Há uma sintomática impressão que há mais poetas do que leitores. Não
pelo fato dos poetas continuarem desempregados, sem importância para uma
sociedade que cultua outros valores, mas, e principalmente, porque os leitores
começam a desaparecer. Uma frase rebuscada, uma palavra que não se escute na
televisão e já não há mais leitores, por sua vez, a poesia navega numa longa
estiagem de pouca criatividade ou descoberta. Mas quem se preocupa com isso?
Quem se deteria a ler uma matéria sobre poesia se há os seios de Carla Perez e
da Xuxa para se pensar? É melhor se deleitar na ode dos simulacros do que na
aridez e tragédia dos poetas.
Talvez isso justifique que raros poetas não
permitam a completa extinção da espécie. Floriano Martins é um desses raros
escultores da palavra. Um poeta atento e ético, apegado desde cedo à leitura; a
uma descoberta do mundo pela formalidade e criação da linguagem. Em seu novo
livro Alma em chamas, uma obra que
levou dez anos para ser construída, Floriano revela o zelo com a linguagem,
comportamento típico de um diletante profissional.
A poesia não pode ser considerada sua morada,
pois o poeta vive de aventura, de caminhadas por mundos recônditos e íntimos. Alma em chamas revela uma aventura em
reconstruir a visceralidade da escrita poética, fugindo dos temas conjunturais
e penetrando em problemas da linguagem e do homem moderno.
E se você leitor conseguiu atravessar esses
íngremes parágrafos, dê chance a você mesmo, leia algo desinteressante como
poesia, como a entrevista que vem logo a seguir. Assim, quem sabe, a gente
passa a deixar de lado tanta coisa que interessa, mas que não tem a menor
importância. [EN]
EN Você teve desde cedo o contato com os livros e em seguida o distanciamento
da sua geração. Para o exercício do poeta é preciso esse isolamento do senso
comum?
FM Não sei se é necessário. Pode-se ter condições
benéficas ou não. Tudo depende muito de que circunstâncias vive a geração. Às
vezes, se tem a sorte de viver numa geração riquíssima e isso pode lhe trazer
muitos benefícios, mas também se tem verdadeiro empastelamentos, momentos de
transição, então não há muito o que oferecer. De qualquer forma as duas coisas
são importantes: o distanciamento teve uma importância pelo fato de ter
permitido ler muitos livros e a minha geração não tinha muito o que oferecer. A
minha geração é dos anos 70, no qual vivíamos toda aquela celeuma em torno da
geração mimeógrafo, que é na verdade um brutal retrocesso. Embora muitos
críticos tenham ressaltado aquilo como um ponto a mais, um momento de salto na
literatura, na verdade tudo ficou empastelado. Passados mais de vinte anos,
percebe-se que não ficou nada daquela geração. Sabe-se que alguns nomes
funcionam como falsos mitos, mas em termos de obra literária não há nada de
substancial originado por aquela geração.
EN No seu caso o distanciamento e a leitura demarcaram uma trajetória
importante para o aparecimento do Floriano poeta. É possível ter uma ideia de
que é feito a textura da poesia. Ou cada poeta tem sua forma, seus mistérios?
FM A poesia é tão diáfana, que talvez a sua
substância venha exatamente dessa
diafanidade, quase que invisível, ininteligível, intocável. Essa é a sua grande
substância. Mas é evidente que vem também de leituras, vem de diálogos com o
mundo, de experiências, mas nada que possa pensar como sendo uma coisa sobre a
outra.
EN No seu livro, Alma em chamas, qual a substância que o
constitui?
FM O Alma em
chamas reúne todo o desdobramento do fazer poético que aprendi durante
esses últimos anos. Evidentemente essa obra não está aí no sentido de encerrar
círculo ou ser testamento poético ou coisa do gênero. Nesse livro eu jogo todo
o manancial de experiências que colhi durante esses anos, daí o fato de ser um
livro não só extenso, mas complexo na sua tessitura. Apresenta-se como cinco
livros reunidos, mas pode ser lido como um poema único, dividido em cinco
capítulos e cada um abrangendo uma circunstância diferente. Mesmo porque, por
traz desses poemas existem sempre uma preocupação em recuperar a linguagem
poética no sentido de ligação com uma linguagem lírica e uma linguagem trágica,
o que, portanto, nos remete a uma recuperação da linguagem épica.
EN Quando você atesta que há complexidade inerente na tessitura desse
livro você está se referindo basicamente a que?
FM Me refiro àquelas duas coisas indissociáveis na
poesia: a forma e o conteúdo. Em “Alma em Chamas” há uma complexidade formal,
no sentido que o livro trabalha, em um mesmo capítulo, uma série de ousadias
formais. Na mesma composição de capítulo, você tem décimo, tercetos, sonetos,
prosa poética mesclada a diálogos; tem a presença de personagens; trechos
confessionais; trechos líricos; trechos de abordagens trágicas; trechos que
lembram peças de teatro. Aliado a isso, encontra-se também uma complexidade
conteudística, pois, não há nenhuma abordagem circunstancial sobre determinando
assunto e sim todo um encadeamento de situações que querem discutir a dimensão
humana.
EN O tempo ajudou na arquitetura dessa complexidade, afinal, foram dez
anos mexendo, aprimorando, o fazer poético para que surgisse o Alma em
chamas?
FM São acumulações de experiências, mas o livro não
é uma coletânea de textos soltos, escritos ao longo dos anos, como é, por
exemplo, a obra “Crisantempo”, do Haroldo de Campos. Na verdade foram poemas
pensados numa trajetória. Os três mais antigos foram publicados porque surgiram
circunstâncias editoriais que permitiram publicações em livretos individuais
[que são os três últimos trechos do livro], mas eles não foram pensados
isoladamente, para posteriormente constituir uma coletânea, uma miscelânea, que
depois de montada você pode desvelar uma poética. Pode-se perguntar: “por que
tanto tempo?” Foi o necessário para se chegar ao término dessa aventura
poética.
EN Você faz uma crítica veemente à poesia brasileira, chegando a afirmar
que desaprendemos a fazer poesia? Você se refere a uma época específica ou é
uma crítica generalizada?
FM Abranger a literatura como um todo seria
demasiado extenso. Um dia estava lendo uma resenha do jornalista Nilton Santos,
da Gazeta Mercantil, na qual ele comenta nove romances que tinham sido
publicados nos últimos meses. A razão de juntar todos os livros numa única
resenha, dizia o jornalista, é porque nenhum deles mereceria uma resenha
isolada. Existe tamanha fragilidade na tessitura do romance que se faz hoje no
Brasil que chega a preocupar os críticos e até jornalistas.
EN Há alguma explicação para a ausência de criação na linguagem poética?
FM A grosso modo, não nascem bons poetas a cada dia,
nós ficamos muito aflitos, principalmente num final de século que somos tomados
por novas formas de tecnologia. Nos afligimos diante da história como se
fôssemos uma parte isolada da história, quando somos um todo. A história é um
tecido único. Assim é natural que tenhamos períodos de baixa, afinal, não
surgiram poetas como Eliot, Pound, Pessoa, aos montes. Vivemos um período de
baixa e não se sabe por quanto tempo isso dura.
EN Nessa sociedade que vive sob a égide do sucesso, parece que o poeta
não está mais desempregado, como em outros períodos, mas em via de extinção?
FM Vendo a produção poética pelo ponto de vista da
necessidade, diria que o poeta vive um feliz ostracismo e nunca como uma
condenação. Evidentemente que a poesia é absolutamente desnecessária. Só não
sei até que ponto a necessidade pode ser situada como algo positivo e a
desnecessidade como um valor negativo. Acho que o básico da discussão é saber
até que ponto a necessidade é realmente o que interessa. O poeta terá sempre
que ser um arrimo de família, pela simples razão de que poeta, a partir da
descida em sua própria intimidade, sai estabelecendo elo de ligação com a
intimidade de toda a humanidade e é daí que ele pinça as coisas trágicas.
Enfim, as coisas que teriam que ser corrigidas. O poeta de volta da sua viagem
não traz nenhuma boa notícia, por isso nunca é bem recebido.
EN Falemos de sua aventura. De um criador que se define numa aventura
estoica, na qual a ambição é o reconhecimento de si mesmo. Qual o lugar do
leitor nessa aventura.
FM Cabe ao leitor encontrar um lugar no interior da
obra. Aqui voltamos àquela velha questão: a título de que e para quem se
escreve? Em função do leitor, da mídia, de uma circunstância editorial? O que
orienta essa escrita? Acredito que se escreve em função de duas coisas: da
vivência e da escrita.
EN Tem-se então que acrescentar aí um dado ético seguido de estético.
FM O poeta tem que ter um compromisso declarado com
a linguagem. O poeta não pode usar a poesia em benefício de uma outra situação.
Se você pegar qualquer escrita de um grande poeta, observa-se um diálogo com o
mundo, expressado e determinado a partir de uma linguagem, na qual pode-se
observar todas essas situações reunidas com muita coesão, sem preocupação de
natureza moralista, esteticista, as coisas funcionam como um todo.
*****
Entrevista gravada ao vivo. Originalmente publicada no Caderno 3, do Diário do Nordeste. Fortaleza, 21/11/1998.
Organização a cargo de Floriano Martins © 2016 ARC Edições
Artista convidado: Floriano Martins
Retrato do artista © 2014 Michael Pichardo
Agradecimentos a Márcio Simões
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries
especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:
1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC
FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO
3 O RIO DA
MEMÓRIA
A Agulha Revista de Cultura teve
em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio
Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011
restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha
Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012
retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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