, penso talqual disseste. O Circo Zuca faz zpetaklo
total som-luz-poesia-graffiti-macarronix-remix-farsa-tragédia.
FM | Em geral o homem tem uma relação ambígua com o mundo
abstrato (sonho, desejo, imaginação), como se este não fizesse parte da
realidade. O cinema acrescenta um componente nessa ambiguidade, com sua
obsessão pelo “baseado em fatos reais”, como se acaso a imaginação não fosse um
fato real. O que evitamos descobrir em nós mesmos com essa precária reserva de
domínio?
ZS | A imitação dos fatos reais serve pra não vemos a
inexorável realidade fulgurante-tenebrosa do Mundo Imaginário.
FM | Sejamos sinceros: a esperança é mesmo a última que
morre?
ZS | Os que morrem por último são dois: São
Saco e Santa Paciência. Mas a Esperança é mais velha que o Mundo, ela nasceu
com a Porta do Inferno. A Esperança e a Porta do Inferno são irmãs, filhas do
Puro Amor Divino. Mas para se salvar, Esperança tem de se fingir… de Esfinge…
que finge que morre, mas não morre. No fim, quem se ferra é o Édipo. Pra
Jocasta, talvez possamos dar um jeito.
FM | Parafraseando um poema teu (“O soberano e o astrólogo”),
cometo aqui uma última provocação indagando: se o Soberano ainda continua
bancando a vítima, por que o Astrólogo não mais tem bancado o louco?
ZS | Porque se tomar a sério vai pra fogueira do Santo
Ofício. Justamente pra se safar, Nostradamus resolveu se chamar Nostradamus e
sempre se mostrou católico extremado. Mais a mais… era amigo dos grandes Monarcas.
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