domingo, 25 de outubro de 2015

FLORIANO MARTINS | Ao coração os ossos: conversa com Zuca Sardan


Agosto de 1933, tudo levava a crer que a segunda metade do ano seria tranquila em seu relativismo costumeiro, quando Deus coçou o olho, se distraindo um pouco e passou por aquela agulha impossível aos camelos um Zuca de nome enganosamente real: Carlos Felipe, na verdade o mais precoce dentre sátiros e patafísicos. Logo se firmando Zuca Sardan sob suspeita eterna de que ainda no ventre materno tenha escrito sua “Fábula rachada”, em que reza: “Da lagarta / saiu outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu outra lagarta / de que saiu finalmente / meio amassada a borboleta / que já estava muito velha pra voar”. Ao contrário da borboleta, Zuca Sardan – há décadas residindo em Hamburgo, na Alemanha, graças ao heterônimo Carlos Felipe Saldanha que para ali o levou em missão diplomática – converteu em asas agilíssimas uma mistura de poema, prosa e desenho, que logo seriam livros tais como Cadeira de Bronze (1957), Le Visage de Tuli (1959), Aqueles Papéis (1975), Os Mystérios (1979), Visões do Bardo (1980), Osso do Coração (1993), Ás de Colete (1994), La Muerte mi Violetera (1998), Eletrogramas (2001), Babylon (Mystérios de Ishtar) (2004), Cinefotorama (2009) e Cartas Portuguesas (de Soror Mariana) (2011), em terras abençoadas por traço e letra como Estados Unidos, Brasil, Espanha e até mesmo Campinas. Em antologias aclamadas como poéticas esteve em países como Peru, Rússia, Inglaterra, Alemanha, Bélgica e (um dia, há quase meio século) Brasil. Como ele próprio gosta de destacar, “estudou arquitetura, mas fez diplomacia; estudou desenho, mas faz poesia; perdeu o cavalo, mas viaja de trem”, cujo resultado é uma “carreira atribulada, acometida de gralhas, seguindo até hoje, numa série caótica de graffiti, gaffes, remix, macarronix, vinhetas etc.”, moldada ainda em “variadas e imprevistas viagens e mudanças de cidades e países”. Tudo – claro, não mais do que uma inspirada preparação para o diálogo que aqui tivemos, há poucos instantes. Abraxas

FM | Quem estará à frente desta nossa conversa, embora eu converse com todos: Zuca Sardan ou Carlos Felipe Saldanha? Como foi surgindo toda a trupe?

ZS | A Realidade é um Contrato-Social implícito no sistema jurídico-institucional da Nação. Carlos Felipe não confiava nas expectativas e postulados desta Realidade, mas sabia que nela precisaria viver, conviver… e sobreviver. Aceitou as regras do jogo na vida prática, mas não havia porque concordar com esta Realidade, por mais evidente, lógica e ética que possa se apresentar, baseada nos eminentes pareceres de sábios, reis, juízes e sacerdotes, ao longo de séculos e séculos de progressos e porradas. Mas pra escapar subjetivamente desta Realidade, era preciso um outro ego que pudesse pensar uma outra Realidade. Aí começa a aparecer o Zuca, e sua simpatia inicial, já na juventude, com o Surrealismo.

FM | E tal simpatia vinha de algum aspecto em especial? O que no Surrealismo (ou mesmo quais surrealistas) mais te seduzia?

ZS | Quando jovem, achava o Existencialismo porcalhão e o Marxismo catequético. Mas o Surrealismo sim, me seduzia por seu charme rebelde, e a beleza de mulheres divinas e a maravilhosa aventura da vida, com que então sonhava.

FM | A vida diplomática sempre viajou na mala da poesia ou alguma vez causou incômodo de valer registro de memória? É verdade que eras conhecido como o “Capeta do Itamaraty”?

ZS | Nunca fiz maiores alardes de minha poesia no Itamaraty. A diplomacia era coisa do Carlos Felipe e a poesia eram as folias psicopáticas do Zuca. O problema é que a ordem do Carlos Felipe se deixava impregnar pelo caos do Zuca… Se o Zuca fosse um autor consagrado, um Guimarães Rosa, um João Cabral, aí então tudo bem, seria perdoado de suas sucessivas gralhas, e incensado pelo prestígio que traria à Casa do Barão. Mas o Zuca era tão só um poeta marginal, desconhecidíssimo.

FM | Vamos aos ossos do ofício poético. Apesar de algumas boas edições de tua poesia no Brasil, o mais expressivo reconhecimento recebido (ora viva) ainda em vida veio da bela revista do José Miguel Pérez Corrales, de Tenerife: uma edição inteira da vultosa e vistosa La Página. O Brasil será sempre um osso duro de roer em tal quesito?

ZS | Você saberá melhor que eu, o Surrealismo não cola no Brasil. Nos 1950, só valia não-figurativismo, Bauhaus, École de Paris, concretismo, neo-concretismo, marxismo. Arte era coisa séria, com certeza, uma casa portuguesa. Salvador Dalí, um palhaço ridículo, e os demais surrealistas um bando de alienados marginais. E Maria Martins?… Os intelecos faziam um amável sorriso e desconversavam. Em ‘64 veio a Era Militar… Marechal Ferrolho fez manhas e carrancas, mas… foi-se em ‘85 e a Rolha acabou. Mas agora, sem rolha, mudou tudo?… Acho que a Arte brasileira retomou o fio interrompido em ‘64, e não vejo que agora vão nos deixar passar por debaixo da lona do circo. Seguiremos marginais.

FM | Sempre se pode piorar este cenário. O João Cabral diplomata quando vice-cônsul em Barcelona era simpatizante ativo do grupo Dau al Set, grupo eminentemente surrealista da vanguarda catalã, páginas de sua biografia que tratou de enterrar, bem como ao livro de estreia, Pedra do sono. Murilo Mendes já residia na Europa quando passa a ser mais aberto em sua simpatia ao Surrealismo que havia fartamente praticado. Sempre muito tênues ou cuidadosas são as afinidades com o Surrealismo que saltam da boca de nomes como Jorge de Lima, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes Neto, Raul Bopp, Aníbal Machado, Flávio de Carvalho e mesmo o Oswald de Andrade da trilogia teatral (a meu ver a única fatia de sua obra com consistência estética renovadora). Bopp dizia que havia Surrealismo por toda parte e só não via quem não queria. Clero e Parnaso sempre foram tutelares. Nenhuma luz no fim do túnel, então?

ZS | Clero e Parnaso andam meio balançando… mas o Mercado Global está aí pra garantir nossa cerveja de cada dia.

FM | Em 1994 participamos, creio que em volumes distintos, do livro The myth of the world, edição inglesa a cargo de Michael Richardson que reúne principais nomes da prosa poética, ligados ao Surrealismo, em todo o mundo. Leio os versos de “Veludosa cantilena”: “E você / minha fofa gordinha / como se chama? / perguntou / pra juvenil Mosquinha / cheio de manha / o ardiloso / Doutor Aranha.” A rigor teu surrealismo tem uma profunda ligação com o espírito Dada. E aqui poderíamos evocar aquele entendimento do Hans Arp de que através da poesia o homem reencontra a inocência original. Afinal, de onde vem teu surrealismo?

ZS | Valorizando o Inconsciente, o Surrealismo procura se livrar da camisa-de-força na Realidade lógico-racional-científica que domina a Inteligência Ocidental desde a Independência dos USA e a Revolução Francesa. A Revolução Marxista propôs uma mudança socioeconômica, mas dentro do racionalismo-científico advindo do movimento iluminista. Só o Surrealismo se propõe a romper as cadeias do racionalismo pra recuperar o Mundo Mágico do Mytho.

FM | Com todos os desvios e vias bloqueadas de acesso à inocência original, o poeta ainda segue fazendo seus versos, quase sempre guiado pelo ego que sopra em seu ouvido que ele está a escrever um livro sagrado. Qual a mais enganosa virtude do poeta em nosso tempo?

ZS | Se você interpretar enganosa virtude como sendo a virtude de enganar a tirania da lógica racional vigente, esta é justamente a mais esperta (e não inocente) virtude do enganoso poeta de hoje.

FM | Ao ler entrevista que fiz ao poeta e editor Márcio Simões (Sol Negro Edições), me escreveste o seguinte comentário: “Simões e você disseram tudo e muito mais sobre a pasteurização da cultura padronizada pelo comércio globalizado em que prazerosamente nossos poderes políticos e culturais se banham… Anchieta e Nóbrega seguem dando as cartas… e Moema segue nadando atrás da caravela do Caramuru… Acho Sol Negro um nome maravilhoso pra editora, Sol Negro, que fulgura na Anti-Terra… Aliás, como se percebe na entrevista, a Anti-Terra não está do outro lado do Sol, como se acreditava, mas… na própria Terra, porém… banhada justamente pelo Sol Negro. Só se pode driblar Nóbrega e Anchieta com um time pré-socrático. E pra nós brasileiros, graças ao politeísmo do candomblé, é possível um acesso direto aos mystérios de Baco.” Evidente que o politeísmo a que te referes tem uma presença ausente na negação ritualística da criação artística (não somente literária) em um país assaltado pelo desamparo de si mesmo. Sempre recordo uma das máximas do Aníbal Machado: “Deve-se olhar para os entulhos da catástrofe com o pensamento voltado para as formas belas que eles podem assumir na reconstrução”. Aqui entre nós não reconstruímos jamais coisa alguma pelo simples fato de que vivemos a negar a ocorrência de uma catástrofe. Não se pode sair do nada sem antes aceitar que se está no nada.

ZS | Há uma lacraia dentro da caveira… Não olhe, finja que não viu… Assovie “La Cumparsita”.

FM | Vamos agora a um sarau: a antologia 26 poetas hoje (1976), organizada por Heloísa Buarque de Holanda, palco onde estrearam praticamente todos os poetas ali inseridos. Meados de uma década que para nós, em relação ao ambiente da Contracultura em quase todo o continente, vinha já com alguns anos de retardo. Se pensarmos em eclosões da poesia como um veículo mais intenso de comunicação com os leitores ao vivo, do modo como o tivemos no México, Estados Unidos, Colômbia, Venezuela, Argentina, o Brasil foi uma vez mais muito acanhado internamente e inexistente no relacionamento com os demais países americanos. Creio que só empatamos em um quesito: o de que essa marginalidade evocada como característica da poesia nos anos 1970 resultou em uma quase insignificante contribuição estética renovadora e consistente. Falemos um pouco de dois aspectos: a relutância brasileira no estabelecimento de relações com a cultura americana em geral e a interferência de aspectos morais (que resultaram moralizantes a posteriori) – característica da própria Contracultura – nas raízes estéticas da lírica. Recordo ainda que em 1997, por ocasião de uma comemoração da maioridade da antologia aqui referida, promovida pela revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, comentas, em uma enquete, que “a poesia de hoje, poesia da descontração, é a confirmação da poesia marginal dos anos ‘70”. Mas exatamente a que descontração te referes.

ZS | Tenho mania inconsciente de inventar palavras que se misturam com as palavras correntes, sem que eu me dê conta. Assim o Manfutismo: a arte de descontração baseada no “pouco m’importa” do Urutau.

FM | Sempre mesclaste em tua obra o poema, a prosa e o desenho. Mesmo com toda a balbúrdia tecno-circense da mistura dos gêneros persiste certa dificuldade em compreender o plano alquímico da criação, em especial no ambiente acadêmico, assim que deves colecionar frases como “por trás do mau desenhista às vezes encontramos uma que outra frase de bom humor” ou “a ironia de pé quebrado se salva pela graça desconjuntada de seu traço”, quando me parece que separá-los – traço e verso – em teu caso é da mesma ordem que decompor teatro ou cinema lendo em separado roteiro, cenário, trilha sonora etc.

ZS | Exato, penso talqual disseste. O Circo Zuca faz zpetaklo total som-luz-poesia-graffiti-macarronix-remix-farsa-tragédia.

FM | Em geral o homem tem uma relação ambígua com o mundo abstrato (sonho, desejo, imaginação), como se este não fizesse parte da realidade. O cinema acrescenta um componente nessa ambiguidade, com sua obsessão pelo “baseado em fatos reais”, como se acaso a imaginação não fosse um fato real. O que evitamos descobrir em nós mesmos com essa precária reserva de domínio?

ZS | A imitação dos fatos reais serve pra não vemos a inexorável realidade fulgurante-tenebrosa do Mundo Imaginário.

FM | Sejamos sinceros: a esperança é mesmo a última que morre?

ZS | Os que morrem por último são dois: São Saco e Santa Paciência. Mas a Esperança é mais velha que o Mundo, ela nasceu com a Porta do Inferno. A Esperança e a Porta do Inferno são irmãs, filhas do Puro Amor Divino. Mas para se salvar, Esperança tem de se fingir… de Esfinge… que finge que morre, mas não morre. No fim, quem se ferra é o Édipo. Pra Jocasta, talvez possamos dar um jeito.

FM | Parafraseando um poema teu (“O soberano e o astrólogo”), cometo aqui uma última provocação indagando: se o Soberano ainda continua bancando a vítima, por que o Astrólogo não mais tem bancado o louco?

ZS | Porque se tomar a sério vai pra fogueira do Santo Ofício. Justamente pra se safar, Nostradamus resolveu se chamar Nostradamus e sempre se mostrou católico extremado. Mais a mais… era amigo dos grandes Monarcas.



[Fortaleza, Hamburgo – Setembro de 2012]





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