Quando um
martinicense, pai dos intelectuais antilhanos, recebe uma guadalupeana, rainha
das letras, o encontro não pode decepcionar. Os 90 anos de Aimé Césaire foram
celebrados no ano passado. Entre as manifestações de homenagens, um colóquio
organizado por Maryse Condé se realizou na Universidade de New York e contava
entre os convidados com Breyten Breytenbach ou Edouard Glissant. Nele foi
apresentado o filme de entrevistas que Aimé Césaire concedeu a Patrice Louis,
jornalista parisiense instalado na Martinica e autor de um A, B,
C…ésaire (Ed. Ibis Rouge, 2003). No fim dos trabalhos, Maryse Condé,
que divide sua vida entre os Estados Unidos e sua ilha natal, emitiu o desejo
de rever o irmão mais velho em escritura que ela não revia há vinte anos.
Embora próximas, as duas ilhas francesas do Caribe podem parecer separadas pela
imensidão de um oceano…
O
“Métro(politain)” foi encarregado da missão. No dia marcado, a escritora
aterrissou no aeroporto, que deveria levar desde que possível o nome de Aimé
Césaire, onde a esperava o mensageiro. Direção: a antiga sede da prefeitura de
Fort-de-France, onde o poeta, há muito tempo eleito, conservou um escritório.
Durante uma hora, os dois antilhanos nutridos de África trocaram de posição, a
autora de Ségou se transmutando em entrevistadora do cantor da
negritude - o jornalista tendo o papel do escriba … [Patrice Louis]
MC | Começarei por uma questão de atualidade. O Haiti ocupou um
lugar considerável em sua obra. O que você pensa dos acontecimentos que se
passam nele?
AC | E patético! A história do Haiti é gloriosa. Jamais esqueci que
essa ilha conquistou a liberdade há duzentos anos: a liberdade não lhe foi
dada. Os haitianos combateram para tê-la. Mas é preciso insistir no fato de que
eles a conquistaram não somente para si mesmos mas para todos nós. Nós devemos
lhes ser gratos por isso. No entanto, devo dizer que, esse episódio à parte,
houve realmente momentos extremamente penosos, ao ponto que, apesar dessa
liberdade conquistada, a desgraça quer que jamais os haitianos tenham podido
achar uma organização razoável capaz de assegurar uma espécie de equilíbrio.
Eles criaram uma péssima herança. É claro, eles conquistaram a liberdade, mas a
sociedade não mudou de maneira tão profunda quanto se teria desejado. Primeiro,
houve os brancos, os mestres escravagistas, e depois o povo… nós. Encontra-se
agora a situação em que a classe intermediária que substituiu os brancos
conservou muitos hábitos, e péssimos hábitos. Eles pegaram um pouco seu lugar e
não desempenharam o papel que aguardávamos e esperávamos. O Haiti procura seu
equilíbrio e nem sempre o achou.
MC | Você pensa que se pode escrever La tragédie de
Jean-Bertrand Aristide como você escreveu La tragédie du roi
Christophe?
AC | Conheço muito pouco Aristide. Fui ao Haiti em 1945. O
presidente Lescaut estava então no poder. Isso me permitiu ver naquele momento
Léon Lalo, Camille Broussan - Depestre era ainda muito jovem. Conheci essa
geração. Eu estava lá justamente no momento em que André Breton passava e dava
essa conferência sobre o surrealismo que teve muita influência. “Parece-me
evidente que o destino desse país é inseparável de suas crenças e de seus
ideais seculares, desde o instante em que estes aqui se mostrem ainda tão
vivazes. O que lhe deu a força para suportar primeiro, e depois para sacudir
todos os jugos, o que foi a alma da resistência, é o patrimônio africano que
ele conseguiu transplantar aqui e fazer frutificar apesar de suas correntes.”
(André Breton, 1945).
Após, segui a situação com atenção, mas não quis retornar ao Haiti no
período de Duvalier. Lembro-me de que, durante minha estada, um tipo realmente
muito interessante que conhecia todos os pavimentos do Cabo-Haitiano – esqueço
seu nome, estou velho e perco a memória – me apresentou um senhor de ar
reservado, um pouco tímido… Era o doutor Duvalier! Eu estava longe de pensar
que um dia Duvalier ia se tornar o tirano que foi. E um pouco a mesma coisa para
Aristide: eu o vi quando ele voltava dos Estados Unidos. Ele passou aqui, na
Martinica. Até mesmo organizamos uma conferência em sua homenagem! Ele falou.
Era um intelectual, um católico, antigo padre, cheio de reservas. Mas não senti
nele uma doutrina. Vi sobretudo um homem muito reservado, talvez (não estou
certo disso) um pouco voltado sobre si mesmo. Qual era sua doutrina? Não sei. O
que ele queria fazer? Não sei. Qual era seu caráter e tinha ele a energia
necessária para conduzir esse país que não é fácil? Não me dei bem conta disso,
na época, mas estava lá para eu ver. E depois, rumores circulavam. Fiquei
totalmente espantado quando me disseram que ele empregava métodos que
acreditávamos desaparecidos para sempre. O que quer que seja, não me parece que
Aristide tenha realizado grande coisa para o povo do Haiti. Se o progresso
consistiu em substituir simplesmente os “tontons macoutes” pelas “quimeras”…
MC | O escritor haitiano Jean Métellus fala muito da maldição do
Haiti. Você acredita nessa maldição?
AC | Não, mas há o peso da História. No fundo, Haiti – como as
outras Antilhas, aliás, mas lá é muito mais trágico – não está inteiramente
curado dos males herdados da época colonial, que era infelizmente uma época
colonialista. O povo haitiano é inteligente, as elites são numerosas, mas o que
há de notável, é que os espíritos mais brilhantes dessa elite emigraram. Eles
estão no exterior e jamais encontraram seu lugar no Haiti. Lembro-me de ter
conhecido vários deles quando eu estava no Liceu Louis-le-Grand, em Paris - os
nomes me escapam às vezes e às vezes não tenho tanta vontade de pronunciá-los
-, e quando os revi no Haiti, eles tinham o ar infeliz e davam a impressão de
estar um pouco marginalizados.
MC | Ao olhar o estado do mundo, você pensa sempre que a poesia é
“arma miraculosa” que pulveriza as barreiras que entravam as liberdades?
AC | Não sei se ela é miraculosa…
MC | Foi você quem disse.
AC | Para mim, a poesia é muito importante, ela é até mesmo
fundamental. Com ou sem razão, sempre pensei que a arma para nós - não
acreditávamos nisso suficientemente - é a cultura. Não digo a civilização, que
é uma palavra muito do século XIX. Opunha-se então a civilização e a
selvageria. Mas os etnólogos e a experiência nos ensinaram que há a cultura.
Defino a cultura assim: é tudo o que os homens imaginaram para moldar o mundo,
para se acomodar no mundo e para torná-lo digno do homem. E isso, a cultura: é
tudo o que o homem inventou para tornar a vida vivível e a morte afrontável.
Enquanto martiniquense, sempre pensei que havia alguma coisa que não era
apreciada em sua justa medida na Martinica e nas Antilhas. Oh, isso não é uma
crítica! Há a História, há os Estados. Fomos dominados pela idéia do
escravagismo e era preciso lutar contra. Pertencemos à nossa época e é preciso
admitir que a terceira República inventou uma doutrina que tínhamos adotado
totalmente. Era a doutrina dita da assimilação, que consistia, para ser
civilizado e não ser mais um selvagem, em renunciar a um certo número de coisas
e em adotar um outro modo de vida. Tudo isso é completamente respeitável mas é
muito século XIX e muito rápido, já no liceu - com teu irmão Auguste [1] -
eu sabia então que isso era respeitável mas insuficiente. Essa doutrina não
respondia mais às necessidades do século XX! Era o século XIX, era o
romantismo, eram as ilusões do passado. Não é preciso ser ingrato: é evidente
que isso rendeu enormes serviços, mas no mundo moderno, era necessária uma
outra coisa. Eis porque fui muito rapidamente conquistado por uma idéia que não
tinha então ainda todo seu lugar - mesmo se ela não era desconhecida – em
nossos comportamentos e em nossas filosofias: a identidade. Quando os
martiniquenses diziam “assimilação”, quando fui eleito deputado, eles me pediam
para voltar da França com a Martinica departamento francês. Confesso que fiquei
perturbado. Hesitei. E estou convencido, cara Maryse Condé, que aquela que está
diante de mim, que revejo ainda sentada, refletindo, em seu escritório da Rua
des Ecoles, com Alioune e Christiane Diop, me compreenderá. Hesitei. Finalmente
- e isso foi um drama para mim - compreendi. A assimilação, isso significa a
alienação, a recusa de si mesmo. E terrível… Mas você pensa então que as
pessoas de Fort-de-France e dos subúrbios não entendiam isso totalmente: eles
pronunciavam a palavra “assimilação” e lhe davam um sentido bem particular.
Aceitei defender essa tese porque compreendi - e é evidente – que há as
palavras mas também o que há por trás das palavras. Na
realidade, o pobre coitado que vinha se pendurar em mim para me pedir a
assimilação, para que a Martinica se tornasse um departamento francês, não é a
assimilação que ele queria. Ele queria a igualdade com os franceses. Eis porque
nós nos debatemos sobre a idéia de departamentalização, que não supõe
forçosamente a assimilação: um departamento é uma medida de ordem
administrativa. Mas, para mim, o equilíbrio essencial devia se fazer a propósito
da identidade. Daí a importância da cultura. Retorno a tua pergunta: por que as
palavras da poesia são “armas miraculosas”? Porque pensei que é de lá que,
miraculosamente, devia vir a salvação. Isso era, para mim, o milagre.
MC | Você também disse que, enquanto houver negros sobre a terra, a
negritude viverá. Isto é sempre verdadeiro?
AC | Sim, é perfeitamente verdadeiro. E eu o mantenho. O que isso
significa? Tem-se falado muito nesse assunto. Para mim, a negritude é a
cultura, a poesia. Por que? Amo muito tudo o que aprendi no liceu, na Sorbonne.
Acredito muito nisso. Sou um grande admirador dos latinos e mais ainda dos
gregos, mas sei também que há os egípcios e que os gregos e os romanos devem
muito ao Egito, à Etiópia, a tudo esse mundo. Portanto, à África. Tomei
consciência disso muito rapidamente. Atenho-me à cultura, e não a uma cultura
tacanha, clássica, sancionada pelos exames e pelos diplomas europeus. É para
mim uma coisa bem diferente. O que é a poesia? Porque me liguei a ela? Porque
tenho sido poeta e surrealizante? Foi sem querer, eu não fiz de propósito; não
foi para ser de uma escola que me aliei. E, quando André Breton me conheceu,
dei-me conta de que, na realidade, eu praticava surrealismo sem saber… Mas por
que? O me que me arrebatava na sociedade antilhana, era a aparência, a
adaptação mais ou menos destra, todo um lado que eu não suportava, mas eu sabia
que, no homem antilhano, havia outra coisa além dessa aparência. Há algo mais
profundo que isso. E a poesia é a realidade profunda que aparece. Você sabe que
no momento atual procura-se muito por tudo aquilo que está por debaixo da
crosta terrestre. Ah então, o que eu queria fazer, era buscar o que há por
debaixo da crosta mundana, acadêmica. O que o revela? Quando bruscamente você
se depara com a imagem poética que brilha, preste atenção! Diria agora, não
conheço muito bem a geografia - que é um geyser… Atenção para a imagem poética:
ela é reveladora do mundo mais profundo. Eis porque ela é miraculosa.
MC | Você pensa que, graças à negritude, os martiniquenses e os
guadalupeanos mudaram?
AC | Não, não peço que eles mudem, mas que tomem consciência de sua
realidade profunda.
MC | Eles o fizeram?
AC | Sim, acredito. Acredito que houve progresso. Mas não é fácil,
você sabe, não é de todo fácil. Acredito que a consciência de uma identidade
fez grandes progressos entre nós.
MC | Olhe a África de hoje: guerras civis, lutas, doenças,
destruições de povos inteiros. O que você poderia dizer a um jovem antilhano
para que ele mantenha a fé na África?
AC | Penso, bem simplesmente, que é a juventude que deve dizer o
que ela vai fazer. Fizemos uma experiência, mas tenho bastante consciência de
que um ciclo terminou, e há um outro mundo a inventar. Para inventá-lo, é
preciso fazer o balanço do que foi feito e do que existe. O tempo das
ideologias sumárias está esgotado. Precisa-se de outra coisa. Precisa-se de uma
outra África. Mas tenha certeza: precisa-se também de um outro mundo.
MC | Quem fará nascer essa outra África?
AC | É essa juventude. É a nova juventude. Lutamos pela
descolonização e encontramos uma África dividida, um novo tribalismo. Veja o
estado do Congo, da Libéria, da Costa do Marfim. Isso não é doloroso? Lembro-me
de quando eu estava na Assembléia nacional com Houphouët-Boigny: nós o
criticávamos com freqüência muito amistosamente. Houphouët, na realidade, tinha
empreendido alguma coisa e acreditava ter obtido êxito nela. Talvez porque ele
tivesse meios totalmente insuficientes não era forçosamente a boa direção, mas
havia uma experiência. Houphouët-Boigny queria a marfinidade. Ele devia
empregar meios diplomáticos que tiveram êxito enquanto permaneceu vivo, mas
depois o problema, no entanto, não ficou resolvido. E o Senegal: sei de todas
as dificuldades que Léopold Sédar Senghor encontrou…
MC | Você não respondeu à pergunta: como se pode manter a fé?
AC | Não conheço o método. Temos a fé ou não a temos, mas eu me
recuso a perder as esperanças na África. Isso seria recusar ter esperança, tão
simplesmente. É enraizado, fundamental. Conheço todas as desgraças que
aconteceram. Não as nego, sou extremamente lúcido, mas recuso perder as
esperanças porque perder as esperanças é recusar a vida. É preciso manter a fé.
MC | Quando se vê que Martinica e Guadalupe permanecem departamentos
após um combate tal como o teu, o que nos pode fazer crer que amanhã será
melhor?
AC | Você parece acreditar que somos prisioneiros desse hábito de
circunstância. Mas isso foi um meio entre outros! É preciso levar em conta essa
experiência, o que ela trouxe e, ao mesmo tempo, suas insuficiências. Quando os
martiniquenses e os guadalupeanos (toda essa população que era um pouco como
Haiti, sem recursos, sem moradia, sem trabalho) se tornaram os habitantes dos
departamentos franceses, vi a desertificação da Martinica: essas pobres pessoas
se precipitavam em direção a Fort-de-France e vinham me ver. E você acredita
que era preciso ficar imóvel? O que fazer? Elas pediam indenizações, a
previdência social etc. Progressos eram feitos do ponto de vista social na
metrópole: e porque não entre nós? É isso que elas queriam, na realidade.
Acredito que, efetivamente, isso ajudou, não se pode negá-lo. Progressos reais
foram realizados. Pensava já um pouco, eu suspeitava - mas agora estou
convencido disso - que era totalmente insuficiente. Era preciso começar por lá,
mas é preciso agora ir mais longe e encontrar instituições novas que
compreenderão o sentido profundo da história desses povos. De imediato, é
preciso levar o homem antilhano a tomar suas responsabilidades diante da
História. Isto não é simplesmente “vítima-vítima”! Não. Agora chegou o momento
da responsabilidade. No fundo, Mme Girardin, ministra das Relações
Ultramarinas, não estava tão errada quando ela nos disse a propósito do
referendum de dezembro último: “Você começa a nos aborrecer! Responda: o que
você quer?” Na minha opinião, isto foi muito mal conduzido, mas pouco importa.
Em todo caso, isso indica que o homem antilhano está agora aos pés do muro.
“Hein! Vá! Escolha!”
MC | Na ocasião do colóquio Césaire de dezembro último, em Nova
Iorque, tratei do tema “Aimé Césaire e a América”. Confesso que tive muito
trabalho. Você pode clarificar suas relações com os Estados Unidos, onde,
contrariamente ao que se acredita, você passou várias temporadas. Em 1945, você
encontrou lá André Breton. E descobri no livro de Patrice Louis que você foi à
Flórida em 1946. Você voltou lá em 1987 por convite de Carlos Moore. A América
é o quê para você?
AC | Não tenho resposta… Como não pensar na América? É assim mesmo
um mundo sagrado, uma força, uma potência, uma experiência. Mas, não escondo de
você, o que sempre me interessou na América - não sei se está ultrapassado -,
são os negros americanos, o movimento negro. Isto era essencial para mim. Toda
a nossa geração foi profundamente marcada por essa experiência. Quando eu era
estudante de filosofia, era para nós um caminho diferente daquele que
conhecíamos na França. A América era o negro moderno, mas que permaneceu negro.
Era Langston Hughes, Countee Cullen, a Black Renaissance. Isso me parecia uma
enorme experiência. Havia lá um movimento em profundidade.
MC | Você traduziu poemas de Sterling Brown. Por que?
AC | But I have forgotten all my
english. [Aimé Césaire brinca de pronunciar seu inglês
escolar.] I have learned at school when I was a boy. I can read a little but I
can’t speak. I don’t understand. [2]
MC | Em sua obra, há uma influência americana?
AC | Sim: a atitude diante da vida, diante da civilização. Senti
que havia lá uma verdade, uma profundidade. Sair do academicismo francês.
Liberdade, Igualdade, Fraternidade: muito bem. Mas por que jamais veio para nós
a fraternidade? Jamais a tivemos. Temos a liberdade, como se pode tê-la no
mundo. Houve um esforço para a igualdade. Mas a fraternidade, onde ela está?
Acredito que não poderemos jamais tê-la, a fraternidade. Se você não me
reconhece, porque quer que sejamos irmãos? Eu te respeito, reconheço-te, mas é
preciso que você me respeite e me reconheça. E aí a gente se abraça. Para nós,
a fraternidade é isto.
MC | Aimé Césaire teria um herdeiro?
AC | Jamais me coloquei esta questão. Não tenho nenhuma pretensão
particular. Disse o que pensava, disse o que eu acreditava. Não sei se tenho ou
não razão, mas permaneço fiel a isso e à África fundamental. Já me deformaram,
transformaram, caricaturaram muito. Acredito simplesmente no homem. Não sou de
maneira alguma racista. Respeito o homem europeu. Conheço sua história.
Respeito o povo francês. Respeito todos os homens quaisquer que eles sejam, mas
penso também que é preciso lhes fazer a lição e lhes dizer que o homem negro,
isso existe, e que a ele também é preciso respeitar. Por que eu disse
“negritude”? Não é de maneira alguma porque acredito na cor. Não é de maneira
alguma isso. É preciso sempre ressituar as coisas no tempo, na História, nas
circunstâncias. Não se esqueça de que, quando a negritude nasceu, na véspera da
Segunda Guerra mundial, a crença geral, no liceu, na rua, era uma espécie de
racismo subjacente. Há a selvageria e a civilização. De boa fé, todo o mundo
estava convencido de só havia uma civilização, a dos europeus - todos os outros
eram selvagens. É claro, há pessoas mais ou menos brutais ou mais ou menos
inteligentes. Lisez Gobineau. Até mesmo em Renan, fiquei perturbado, encontrei
páginas absolutamente extraordinárias. Bem entendido, a opinião pública
deforma, vulgariza. Até mesmo os negros… Lembro-me ainda que, um dia em que eu
estava perto da biblioteca Sainte-Geneviève, um grande tipo vem em direção a
mim, um homem de cor. Ele me diz: “Césaire, gosto muito de você, mas há uma
coisa que reprovo em você. Por que você fala assim da África? É um bando de
selvagens. Não temos mais nada a ver com eles.” Eis o que ele me disse. É
terrível! Até mesmo os negros estavam convencidos disso. Eles estavam
penetrados de valores falsos. É contra isso que se tratava, e que se trata,
ainda, de reagir. E depois, um belo dia, Léopold Sédar Senghor disse: “Estamos
pouco nos lixando! Negro? Mas sim, sou um negro! E daí?!” E eis aqui como
nasceu a negritude: de um movimento de humor. Dito de outra maneira, o que era
proferido e lançado na cara como um insulto trazia a resposta: “Mas sim, sou
negro, e daí?!”
MC | Neste ano aparece uma nova tradução inglesa dos Damnés
de la terre, de Frantz Fanon. Para você, aquele que pareceu um visionário
para as lutas do terceiro-mundo mantém sua pertinência e sua atualidade?
AC | Não segui Frantz Fanon porque era uma outra geração e porque
ele foi nem mais nem menos do que meu aluno, portanto não o conheci muito bem.
Mas sempre vi que era uma coisa extremamente importante. Há coisas fundamentais
que são sempre verdadeiras. Agora, é preciso levar em conta as circunstâncias
nas quais ele viveu. Para um antilhano, tudo não está em Frantz Fanon porque a
vida quis que, o país colonizado, as Antilhas não fossem primordiais para ele.
Toda a sua atividade, sua fé, sua energia, ele as pôs a serviço da Argélia, de
um outro mundo. Sua obra é muito importante. Ela vale também para nós. O que
ele pensava das Antilhas? Ele não teve o tempo de nos dizer de maneira muito
completa. Em todo caso, é uma reflexão considerável… Concretamente, Fanon não
pôde se ocupar da questão antilhana. Não é uma crítica. As Antilhas nunca
estiveram prontas também para ouvir a mensagem dele. É uma crítica que eu faria
aos antilhanos.
MC | Você pensa que essa globalização da qual se fala tanto afetará
a literatura? Já, como disse o poeta Monchoachi, não se sabe mais onde começa e
onde termina o Caribe. Segundo você, quais serão os efeitos desses exílios e
dessas migrações?
AC | É por isso, precisamente, que é preciso manter a fé, e manter
a negritude. No momento atual, a França é um pouco, em relação ao mundo, o que
a Martinica é em relação à França. É isto a mundialização. Os franceses começam
também a reagir. E isto é vital. Estou convencido de que, na mundialização e na
uniformização, a identidade não está morta. Ela despertará. Não é tão fácil
assim é claro, mas a Europa sentirá essa necessidade de se retomar, como as
Antilhas sentirão a necessidade de se repersonalizar.
MC | Você escreve as suas Memórias?
AC | Minhas Memórias? Não, minha cara Maryse, não tenho tempo…
Jamais tive a intenção de escrever as minhas Memórias. Não era meu objetivo
essencial. Sempre reagi à minha maneira. Posso também dizer “Merda!”. É tudo.
Isto não é uma obra. Há coisas que me são insuportáveis e que me parecem
fundamentais. Não quis ser prefeito de Fort-de-France de maneira alguma, mas
respondi ao que me parecia então uma necessidade, uma exigência. Aos 91 anos,
estou realmente muito velho. O que eu queria é que a fé não estivesse perdida.
Haverá outras expressões, elas serão diferentes mas a partir de uma coisa
fundamental…
MC | E a qual você fundou …
AC | Não, tomei consciência simplesmente daquilo que sou e,
acredito, daquilo que somos. Não conheço a forma que isso tomará exatamente,
mas sei que isso é a coisa fundamental.
MC | Você tem uma fé que minha geração não tem. Nós somos, antes,
desesperados porque temos a impressão de que nada foi feito, que Guadalupe e
Martinica permanecem no mesmo estágio, que não há progressos profundos. Somos
sempre departamentos, temos passaportes franceses… Como você faz para manter
esse dinamismo que nós não temos?
AC | Dinamismo? Não tenho isso, não tenho mais. Mas acredito nisto.
Isto é a fé, talvez, não? Não é forçosamente a razão…
MC | Não seria mais justo substituir a palavra “fé” pela palavra
“esperança”?
AC | Tenho sempre uma esperança porque acredito no homem. Talvez
isso seja estúpido. O caminho do homem é cumprir a humanidade, tomar
consciência de si mesmo. Velhas lembranças retornam a mim: em Louis-le-Grand
tínhamos professores muito admiráveis: Louis Lavelle, uma espécie de existencialista
muito cristão, e o padre Cresson, um kantiano que escreveu um livro pela
editora Armand Colin. Eu não sou kantiano; o kantismo é muito ocidental. Para
ele, a obra de Kant se reduz a três questões fundamentais: “Quem sou eu?” (nos
bancos da Sorbonne, aconteceu-me de me perguntar isso, e compreendi muito bem
quem eu era); “Que devo fazer?” (isso é a moral, uma questão que coloco a mim
mesmo); e “O que me é permitido esperar?” Ele não disse: “O que eu espero?” E
para mim este último ponto é tudo.
NOTAS
1. Auguste
Boucolon, irmão mais velho de Maryse Condé, condiscípulo de Aimé Césaire e
primeiro agregado de gramática guadalupeana.
2.
“Mas eu esqueci todo o meu inglês. […] Aprendi na escola
quando garoto. Sei ler um pouco mas não sei falar. Não entendo.” [N.T.]
Esta entrevista foi publicada originalmente na revista Lire (Paris,
junho de 2004). Maryse Condé (Guadalupe, 1937) é uma notável
romancista, autora de livros como Heremakhonon (1976), Ségou (2
volumes, 1984-85), Desirada (1997), e Célanire
cou-coupé (2000). A nota de apresentação está assinada pelo jornalista
francês Patrice Louis, autor de um livro fundamental intitulado A B
C…ésaire (2003), principal retrato crítico da obra e do pensamento do
poeta Aimé Césaire (Martinica, 1913). A tradução da entrevista esteve a cargo
de Éclair Antonio Almeida Filho. Contato com Patrice Louis: patrice.louis-atv@wanadoo.fr. Agulha Revista de Cultura # 53. Setembro de
2006.
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