sexta-feira, 22 de abril de 2016

PAULO JORGE BRITO E ABREU | Poesia de António Maria Lisboa: meu louvor e a defesa do surrealismo


Vereis amor da pátria, não movido / De prémio vil; mas alto, e quase eterno:
Que não é prémio vil ser conhecido / Por um pregão do ninho meu paterno.
LUÍS DE CAMÕES, in Os Lusíadas

No conspecto e aspeito da Letradura, ou Literatura, Portugalaica, fazer é mister um estudo e um escorço de António Maria Lisboa, à luz iluminante duma clareza, ou Portuguesa, Filosofia. E encetamos, desse modo, o excurso e o curso: aqueles que menosprezam, na terra de Ulisseia, o supra-realismo ou surrealismo, é porque nunca, meus Amigos, é porque nunca lá estiveram. Pois certamente, diremos nós: em acribia rigorosa, e, portanto, maravilhosa, toda a Arte, ao ser a criação, é expressão e unção duma surrealidade – e daí que pra Cinatti, nós não somos deste mundo. Quero eu dizer: ao vulgo do statu quo, do cousismo e do ramerraneiro opõe-se o surreal do clérigo ou o clerc, ou melhor, que ao anarquismo, descabelado, dum Guerra Junqueiro, Leonardo Coimbra, e do melhor Sampaio Bruno, há que aliar, ele há que ligar, o Milenarismo, ou Messianismo, dos Amigos do abaissé, duma fértil e feraz Cultura Portuguesa: e não vês, candente aqui, e não vês, tu, prometaico, o telético, ou telhados, da vizinha Lisboa?
Pois seja ledo o meu lente, e não se altere o ledor: para o fautor e Autor do Surrealismo, O Pensamento Poético é para mim o único com valor porque é o único interessado na Realidade que se nos apresenta num todo e não parcelada; e Poético Pensamento, ele é, para o lisboês, o que era, a Ontologia, para o facundo Estagirita: se a Realidade absoluta toma aqui o nome de Surrealidade, a Idade de Ouro Futura não é mais do que a Ressurreição Poética de Todos os Homens!, é para a selecta, e para a colheita, um novo Pentecostes, e aqui nós sideramos, e aqui revisitamos a nossa juventa. Pois indo ao fundo, ao fundamento e ao fundamental, falar da escola portuguesa, ou surpresa, do Surrealismo, é falar, sem dolo, do poético escol de Agostinho Maldonado, da Portugalidade do Poeta João Belo: com eles, no mirante, a admiração é o pasmo e o pasmo é assombro. A expressar e a prensar. A prender, e a exprimir, a ex-centricidade do Ser. Que a famosíssima frase de Rimbaud (o Eu é um Outro), ajusta-se, creio eu, à fenomenologia da Psique: “o Inconsciente”, para Lacan, é o discurso do Outro. E adrede, outrossim, ele há que assertar: o Inconsciente, pessoal, ele se alteia ou se alarga pela expressão, proposição, de Inconsciente Colectivo. E aqui não há negá-lo, Amigo ledor: a escrita automática, o sonho, e as Ciências Ocultas, desempenham, em Lisboa, o seguinte papel: eles são meios de alargamento, e multiplicação, do campo cognitivo, eles dilatam, prolongam, a personalidade. Não era isso que acontecia, sobremaneira, com Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes? Que em França, o Autor primevo, ou primordial, a utilizar a expressão de “escrita automática” foi Pierre Janet, o Autor e promotor de O Automatismo Psicológico – e está, essa tese, em perfeita sintonia com William James, o americano, o Filósofo Pragmatista. Façamos coro, nós, ora, com o feraz André Breton: a Histeria, por a chamada de Charcot, foi a grande alêtheia, foi a maior fulgurância do século XIX. Não aventado tinha já, o Pai da Psicanálise, que a Histeria não é mais que a deformação de uma Obra de Arte? Uma Obra de Arte, por isso mesmo, em caricatura, a loucura aliada à poética Lira.
E é que lê, o intelecto, no arteiro interior. Pois vem a cita, aqui, a talhe de foice: para Elisabeth Roudinesco e o grande Michel Plon, André Breton era psiquiatra de formação e médico interno de Joseph Babinski: isto o verídico, isto o real e esta a verdade. Que em todo o polícia, insiste, como duplo, o pelotiqueiro, em todo o psiquiatra existe, latente, um saltimbanco; se o Sol é monárquico, a Lua é acrata. E se o amente resiste nos iatras da Psique, então segundo o Lisboa, a vida SURREAL, entenda-se, não é mais do que a mesma e única Realidade transfigurada pela Magia, pelo Desejo, pela Vontade, pelo Amor, pela Liberdade, pelo conhecimento sábio, pela POESIA! Nesta premente e urgente Poetosophia, subsistem, pois existem, três palavras-chave: a Magia, o Amor e a Liberdade, a Liberdade, aremos ora, até ao Libertarismo. A Magia, o Magnetismo, a Ciência da Psique até ao Liber Pater. Se a crítica é a forma da nossa permanência, nós não não somos assim contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria, o conhecimento estabelecido (religioso, filosófico, científico) mas que na e pela Liberdade, Amor e Conhecimento que lhes preside preferimos estes. Não se trata, aqui, de arrasar a cidade, trata-se, em Lisboa, de INVENTAR O MUNDO! À guisa, na quermesse, de Hermes, o três vezes Grande, à guisa de Heraclito, à guisa, outrossim, do médico Paracelso. Paracelso, o grado Mago, o Metacientista, Paracelso, o excelso e sonhador especializado; o Poeta liberto, O POETA DOS ASTROS, digamo-lo agora.
Pois pende e tende, o movimento Surrealista, a ultrapassar o divórcio, divórcio deprimente, entre o sonho e o real. Que haurimos e fruímos, em António Maria Lisboa, um novo paradigma civilizacional. Que a Surrealidade, ela é, alfim, a vida verdadeira, a vera vida da qual nós éramos à parte. A Beleza, como em Breton, é convulsiva – e é votiva, e oblativa, a lição de João Belo. Se a escritura é automática, é mister, o fantástico, em estado de transe, é o êxtase e estado ministerial. Que é expedito e é explícito, o nosso lisboês: No Amor tudo se passa em bases Ilícitas e Pecaminosas que é a única coisa LÍCITA e PURA que nós temos. E aventamos, na verve: face à multiplicação, dilatação, da humana persona, não deveríamos, em vez de inconsciente, falar e parlar do Supra-Consciente? O que está, dessarte, em baixo, como o está também no Alto. Que ao ser radical, vive o Poeta no célico Céu, vive o Surrealista em estado de Graça. O que é, de facto e feito, o Surreal-Abjeccionismo? Ao ser verbal dissociação, ele é, também, desinfecção moral, ele é sangria, é purga, ele é Bertha Pappenheim. E pedimos aqui sonata. E pedimos aqui silêncio. E pedimos, nós, agora, o re-velar, ocultação, do movimento Supra-Real.
Que a práxis freudiana da associação livre, o acaso objectivo e a Língua das Aves nos conduziam, a nós todos da tertúlia de Agostinho Maldonado, a um feraz alargamento do campo cognitivo; por isso mesmo, cabulávamos, e os relatos de sonhos eram fonte Cabalina. Se a isso somarmos, na literacia, o cadáver esquisito e o amor por a letra, compreenderemos, nós con-viventes, que o Freud é linguista e que o Freud é letrado. Pois tal como o Lisboa, e como o Lautréamont, anelávamos, nós outros: a Poesia, tão pura, e feita por todos. Ou no escólio, aqui, do grande Herberto Helder: a Poesia, afinal, contra todos praticada, a revolta do in-verso assumida até às fezes. Ou melhor, como em Pessoa e Kierkegaard, a loucura, da letra, assumida até à cura. E como acontecia no Poeta João Belo, tudo era Teatro, tudo era magnete, e mágico-simbólico – e tu não sentes, ó ledor, que a platónica mania era afinal a mancia???
Pois qual herança e aliança do Inconsciente Colectivo, o supra-real é do homem livre, do homem liberto e portanto apaixonado: esse o desatino e eis o destino. Por isso nós lemos, n’ A Afixação Proibida: Aqui já ninguém busca um séquito, QUER-SE COMPANHIA! Quer-se o Caminho lento e incendiário do Amor – e não aventava, António Maria Lisboa, o advento e a vinda dos Novos Amorosos? Em nosso Laboratório Mágico, que funcionava e imanizava, nos anos oitenta, na velha e vetusta Avenida de Roma, era a mancia, ou era a Poesia, feita, verbalmente, por todos – e era o Pão, da campanha, partido em pequeninos. Divisava-se, aqui, a Poesia, qual autêntico Pão da Vida. Na preclara poiesis, purificavam-se, em nós, as portas da percepção – e o banquete iniciático se dava, não raro, no Café da ‘Sul-América’. Tudo em crítica acribia. Tudo à volta, e ao derredor, da tertúlia, figadal, de Agostinho Maldonado. Tal como em Lisboa, Herberto Helder, e acima de tudo no Eliphas Levi, ponderosa e poderosa era, para nós, a Cabala cantante. Era a “Themura”, afinal, no Temor e Tremor; era notária, em Boa Nova, a “Notarikon” nodal; “Guematria” era a Gramática e também o Grimório – e tudo alado e alteado, e tudo aflante, e falante, em Alquimia do Verbo.



Pois lavorando as lavaredas, a Metaciência do nosso Lisboa é qual projecto iniciático, é tentativa de adunar, e unir, a nossa Poesia, às Ciências do Culto e Ciências Ocultas: e tu não sentes, aqui, a veraz Poesia Oculta? Por sua Epistolografia, ou Teoria, inferimos, outrossim: a Cabala, o Espiritismo e o Tarot são, pra Lisboa, qual sabor e o saber. Aduzimos, portanto, e eduzimos: praticamos, nós outros, a Metaciência, desde os anos oitenta do século XX – e eu privava, provençal, com a Letra litoral de Luiz Pacheco leve, e em juventa me juntei às hostes literárias de Fernando Grade, Alexandre O’ Neill e António Barahona. Este último, quanto a nós, criticá-lo-emos, em acribia, seguindo e segundo o pensamento, e o comento, do meu fértil, do fecundo, e do feraz Criacionismo. Enquanto isso, nós aguardamos, em Cesariny, a laboração, circulação, das metas e dos Mitos, ou melhor, o emergir e o surdir do Surreal maravilhoso. Não será, por isso mesmo, que nós poremos, a meia haste, a bandeira e emblema da imaginação. E também da comunhão? A resposta, e a respiga, a daremos, alfim: já está pronto o primaz, já está pronta a Primavera para o próximo jardim do século XXI.


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Texto originalmente publicado em A ideia - Revista de cultura libertária – II série – vol. 16 – n.º 71-72 – Outono de 2013, aqui reproduzido graças à autorização de seu diretor, António Cândido Franco. Página ilustrada com obras de Nelson de Paula (Brasil).



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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Nelson de Paula
Agradecimentos a António Cândido Franco, Maria Estela Guedes, Carlos Felipe Moisés e Nicolau Saião
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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