sexta-feira, 22 de abril de 2016

MARIA ESTELA GUEDES | A iniciação de António Maria Lisboa


António Maria Lisboa morreu em 1953, aos vinte e cinco anos, tuberculoso (e louco, segundo alguns). Os seus três únicos livros, Ossóptico, Erro próprio e Isso Ontem Único foram publicados por Luiz Pacheco, na editora Contraponto, no ano anterior à morte. Só o primeiro é integralmente um livro de poesia, os outros reunem ensaios, poemas em prosa e verso e textos mistos. Parece que António Maria Lisboa é um desses artistas colhidos pela morte na flor da idade, antes de terem tido tempo para frutificar. Deram flor, uma flor auspiciosa e deslumbrante, mas não chegou a flor a cair para dar lugar à maturidade.
Ossóptico é um livro de poemas fulgurantes, atravessados por imagens que ficam a chispar na nossa imaginação e enunciados que deixam em carne viva os problemas sugeridos. Aqui e ali cintilam, na obra em geral, pensamentos soltos como contas de um colar a que falta o fio que as interligue umas às outras: “Olhar é desaparecer”, escreve ele, sentindo-se invisível face à magnificência do que os olhos imaginaram.
Entre os temas que o poeta mais nos dá a ver, SAGIR faz a sua radiosa aparição. Assim em maiúsculas, SAGIR, um nome estranho com sabor a anagrama ou password nos nossos contemporâneos programas de computador. É já meu este automatismo psíquico de ligar o termo, tal como “ossóptico”, ao “poemacto” de Herberto Helder. Em comum têm os termos a vontade de fundir a ação a algo mais, sabemos que se trata de usar a palavra na sua qualidade de instrumento criador, algo como um machado para abater a árvore, uma serra para cortar a madeira, uma plaina para alisar a obra de marcenaria. São vários os pontos de contacto entre os dois poetas porque ambos são espíritos do Surrealismo.
S + AGIR, vejamos. Agir de certa forma, e o S de serpente é naturalmente serpentino, sinuoso e labiríntico, à maneira do rasto deixado na areia pelo movimento desse símbolo da sabedoria que o é igualmente da deusa Terra, Terra-Mater como ele tantas vezes escreve, e por vezes enterra, tumulando-se ambos, ele e a mãe.  Imagem forte de amor filial, e além dela o enterramento cumula também a capacidade de exprimir os afetos. Há limites para a nossa capacidade de dizer, além deles o poeta emudece, ou desaparece como quando olha. Claro que também desaparecemos debaixo da terra, mas no caso do símbolo o que mais se oculta é Ofiusa, a Terra da Serpente, nome dado por antigos a territórios em cujo mapa hoje se localiza Portugal.
De outra parte ainda, em S + AGIR vemos o óbvio: agir de forma S, “S” de “Surrealista”, tomando do símbolo da serpente o lado cristão, diabólico, imperativo de uma moral repressiva do corpo, que o poeta quer livre da moral. E teríamos assim, em resultado, o abjecionismo, atitude contra, recusa total do sistema, operada pela poesia.
Porém, SAGIR é um pouco mais ainda enquanto imagem do feminino. É a Mãe, muito mais do que mulher e do que “Mulher-Mãe”, como escreve António Maria Lisboa em textos diversos: SAGIR, a personagem obsessiva, também se chama Ísis, o que não é chave para abrir a porta do conhecimento, pelo contrário, Ísis é o segredo, porta fechada sobre os mistérios da religião egípcia.
A edição da Assírio & Alvim, que colige os três livros e mais textos, organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos, finaliza com a correspondência enviada por António Maria Lisboa de Paris, de Braga, de Coimbra e outros lugares, aos surrealistas seus companheiros, a quem por vezes dirige coletivamente as cartas e enumera numa das primeiras: (Mário) Cesariny, (António) Domingues, Fernando (Alves dos Santos), (Mário) Henrique (Leiria), Pedro (Oom) e (Cruzeiro) Seixas, mas também escreve a Luiz Pacheco. Na correspondência bebe-se muita informação iluminante para o conhecimento de António Maria Lisboa. Patenteia-se nela a tendência do autor para a especulação filosófica e a sua apaixonada (des)orientação para as matérias religiosas e de índole psicológica que sintetiza no termo “Metaciência”. É assim que escreve a Mário Cesariny, de Paris, em 1949: «A grande notícia é talvez a minha iniciação Mágica-Espírita-ocultista-cabalística-istaista-ista-ista, etc., a compra de livros sérios que me esgotaram as massas (…)».
Se por iniciação entendemos a integração de um neófito nos mistérios de um rito, sob orientação de um Mestre, à maneira das iniciações maçónicas, não parece que a AML se possa aplicar o título de iniciado. Como ele mesmo deixa perceber, trata-se, isso sim, da descoberta de livros, livros fascinantes para a imaginação de um jovem de vinte e poucos anos, cuja maturidade intelectual e afetiva ainda estavam por alcançar. Não deixa no entanto de ser tão fascinante para nós como para ele essa iniciação no oculto, visto que se trata de um caminho para o conhecimento, apresentado como cofre com segredo a necessitar de chave para ser aberto: o Automatismo, com maiúscula, assim escreve ele. O poeta entende que o automatismo psíquico, usado pelos espíritas, tem poder para abrir a porta do mistério. Dado o seu caminho iniciático nas literaturas que lidam com símbolos, António Maria Lisboa toma consciência de que elas o podem subtrair às tendências gerais, conferindo-lhe a originalidade a que todo o artista aspira. Daí recusar o epíteto de surrealista, pois acredita que a surrealidade é comum a todos os grandes poetas, preferindo intitular-se “metacientista”.
A iniciação de António Maria Lisboa, apesar de se delimitar no campo das leituras, ecoa nos poemas em temáticas decisivas para a sua configuração original, caso dos mistérios. Mais precisamente dos mistérios que sugere o Livro dos Mortos, para retomarmos a figura de ÍSIS, que equiparamos a SAGIR. Nos textos de Lisboa erguem-se essas duas figuras muito poderosas, Ísis e Osíris, poderosas porque o poeta as carrega com o seu amor filial. Na narrativa O senhor Cágado e o Menino, o snr Cágado e o Menino de bronze leem-se num espelho autobiográfico sobretudo nas linhas finais, que incluem assinatura do autor, e melhor é citar:

O Menino de bronze repousa na solidão da Lua nasceu-lhe um olho de chacal  que é o animal que só passa nos caminhos livres e são todos – os lobos é que andam à espreita – e o coração é de Leão. E esta é a sua Lealdade e o seu Amor como  Destino e o Sentido seu que tem e chama-se
António Maria Lisboa.
FIM DO PRIMEIRO DIA
- Seus pais são SAGIR e IGASI.

Os sacerdotes de Anúbis usavam máscaras de chacal durante os rituais de mumificação, e Anúbis, o que verificava se o coração do morto era mais leve ou não do que uma pena de avestruz, ao usar a balança para pesar as almas, era um deus zoomórfico, representado com cabeça de chacal.
António Maria Lisboa não foi um iniciado no sentido em que tivesse entrado numa Ordem. Nos anos cinquenta isso era difícil, mais fácil teria sido a iniciação no dobrar do século, mas nessa altura ainda não tinha nascido. Leu porém muito do que os iniciados praticam e até frequentou o mais clássico local profano de reunião de maçons, o Café Gelo. Foi do Café Gelo, no Rossio, em Lisboa, que sairam os regicidas, era no Café Gelo que reuniam com os camaradas, foi no Café Gelo que décadas depois um ato subversivo foi praticado por iniciados cujo templo tinha passado à clandestinidade - a queima de uma fotografia do iniciado Sidónio Pais, que Fernando Pessoa nomeou “Presidente-Rei”. Outros atos subversivos no seguimento se praticaram, já não movidos por partidarismo político, sim de transformação do mundo por mudança de valores, e agora já falamos do Café Gelo como parlatório surrealista.
António Maria Lisboa foi no entanto um iniciado, à sua maneira autossuficiente. Foi-o por ter encontrado o objetivo da iniciação, que é o conhecimento si mesmo com sequente aperfeiçoamento da alma. Ele o diz, nas cartas aos amigos, ao falar dos peritos na descoberta da psique: Freud, que o Surrealismo vai impor como Mestre, com uma arte-ciência que fornece grelhas para a exegese do discurso do inconsciente, seja o Automatismo um exemplo desse tipo de fala; e Sherlock Holmes, escreve o poeta, na carta enviada a Henrique do Sanatório da Quinta dos Vales Covões, em fevereiro de 1952, pondo a personagem acima do seu autor:
«Pena é, aqui e pena, que existam surrealistas (a camada mais sensível, mais inteligente e capaz) que após Freud e anos de Freudismo, após Sherlock Holmes e anos de detectivismo, após a descoberta e renovação dos processos mágicos, etc., etc. pretenda poder encobrir uma (a sua) personalidade, os seus propósitos (etc., etc.); e que não tivesse descoberto que a única forma de encobrir (aqui é ocultar) é a do constante, persistente enriquecimento! – Diga-se, apesar disso: - Enriquecimento não no sentido de se construir, mas no de se destruir; precisamente, não me enganei – DESTRUIR.».
«Détruire, dit-elle», diz Herberto Helder em Cobra, remetendo para Marguerite Duras. Era preciso destruir tudo.
Na iniciação em templo vemos as vantagens do grémio e da bússola, mas não uma autoridade maior do que a poética, sobretudo aceitando-se que a Poesia é a mãe do símbolo, como aventa António Maria Lisboa. A função do Mestre é atualizar e reinterpretar os símbolos enquanto fala antiquíssima (de Deus). Ninguém então como o Poeta para exercer magistério sobre a matéria-prima da iniciação.



ANTOLOGIA

VARECH

Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde

Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros

Eu falo somente dos pés vermelhos

Eu falo... eu falo... eu falo...

No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes

Sim, é verdade, os cabelos loiros

Então, meia-noite!

Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente

A criança é porca, é inútil

Muito obrigado.


POEMA DO COMEÇO 

Eu num camelo a atravessar o deserto 
 com um ombro franjado de túmulos numa mão muito   aberta 

Eu num barco a remos a atravessar a janela 
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de  escamas 

Eu na praia e um vento de agulhas 
 com um Cavalo-Triângulo enterrado na areia 

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira 
 -- trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de   musgo





PROJECTO DE SUCESSÃO

Para o Mário Henrique

 Continuar aos saltos até ultrapassar a Lua
 continuar deitado até se destruir a cama
 permanecer de pé até a polícia vir
 permanecer sentado até que o pai morra

 Arrancar os cabelos e não morrer numa rua solitária
 amar continuamente a posição vertical
 e continuamente fazer ângulos rectos

 Gritar da janela até que a vizinha ponha as mamas de fora
 por-se nu em casa até a escultora dar o sexo
 fazer gestos no café até espantar a clientela
 pregar sustos nas esquinas até que uma velhinha caia
 contar histórias obscenas uma noite em família
 narrar um crime perfeito a um adolescente loiro
 beber um copo de leite e misturar-lhe nitro-glicerina
 deixar fumar um cigarro só até meio
 Abrirem-se covas e esquecerem-se os dias
 beber-se por um copo de oiro e sonharem-se índias.


UMA VIDA ESQUECIDA

Para o Fernando Alves dos Santos

 Eu conheço o vidro franja por franja
 meticulosamente
 à porta parado um homem oco
 franja por franja no espaço
 meticulosamente oco uma porta parada.

 Um relógio dá dez badaladas ininterruptamente
 dez badaladas por brincadeira dança
 um homem com pernas de mulher
 e um olhar devasso no Marte
 passo por passo uma criança chora
 uma águia e um vampiro recuados no tempo.


Z

As formas, as sombras, a luz que descobre a noite
 e um pequeno pássaro

 e depois longo tempo eu te perdi de vista
 meus braços são dois espaços enormes
 os meus olhos são duas garrafas de vento

 e depois eu te conheço de novo numa rua isolada
 minhas pernas são duas árvores floridas
 os meus dedos uma plantação de sargaços

 a tua figura era ao que me lembro da cor do jardim.

[In Ossóptico]



AS CINCO LETRAS EM VIDRO

É um estilete de luz
a imensidade de que és feita
e contorna um azul-sonho-neve
igual aos cabelos que descobri a saírem da tua boca
       - dos teus olhos de imaginação
       - dos teus lábios curvos de aurora.

Saímos
enquanto as pessoas olhavam admiradas o Arco do Triunfo
deixando escorrer dos bolsos fitas e serpentinas
para tudo se passar como no pássaro
para deixar objectivamente escrito
nas margens do rio
        do Mar
        - o continente submerso
        - o navio de todos os amantes
        por onde rola a carruagem em que viajamos
        pintada de Liberdade e de Poesia
        contigo a dormir sobre o meu peito.

             POR ISSO EU SENTI SER FÁCIL O SUICÍDIO
                                                   FÁCIL E POSSÍVEL.

Fixou-se no muro da tua residência
sobre a porta que se abre ao visitante
um símbolo mágico e de cabala
        - a oportunidade do meu regresso
        - a história maravilhosa que te direi na viagem.

Procurei
nas folhas espalhadas pelo nosso leito
a recordação do que há-de vir
        - apenas no esparso
        - no diverso
        - no acto simultâneo de defesa
        - no viajar de aeróstato incógnito de distância
        - na noite mágica

             NA PRIMEIRA GRANDE NOITE MÁGICA QUE NÓS
                  TIVEMOS.

Abriu-se a janela que caminhava sozinha
e saiu um sonho simples de criança:

O METEORO DA TRANSFORMAÇÃO

pousado a um canto o meu Jogo de Cabala

        (um montinho de quadrados,
        de círculos, de triângulos,
        dispostos geometricamente
        sobre um tabuleiro grande)

o meu Tratado de Magia Humana

        (um caminho de ogivas, um
        relógio a dar horas sobre
        um túmulo em pé, os postes
        magnéticos, os cordões da angústia)

FALO - no Laboratório Mágico ao dar-se a aparição espon-
            tânea de Lautréamont e Freud que traziam sobre as
            sobrancelhas um corte fino a atravessá-Ias lado a
            lado: -
Ao aparecer a mulher escandalosamente
vestida de vermelho
ele dirige-se para a jovem
e os outros passeiam sobre as rochas
onde fica oculto o corpo do homem que chega continuamente
MUDO APONTA O HORIZONTE.

                                             [In: Mário Cesariny, A Intervenção Surrealista]



*****

Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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