António Maria
Lisboa morreu em 1953, aos vinte e cinco anos, tuberculoso (e louco, segundo
alguns). Os seus três únicos livros, Ossóptico,
Erro próprio e Isso Ontem Único foram publicados por Luiz Pacheco, na editora Contraponto,
no ano anterior à morte. Só o primeiro é integralmente um livro de poesia, os
outros reunem ensaios, poemas em prosa e verso e textos mistos. Parece que
António Maria Lisboa é um desses artistas colhidos pela morte na flor da idade,
antes de terem tido tempo para frutificar. Deram flor, uma flor auspiciosa e
deslumbrante, mas não chegou a flor a cair para dar lugar à maturidade.
Ossóptico é um livro de
poemas fulgurantes, atravessados por imagens que ficam a chispar na nossa
imaginação e enunciados que deixam em carne viva os problemas sugeridos. Aqui e
ali cintilam, na obra em geral, pensamentos soltos como contas de um colar a
que falta o fio que as interligue umas às outras: “Olhar é desaparecer”,
escreve ele, sentindo-se invisível face à magnificência do que os olhos imaginaram.
Entre os temas que o poeta mais nos dá a
ver, SAGIR faz a sua radiosa aparição. Assim em maiúsculas, SAGIR, um nome
estranho com sabor a anagrama ou password nos nossos contemporâneos programas
de computador. É já meu este automatismo psíquico de ligar o termo, tal como
“ossóptico”, ao “poemacto” de Herberto Helder. Em comum têm os termos a vontade
de fundir a ação a algo mais, sabemos que se trata de usar a palavra na sua
qualidade de instrumento criador, algo como um machado para abater a árvore,
uma serra para cortar a madeira, uma plaina para alisar a obra de marcenaria. São
vários os pontos de contacto entre os dois poetas porque ambos são espíritos do
Surrealismo.
S + AGIR, vejamos. Agir de certa forma, e
o S de serpente é naturalmente serpentino, sinuoso e labiríntico, à maneira do
rasto deixado na areia pelo movimento desse símbolo da sabedoria que o é
igualmente da deusa Terra, Terra-Mater como ele tantas vezes escreve, e por
vezes enterra, tumulando-se ambos, ele e a mãe.
Imagem forte de amor filial, e além dela o enterramento cumula também a
capacidade de exprimir os afetos. Há limites para a nossa capacidade de dizer,
além deles o poeta emudece, ou desaparece como quando olha. Claro que também
desaparecemos debaixo da terra, mas no caso do símbolo o que mais se oculta é
Ofiusa, a Terra da Serpente, nome dado por antigos a territórios em cujo mapa hoje
se localiza Portugal.
De outra parte ainda, em S + AGIR vemos o
óbvio: agir de forma S, “S” de “Surrealista”, tomando do símbolo da serpente o
lado cristão, diabólico, imperativo de uma moral repressiva do corpo, que o
poeta quer livre da moral. E teríamos assim, em resultado, o abjecionismo,
atitude contra, recusa total do sistema, operada pela poesia.
Porém, SAGIR é um pouco mais ainda
enquanto imagem do feminino. É a Mãe, muito mais do que mulher e do que
“Mulher-Mãe”, como escreve António Maria Lisboa em textos diversos: SAGIR, a
personagem obsessiva, também se chama Ísis, o que não é chave para abrir a
porta do conhecimento, pelo contrário, Ísis é o segredo, porta fechada sobre os
mistérios da religião egípcia.
A edição da Assírio & Alvim, que
colige os três livros e mais textos, organizada por Mário Cesariny de
Vasconcelos, finaliza com a correspondência enviada por António Maria Lisboa de
Paris, de Braga, de Coimbra e outros lugares, aos surrealistas seus companheiros,
a quem por vezes dirige coletivamente as cartas e enumera numa das primeiras: (Mário)
Cesariny, (António) Domingues, Fernando (Alves dos Santos), (Mário) Henrique
(Leiria), Pedro (Oom) e (Cruzeiro) Seixas, mas também escreve a Luiz Pacheco. Na
correspondência bebe-se muita informação iluminante para o conhecimento de
António Maria Lisboa. Patenteia-se nela a tendência do autor para a especulação
filosófica e a sua apaixonada (des)orientação para as matérias religiosas e de
índole psicológica que sintetiza no termo “Metaciência”. É assim que escreve a
Mário Cesariny, de Paris, em 1949: «A grande notícia é talvez a minha iniciação
Mágica-Espírita-ocultista-cabalística-istaista-ista-ista, etc., a compra de
livros sérios que me esgotaram as massas (…)».
Se por iniciação entendemos a integração
de um neófito nos mistérios de um rito, sob orientação de um Mestre, à maneira
das iniciações maçónicas, não parece que a AML se possa aplicar o título de
iniciado. Como ele mesmo deixa perceber, trata-se, isso sim, da descoberta de
livros, livros fascinantes para a imaginação de um jovem de vinte e poucos
anos, cuja maturidade intelectual e afetiva ainda estavam por alcançar. Não
deixa no entanto de ser tão fascinante para nós como para ele essa iniciação no
oculto, visto que se trata de um caminho para o conhecimento, apresentado como
cofre com segredo a necessitar de chave para ser aberto: o Automatismo, com
maiúscula, assim escreve ele. O poeta entende que o automatismo psíquico, usado
pelos espíritas, tem poder para abrir a porta do mistério. Dado o seu caminho iniciático
nas literaturas que lidam com símbolos, António Maria Lisboa toma consciência
de que elas o podem subtrair às tendências gerais, conferindo-lhe a
originalidade a que todo o artista aspira. Daí recusar o epíteto de
surrealista, pois acredita que a surrealidade é comum a todos os grandes
poetas, preferindo intitular-se “metacientista”.
A iniciação de António Maria Lisboa,
apesar de se delimitar no campo das leituras, ecoa nos poemas em temáticas
decisivas para a sua configuração original, caso dos mistérios. Mais
precisamente dos mistérios que sugere o Livro dos Mortos, para retomarmos a
figura de ÍSIS, que equiparamos a SAGIR. Nos textos de Lisboa erguem-se essas duas
figuras muito poderosas, Ísis e Osíris, poderosas porque o poeta as carrega com
o seu amor filial. Na narrativa O senhor
Cágado e o Menino, o snr Cágado e o Menino de bronze leem-se num espelho
autobiográfico sobretudo nas linhas finais, que incluem assinatura do autor, e
melhor é citar:
O Menino de
bronze repousa na solidão da Lua nasceu-lhe um olho de chacal que é o animal que só passa nos caminhos
livres e são todos – os lobos é que andam à espreita – e o coração é de Leão. E
esta é a sua Lealdade e o seu Amor como
Destino e o Sentido seu que tem e chama-se
António Maria
Lisboa.
FIM
DO PRIMEIRO DIA
- Seus pais são
SAGIR e IGASI.
Os sacerdotes de Anúbis usavam máscaras
de chacal durante os rituais de mumificação, e Anúbis, o que verificava se o
coração do morto era mais leve ou não do que uma pena de avestruz, ao usar a
balança para pesar as almas, era um deus zoomórfico, representado com cabeça de
chacal.
António Maria Lisboa não foi um iniciado
no sentido em que tivesse entrado numa Ordem. Nos anos cinquenta isso era
difícil, mais fácil teria sido a iniciação no dobrar do século, mas nessa
altura ainda não tinha nascido. Leu porém muito do que os iniciados praticam e
até frequentou o mais clássico local profano de reunião de maçons, o Café Gelo.
Foi do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa, que sairam os regicidas, era no Café
Gelo que reuniam com os camaradas, foi no Café Gelo que décadas depois um ato
subversivo foi praticado por iniciados cujo templo tinha passado à
clandestinidade - a queima de uma fotografia do iniciado Sidónio Pais, que
Fernando Pessoa nomeou “Presidente-Rei”. Outros atos subversivos no seguimento
se praticaram, já não movidos por partidarismo político, sim de transformação
do mundo por mudança de valores, e agora já falamos do Café Gelo como
parlatório surrealista.
António Maria Lisboa foi no entanto um
iniciado, à sua maneira autossuficiente. Foi-o por ter encontrado o objetivo da
iniciação, que é o conhecimento si mesmo com sequente aperfeiçoamento da alma.
Ele o diz, nas cartas aos amigos, ao falar dos peritos na descoberta da psique:
Freud, que o Surrealismo vai impor como Mestre, com uma arte-ciência que
fornece grelhas para a exegese do discurso do inconsciente, seja o Automatismo
um exemplo desse tipo de fala; e Sherlock Holmes, escreve o poeta, na carta
enviada a Henrique do Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em fevereiro de
1952, pondo a personagem acima do seu autor:
«Pena é, aqui e pena, que existam surrealistas (a camada mais sensível, mais
inteligente e capaz) que após Freud e anos de Freudismo, após Sherlock Holmes e
anos de detectivismo, após a descoberta e renovação
dos processos mágicos, etc., etc. pretenda poder encobrir uma (a sua) personalidade,
os seus propósitos (etc., etc.); e que não tivesse descoberto que a única forma
de encobrir (aqui é ocultar) é a do
constante, persistente enriquecimento! – Diga-se, apesar disso: -
Enriquecimento não no sentido de se construir, mas no de se destruir;
precisamente, não me enganei – DESTRUIR.».
«Détruire, dit-elle», diz Herberto Helder
em Cobra, remetendo para Marguerite
Duras. Era preciso destruir tudo.
Na iniciação em templo vemos as vantagens
do grémio e da bússola, mas não uma autoridade maior do que a poética,
sobretudo aceitando-se que a Poesia é a mãe do símbolo, como aventa António
Maria Lisboa. A função do Mestre é atualizar e reinterpretar os símbolos
enquanto fala antiquíssima (de Deus). Ninguém então como o Poeta para exercer
magistério sobre a matéria-prima da iniciação.
ANTOLOGIA
VARECH
Eu estimo sobre
tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos
inúteis, a tua boca verde
Eu falo somente
dos relógios caídos, dos autocarros
Eu falo somente
dos pés vermelhos
Eu falo... eu
falo... eu falo...
No vigésimo
século as nuvens são árvores
e os pássaros
mais pequenos grandes paquidermes
Sim, é verdade,
os cabelos loiros
Então,
meia-noite!
Senhora, se me
dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente
A criança é
porca, é inútil
Muito obrigado.
POEMA DO COMEÇO
Eu num camelo a
atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão
muito aberta
Eu num barco a
remos a atravessar a janela
da pirâmide com
um copo esguio e azul coberto de
escamas
Eu na praia e um
vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na
areia
Eu na noite com
um objecto estranho na algibeira
-- trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino
coberta de musgo
PROJECTO DE
SUCESSÃO
Para o Mário
Henrique
Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
continuar deitado até se destruir a cama
permanecer de pé até a polícia vir
permanecer sentado até que o pai morra
Arrancar os cabelos e não morrer numa rua
solitária
amar continuamente a posição vertical
e continuamente fazer ângulos rectos
Gritar da janela até que a vizinha ponha as
mamas de fora
por-se nu em casa até a escultora dar o sexo
fazer gestos no café até espantar a clientela
pregar sustos nas esquinas até que uma
velhinha caia
contar histórias obscenas uma noite em família
narrar um crime perfeito a um adolescente
loiro
beber um copo de leite e misturar-lhe
nitro-glicerina
deixar fumar um cigarro só até meio
Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
beber-se por um copo de oiro e sonharem-se
índias.
UMA VIDA ESQUECIDA
Para o Fernando
Alves dos Santos
Eu conheço o vidro franja por franja
meticulosamente
à porta parado um homem oco
franja por franja no espaço
meticulosamente oco uma porta parada.
Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
dez badaladas por brincadeira dança
um homem com pernas de mulher
e um olhar devasso no Marte
passo por passo uma criança chora
uma águia e um vampiro recuados no tempo.
Z
As formas, as
sombras, a luz que descobre a noite
e um pequeno pássaro
e depois longo tempo eu te perdi de vista
meus braços são dois espaços enormes
os meus olhos são duas garrafas de vento
e depois eu te conheço de novo numa rua
isolada
minhas pernas são duas árvores floridas
os meus dedos uma plantação de sargaços
a tua figura era ao que me lembro da cor do
jardim.
[In Ossóptico]
AS CINCO LETRAS
EM VIDRO
É um estilete de luz
a imensidade de que és feita
e contorna um azul-sonho-neve
igual aos cabelos que descobri a saírem da tua boca
- dos teus olhos
de imaginação
- dos teus
lábios curvos de aurora.
Saímos
enquanto as pessoas olhavam admiradas o Arco do Triunfo
deixando escorrer dos bolsos fitas e serpentinas
para tudo se passar como no pássaro
para deixar objectivamente escrito
nas margens do rio
do Mar
- o continente
submerso
- o navio de
todos os amantes
por onde rola
a carruagem em que viajamos
pintada de
Liberdade e de Poesia
contigo a
dormir sobre o meu peito.
POR ISSO
EU SENTI SER FÁCIL O SUICÍDIO
FÁCIL E POSSÍVEL.
Fixou-se no muro da tua residência
sobre a porta que se abre ao visitante
um símbolo mágico e de cabala
- a
oportunidade do meu regresso
- a história
maravilhosa que te direi na viagem.
Procurei
nas folhas espalhadas pelo nosso leito
a recordação do que há-de vir
- apenas no
esparso
- no diverso
- no acto
simultâneo de defesa
- no viajar de
aeróstato incógnito de distância
- na noite
mágica
NA
PRIMEIRA GRANDE NOITE MÁGICA QUE NÓS
TIVEMOS.
Abriu-se a janela que caminhava sozinha
e saiu um sonho simples de criança:
O METEORO DA TRANSFORMAÇÃO
pousado a um canto o meu Jogo de Cabala
(um montinho
de quadrados,
de círculos,
de triângulos,
dispostos
geometricamente
sobre um
tabuleiro grande)
o meu Tratado de Magia Humana
(um caminho de
ogivas, um
relógio a dar
horas sobre
um túmulo em
pé, os postes
magnéticos, os
cordões da angústia)
FALO - no Laboratório Mágico ao dar-se a aparição espon-
tânea de
Lautréamont e Freud que traziam sobre as
sobrancelhas um corte fino a atravessá-Ias lado a
lado: -
Ao aparecer a mulher escandalosamente
vestida de vermelho
ele dirige-se para a jovem
e os outros passeiam sobre as rochas
onde fica oculto o corpo do homem que chega continuamente
MUDO APONTA O HORIZONTE.
[In:
Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista]
Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos
a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau
Saião
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o
projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha Revista
de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e
Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de
Floriano Martins e Márcio Simões.
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