sábado, 21 de maio de 2016

ANA MARQUES GASTÃO | Armando Silva Carvalho: o texto não faz nem refaz o mundo


Este é um livro “olhando com Fiama”, mas não só. Parte da literatura para a vida. Dir-se-ia um poliedro onde cabem as respirações do viver e da natureza, do desejo e do desencontro, os afectos, da família também, do envelhecimento e da morte, de certo apaziguamento metafísico. Obra vigilante no uso da linguagem que escuta e para isso deita fora o lamento, vivendo das coisas poucas na certeza de que tudo declina nas águas da memória. Armando Silva Carvalho (n. 1938), é poeta, ficcionista, tradutor. Revelado em 1965 com Lírica Consumível (Revelação APE), publicou livros como Armas Brancas (1977), Técnicas de Engate (1979), Sentimento de um Acidental (1981), Alexandre Bissexto (1983), Canis Dei (1995), Prémio Pen Clube ex-aequoObra Poética (1998) e Lisboas (2000), Prémio Luís Miguel Nava. Em prosa, romance ou conto, escreveu, entre outros, Em Nome da Mãe (1994)O Homem que sabia a mar (2001), Prémio Fernando Namora, e Elena e as Mãos dos Homens (2004). [AMG]

AMG – O poema inaugural de “Sol a Sol” define a ternura e a admiração entre dois grandes poetas: Fiama Hasse Pais Brandão e Armando Silva Carvalho. O “ser-se criança um do outro” na amizade transformou-se em matéria de um livro, matéria simples, porque límpida, cristalina no uso da linguagem, mas densa no conteúdo. Esta obra não é, no entanto, uma escrita a quatro mãos?

ASC – Não somos pianistas, nem eu nem a Fiama. Isto no sentido da exibição em público, do concerto programado. Eu tinha à minha frente uma pauta, a escrita da Fiama, com os seus dizeres, que partiam duma poética filosófica e desembocavam no mais primitivo franciscanismo. O caso decrianças um do outro, com toda a carga de ternura que encerra, não vai muito além do literário. Convivi com a Fiama em tempos já antigos, faculdades, política. Depois fomos envelhecendo: ela no seu quadro clínico que os deuses não resolvem, eu com todas as paredes da razão a darem-me música de câmara. A última vez que a vi ela já não me viu.

AMG – Duas crianças a caminho da escrita, jogando às escondidas, duas “bocas escassas”, duas falas, a de Fiama pensante, a de Armando Silva Carvalho puxada pela nora, pelo “animal do sexo. Um encontro em livro para falar do mundo?

ASC – Os encontros nos livros são os melhores encontros. Não azedam o diálogo, as falas não se atropelam. Trouxe para dentro dos textos duas infâncias opostas. A minha vinha do campo: do sol a sol dos jornaleiros, da rude relação com a subsistência, do sexo à pressa entre matas e moitas. A da Fiama, julgo eu, foi mais de êxtase, num jardim perto do mar, com a descoberta da vida após a leitura dos mitos.

AMG – Um encontro que poderia não ter acontecido, ambos “discípulos de um deus embriagado”?

ASC – Se nos tivéssemos visto em crianças, tenho a certeza que não daríamos um pelo outro. Estas crianças de agora e no texto, são liberdades dum terreno poético onde todos nós gostaríamos de jogar, a fazer de conta. E o deus embriagado é o deus dos versos, um pouco irresponsável e muito presumido a interpretar o mundo.

AMG – E onde fica a humanidade do relacionamento entre amigos/poetas, que está com certeza na sua memória? O atropelo é vida, não literatura…

ASC – As relações na vida não são as relações na escrita. Quando você escreve uma carta de amor, como poeta que é, está já a trair a relação humana, pois a escrita é totalitária e só reflecte o que mais de si quer expor e esconder em termos literários. Assim o outro, o amigo, não é atropelado no texto nem o próprio autor, e aquilo a que chama humanidade no relacionamento pode ter até, mesmo na traição, uma dignidade que supera os acasos de humor do amor e da amizade ao vivo.

AMG – Jogo de encaixe, de vozes, aberto a diversos registos poéticos, à intertextualidade, à citação (não só Fiama passa por este livro), “Sol a Sol” é uma obra da exaltação do mínimo. O vasto mundo capta-se nas coisas poucas. Assim se lima a vida?

ASC – Ninguém lima vida, a vida é que nos lima, nos lixa, desculpe lá a grossura do verbo. Mundo vasto mundo, já disse o outro que não se chamava Raimundo. Sabe, as rimas são o meu fraco, e também a facilidade nas aliterações. Se não me tivessem mandado estudar, provavelmente devia ter ficado poeta popular, de rima certa, e redondilha a saltar da ponta do lápis. A exaltação do mínimo em termos de polifonia foi um arrojo meu que os poemas podem suportar. Cantar com a voz dos outros misturada, faz com que no sintamos menos sós, e faz com que a nossa mesquinhez se disfarce sobre a capa das irmandades electivas. E Fiama é uma criatura poética que merece ser exaltada, no mínimo como no máximo.

AMG – AMG – O livro, na sua heterogeneidade, incorpora as respirações do viver, da natureza. Faz corpo com o mundo, não o “mundo quedo” de Fiama, mas o que se paga com o corpo no abismo de uma imagem de amor. Nunca alcançamos?

ASC – Há gente que gosta de alcançar, seja a hipotética perfeição, seja o consenso do mundo, que no fundo é uma forma de fama. Eu apenas pretendo pagar o que julgo ter-me sido concedido como um direito. Direito ao amor, ou melhor, à imagem do amor. Direito ao pensar e ao sentir o mundo em que vivemos. Se acaso isso for interpretado como um caminhar ao lado ou dentro do mundo, eu ficarei bem com a minha consciência. Tudo isso tem um preço enorme, é claro. E as palavras deste livro estão aí para quem queira lê-las naturalmente. A exposição pública só se salva se for a tentativa dum equilíbrio instável junto daquilo a que chama o abismo.

AMG – Em vários momentos do livro, fala-se do amor como construção, imaginação. Vêem-se os seres vivos desaparecer da superfície do texto, porque se transformam em escrita. Escrita e vida fundem-se como?

ASC – Quero que fique bem definido que não embarco nada nessas teorias da transubstanciação do texto com que alguma gente anda por aí a incensar certas escritas de forma obstinada e religiosa. O texto não faz nem refaz o mundo. Quando muito pode fazer surgir um mundo de fulgor que, obviamente, nunca vai além do texto que o segrega. A vida é a vida, a palavra é palavra. A fusão da vida pela palavra é uma forma indirecta de viver, e até pode ser que seja mais rica de sensações. Não é por meio do mais fascinante tecido poético que o texto se faz mundo em totalidade majestática e intemporal. E não saindo do texto, do meu, se os seres desaparecem nele é porque já começaram a desaparecer duma forma de vida que não corresponde à minha noção de vida humana, em termos amorosos ou éticos. Tudo é menos e tudo é mais daquilo que é, escreveu Paul Celan.

AMG – Esta selecção de poemas também é “pensativa”, na medida em que reflecte sobre grandes temas da literatura, como o amor, o envelhecimento ou a morte. Concorda?

ASC – Quando se bate no poeta porque ele pensa, e muita gente neste país gosta da lírica do derrame ou da paisagem interior ensopada em lágrimas refinadíssimas, é preciso ter os flancos protegidos e para isso nada melhor que ter um pouco de “cabeça” nos lugares mais sensíveis do texto. Ora os grandes temas da literatura sempre foram, em primeiro e último lugar, a vida travestida dos sujeitos que a produzem. Vladimir Nabokov, um senhor que de modesto tinha pouco, dizia que tinha à sua volta, sobre ele, dentro dele, as ferramentas da sua escrita, com um brilho tão acerado como os instrumentos enfiados nos bolsos e nas dobras dum fato-macaco magnificamente rebuscado dum mecânico.

AMG – Nada que não condiga com a sua escrita/vida…

ASC – Sim, claro, com a idade que tenho, com a vida que levo e vejo os outros levarem à minha volta, a frase a cheirar a operário na boca do aristocrata homem das borboletas, é uma boa resposta para os temas do envelhecimento, meu e do mundo, do meu mundo. Como dizem os nossos políticos, deixem-me trabalhar com as minhas ferramentas nos grandes e pequenos temas da literatura através da vida que melhor conheço, a minha.

AMG – Em “Sol a Sol” acolhem-se os dias vividos no desencontro, no declínio, sente-se o desfolhar da memória. Caminha-se como no escuro?

ASC – Mal de nós se o sol não surgisse em plena noite. Mesmo quando se tem o amor todo para devastar, e o tempo é ainda um conceito que não se liga aos dias e muito menos ao corpo.

AMG – Impõe-se, em “Sol a Sol” uma liquidez espiritual, a da “oração à planta mais humilde”?

ASC – Eu quando digo natureza não penso nas litografias românticas dos poentes, nem sequer nos programas lúdicos da Discovery. Penso na consciência humana e no seu habitat. Penso nos botânicos, nos zoólogos e noutras criaturas que estudam o planeta e a vida nele, já que Deus parece apostado em levar por diante um qualquer apocalipse tecnológico. Ao falar religiosamente das plantas estou a admirar aquele viver num silêncio infatigável, sem a agressividade pela sobrevivência dos outros seres.

AMG – Que relação estabelece entre “Canis dei” e “Sol a Sol”, na perspectiva de uma metafísica? No primeiro respirava-se a música de deus no ar da peste, no segundo a matéria de deus deita-se a seu lado no lençol? Necessidade da tal “noite calma”?

ASC – Considero a ideia de Deus uma aquisição pessoal assumida em Canis Dei. Neste meu último livro tento ir mais longe e seguir as margens duma sensibilidade mais apaziguada por certas visões ou percepções, no meio das catedrais tecnológicas do massacre. Mas a calma da noite será sempre uma aparência mística.

AMG – No fundo, há sempre, em toda a sua obra poética, a busca de um lar…

ASC – O lar seria evidentemente uma natureza melhor assumida e que nos levasse à lei da família dos afectos, dos clãs, dos ciclos do ser.

AMG – Espreita, embora muito discretamente, a sua dimensão ético-política neste livro. A escrita, a sua, não poderá deixar de passar por aí?

ASC – Quando escrevo não deixo de ser um cidadão da vida. E não gosto muito de ouvir os que afirmam o contrário ou assumem uma posição de indiferença absoluta ou até desprezo pelos movimentos do corpo cívico, o que não tem nada a ver com arregimentações partidárias. A literatura, se quiser continuar, não pode ficar parada e pasmada na palavra pela palavra, nem cair nas mãos do negócio.

AMG – Este é o livro de um poeta experiente que consegue encontrar na escrita aquilo que Kant chama prazer desinteressado?

ASC – Os prazeres desinteressados só devem existir na cabeça do filósofo.
Ao escrever este livro, a minha experiência repetiu-me o mesmo estado de dúvida perante o texto e também certos tiques hedonistas sempre que limpo as palavras depois dum banho mais ou menos revelador. Como na câmara escura, é preciso ter os olhos habituados aos trabalhos de parto.

AMG – O epíteto de sarcástico tem ocultado a sua mais relevante característica, o lirismo, lirismo crítico como já lhe chamei. Que é, afinal, o canto lírico para si?

ASC – Fiquemo-nos pela sua definição que aceito com agrado. Mas ocorrem-me ainda palavras como vigilância, pudor, uma certa visão do comum da terra, algumas noções de justiça, dignidade, e por que não de fraternidade. Para mim, o canto lírico é aquele cuja fragilidade subjectiva se sustenta também da respiração dos outros, numa terra pouco a pouco irrespirável.



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Ana Marques Gastão (Portugal, 1962). Poeta, crítica literária e redatora cultural do Diário de Notícias, de Lisboa. Autora de livros como Terra sem mãe (2000), A definição da noite (2003) e Nós/Nudos (2004). Agulha Revista de Cultura # 46, Julho de 2005.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Alberto da Veiga Guignard
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA

Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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