Este é um livro “olhando com Fiama”, mas não só.
Parte da literatura para a vida. Dir-se-ia um poliedro onde cabem as
respirações do viver e da natureza, do desejo e do desencontro, os afectos, da
família também, do envelhecimento e da morte, de certo apaziguamento
metafísico. Obra vigilante no uso da linguagem que escuta e para isso deita
fora o lamento, vivendo das coisas poucas na certeza de que tudo declina nas
águas da memória. Armando Silva Carvalho (n. 1938), é poeta, ficcionista,
tradutor. Revelado em 1965 com Lírica Consumível (Revelação
APE), publicou livros como Armas Brancas (1977), Técnicas de
Engate (1979), Sentimento de um Acidental (1981), Alexandre
Bissexto (1983), Canis Dei (1995), Prémio Pen
Clube ex-aequo, Obra Poética (1998) e
Lisboas (2000), Prémio Luís Miguel Nava. Em prosa, romance ou conto,
escreveu, entre outros, Em Nome da Mãe (1994), O
Homem que sabia a mar (2001), Prémio Fernando Namora, e Elena
e as Mãos dos Homens (2004). [AMG]
AMG – O poema inaugural de “Sol a Sol” define a ternura e a admiração
entre dois grandes poetas: Fiama Hasse Pais Brandão e Armando Silva Carvalho. O
“ser-se criança um do outro” na amizade transformou-se em matéria de um livro,
matéria simples, porque límpida, cristalina no uso da linguagem, mas densa no
conteúdo. Esta obra não é, no entanto, uma escrita a quatro mãos?
ASC – Não somos pianistas, nem eu nem a Fiama. Isto no sentido da
exibição em público, do concerto programado. Eu tinha à minha frente uma pauta,
a escrita da Fiama, com os seus dizeres, que partiam duma poética filosófica e
desembocavam no mais primitivo franciscanismo. O caso decrianças um do outro,
com toda a carga de ternura que encerra, não vai muito além do literário.
Convivi com a Fiama em tempos já antigos, faculdades, política. Depois fomos
envelhecendo: ela no seu quadro clínico que os deuses não resolvem, eu com
todas as paredes da razão a darem-me música de câmara. A última vez que a vi
ela já não me viu.
AMG – Duas crianças a caminho da escrita, jogando às escondidas, duas
“bocas escassas”, duas falas, a de Fiama pensante, a de Armando Silva Carvalho
puxada pela nora, pelo “animal do sexo. Um encontro em livro para falar do
mundo?
ASC – Os encontros nos livros são os melhores encontros. Não azedam o
diálogo, as falas não se atropelam. Trouxe para dentro dos textos duas
infâncias opostas. A minha vinha do campo: do sol a sol dos jornaleiros, da
rude relação com a subsistência, do sexo à pressa entre matas e moitas. A da
Fiama, julgo eu, foi mais de êxtase, num jardim perto do mar, com a descoberta
da vida após a leitura dos mitos.
AMG – Um encontro que poderia não ter acontecido, ambos “discípulos de
um deus embriagado”?
ASC – Se nos tivéssemos visto em crianças, tenho a certeza que não
daríamos um pelo outro. Estas crianças de agora e no texto, são liberdades dum
terreno poético onde todos nós gostaríamos de jogar, a fazer de conta. E o deus
embriagado é o deus dos versos, um pouco irresponsável e muito presumido a
interpretar o mundo.
AMG – E onde fica a humanidade do relacionamento entre amigos/poetas,
que está com certeza na sua memória? O atropelo é vida, não literatura…
ASC – As relações na vida não são as relações na escrita. Quando você
escreve uma carta de amor, como poeta que é, está já a trair a
relação humana, pois a escrita é totalitária e só reflecte o que mais de si
quer expor e esconder em termos literários. Assim o outro, o amigo, não é
atropelado no texto nem o próprio autor, e aquilo a que chama humanidade no relacionamento
pode ter até, mesmo na traição, uma dignidade que supera os acasos
de humor do amor e da amizade ao vivo.
AMG – Jogo de encaixe, de vozes, aberto a diversos registos poéticos, à
intertextualidade, à citação (não só Fiama passa por este livro), “Sol a Sol” é
uma obra da exaltação do mínimo. O vasto mundo capta-se nas coisas poucas.
Assim se lima a vida?
ASC – Ninguém lima vida, a vida é que nos lima, nos lixa, desculpe lá a
grossura do verbo. Mundo vasto mundo, já disse o outro que não se chamava
Raimundo. Sabe, as rimas são o meu fraco, e também a facilidade nas
aliterações. Se não me tivessem mandado estudar, provavelmente devia ter ficado
poeta popular, de rima certa, e redondilha a saltar da ponta do lápis. A
exaltação do mínimo em termos de polifonia foi um arrojo meu que os poemas
podem suportar. Cantar com a voz dos outros misturada, faz com que no sintamos
menos sós, e faz com que a nossa mesquinhez se disfarce sobre a capa das
irmandades electivas. E Fiama é uma criatura poética que merece ser exaltada,
no mínimo como no máximo.
AMG – AMG – O livro, na sua heterogeneidade, incorpora as respirações do
viver, da natureza. Faz corpo com o mundo, não o “mundo quedo” de Fiama, mas o
que se paga com o corpo no abismo de uma imagem de amor. Nunca alcançamos?
ASC – Há gente que gosta de alcançar, seja a hipotética perfeição, seja
o consenso do mundo, que no fundo é uma forma de fama. Eu apenas pretendo pagar
o que julgo ter-me sido concedido como um direito. Direito ao amor, ou melhor,
à imagem do amor. Direito ao pensar e ao sentir o mundo em que vivemos. Se
acaso isso for interpretado como um caminhar ao lado ou dentro do mundo, eu
ficarei bem com a minha consciência. Tudo isso tem um preço enorme, é claro. E
as palavras deste livro estão aí para quem queira lê-las naturalmente. A
exposição pública só se salva se for a tentativa dum equilíbrio instável junto
daquilo a que chama o abismo.
AMG – Em vários momentos do livro, fala-se do amor como construção,
imaginação. Vêem-se os seres vivos desaparecer da superfície do texto, porque
se transformam em escrita. Escrita e vida fundem-se como?
ASC – Quero que fique bem definido que não embarco nada nessas teorias
da transubstanciação do texto com que alguma gente anda por aí a incensar
certas escritas de forma obstinada e religiosa. O texto não faz nem refaz o
mundo. Quando muito pode fazer surgir um mundo de fulgor que, obviamente, nunca
vai além do texto que o segrega. A vida é a vida, a palavra é palavra. A fusão
da vida pela palavra é uma forma indirecta de viver, e até pode ser que seja
mais rica de sensações. Não é por meio do mais fascinante tecido poético que o
texto se faz mundo em totalidade majestática e intemporal. E não saindo do
texto, do meu, se os seres desaparecem nele é porque já começaram a desaparecer
duma forma de vida que não corresponde à minha noção de vida humana, em termos
amorosos ou éticos. Tudo é menos e tudo é mais daquilo que é, escreveu Paul
Celan.
AMG – Esta selecção de poemas também é “pensativa”, na medida em que
reflecte sobre grandes temas da literatura, como o amor, o envelhecimento ou a
morte. Concorda?
ASC – Quando se bate no poeta porque ele pensa, e muita gente neste país
gosta da lírica do derrame ou da paisagem interior ensopada em lágrimas
refinadíssimas, é preciso ter os flancos protegidos e para isso nada melhor que
ter um pouco de “cabeça” nos lugares mais sensíveis do texto. Ora os grandes
temas da literatura sempre foram, em primeiro e último lugar, a vida travestida
dos sujeitos que a produzem. Vladimir Nabokov, um senhor que de modesto tinha
pouco, dizia que tinha à sua volta, sobre ele, dentro dele, as ferramentas da
sua escrita, com um brilho tão acerado como os instrumentos enfiados nos bolsos
e nas dobras dum fato-macaco magnificamente rebuscado dum mecânico.
AMG – Nada que não condiga com a sua escrita/vida…
ASC – Sim, claro, com a idade que tenho, com a vida que levo e vejo os
outros levarem à minha volta, a frase a cheirar a operário na boca do
aristocrata homem das borboletas, é uma boa resposta para os temas do
envelhecimento, meu e do mundo, do meu mundo. Como dizem os nossos políticos,
deixem-me trabalhar com as minhas ferramentas nos grandes e pequenos temas da
literatura através da vida que melhor conheço, a minha.
AMG – Em “Sol a Sol” acolhem-se os dias vividos no desencontro, no
declínio, sente-se o desfolhar da memória. Caminha-se como no escuro?
ASC – Mal de nós se o sol não surgisse em plena noite. Mesmo quando se
tem o amor todo para devastar, e o tempo é ainda um conceito que não se liga
aos dias e muito menos ao corpo.
AMG – Impõe-se, em “Sol a Sol” uma liquidez espiritual, a da “oração à
planta mais humilde”?
ASC – Eu quando digo natureza não penso nas litografias românticas dos
poentes, nem sequer nos programas lúdicos da Discovery. Penso na consciência
humana e no seu habitat. Penso nos botânicos, nos zoólogos e noutras criaturas
que estudam o planeta e a vida nele, já que Deus parece apostado em levar por
diante um qualquer apocalipse tecnológico. Ao falar religiosamente das plantas
estou a admirar aquele viver num silêncio infatigável, sem a agressividade pela
sobrevivência dos outros seres.
AMG – Que relação estabelece entre “Canis dei” e “Sol a Sol”, na
perspectiva de uma metafísica? No primeiro respirava-se a música de deus no ar
da peste, no segundo a matéria de deus deita-se a seu lado no lençol?
Necessidade da tal “noite calma”?
ASC – Considero a ideia de Deus uma aquisição pessoal assumida em Canis
Dei. Neste meu último livro tento ir mais longe e seguir as margens duma
sensibilidade mais apaziguada por certas visões ou percepções, no meio das
catedrais tecnológicas do massacre. Mas a calma da noite será sempre uma
aparência mística.
AMG – No fundo, há sempre, em toda a sua obra poética, a busca de um
lar…
ASC – O lar seria evidentemente uma natureza melhor assumida e que nos
levasse à lei da família dos afectos, dos clãs, dos ciclos do ser.
AMG – Espreita, embora muito discretamente, a sua dimensão
ético-política neste livro. A escrita, a sua, não poderá deixar de passar por
aí?
ASC – Quando escrevo não deixo de ser um cidadão da vida. E não gosto
muito de ouvir os que afirmam o contrário ou assumem uma posição de indiferença
absoluta ou até desprezo pelos movimentos do corpo cívico, o que não tem nada a
ver com arregimentações partidárias. A literatura, se quiser continuar, não
pode ficar parada e pasmada na palavra pela palavra, nem cair nas mãos do
negócio.
AMG – Este é o livro de um poeta experiente que consegue encontrar na
escrita aquilo que Kant chama prazer desinteressado?
ASC – Os prazeres desinteressados só devem existir na cabeça do
filósofo.
Ao escrever este livro, a minha experiência repetiu-me o mesmo estado de
dúvida perante o texto e também certos tiques hedonistas sempre que limpo as
palavras depois dum banho mais ou menos revelador. Como na câmara escura, é
preciso ter os olhos habituados aos trabalhos de parto.
AMG – O epíteto de sarcástico tem ocultado a sua mais relevante
característica, o lirismo, lirismo crítico como já lhe chamei. Que é, afinal, o
canto lírico para si?
ASC – Fiquemo-nos pela sua definição que aceito com agrado. Mas
ocorrem-me ainda palavras como vigilância, pudor, uma certa visão do comum da
terra, algumas noções de justiça, dignidade, e por que não de fraternidade.
Para mim, o canto lírico é aquele cuja fragilidade subjectiva se sustenta
também da respiração dos outros, numa terra pouco a pouco irrespirável.
Ana Marques Gastão
(Portugal, 1962). Poeta, crítica literária e redatora cultural do Diário de Notícias, de Lisboa.
Autora de livros como Terra
sem mãe (2000), A definição da noite (2003) e Nós/Nudos (2004). Agulha Revista de Cultura # 46, Julho de 2005.
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Organização
a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista
convidado: Alberto
da Veiga Guignard
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta
edição integra o projeto de séries especiais da Agulha
Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO
3 O RIO DA MEMÓRIA
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial
de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de
Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua
espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas
de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a
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