Volodia
Teitelboim
Escrever sobre o chileno Vicente Huidobro
(1893-1948) será sempre um desafio, em parte pela singularidade radical de sua
obra, mas igualmente pela tentação de comentar-lhe a própria vida tão repleta
de polêmicos incidentes. As duas fatias não entrariam em choque não fossem
tumultuadas por pirotecnias de toda ordem, incluindo as modalidades do
preconceito e as provocações do poeta.
A primeira grandeza a
ser evitada são os caprichos superlativos de sua influência na poesia moderna,
não por inexistentes, mas sim por dedução do risco de diluição que acarretam.
Outra boa fonte que não se deve considerar diz respeito às celeumas ampliadas
no tocante às suas discordâncias mais entranháveis e consistentes, em especial
aquelas referentes aos surrealistas (não ao Surrealismo) e Pierre Reverdy,
assim como a seu conterrâneo Pablo Neruda.
O orgulho da vanguarda
poética na América Hispânica, aos olhos de uma academia enxovalhada,
contenta-se em alardear retoricamente as proezas de três nomes, situando ao
lado de Huidobro o argentino Jorge Luis Borges e o peruano César Vallejo.
Leitura que agrada mais à sanha de classificação do que faz jus à realidade
poética dos 19 países que compõem essa rede inclassificável que é o mapa da
cultura hispano-americana.
O tropel imaginativo de
Borges à altura do Ultraísmo não corresponderia à defesa estética que assina em
sua maturidade, de tal modo que não radica no verso a genialidade do argentino.
Por razões distintas, poderíamos aqui acender uma polêmica ao dizer que Borges,
unicamente no poema, perdeu — ou se desfez dele, canalizando-o em outra direção
— o fogo imagético inicial tanto quanto o brasileiro João Cabral de Melo Neto,
sem esquecermos que são poetas de distintas gerações. Já o caso de Vallejo diz
respeito a uma cesura estética ao buscar atender àquilo que Américo Ferrari
define como sua "visão do negativo, da falta, da carência". Nada
disto se passou com o chileno.
Há dois momentos de
destaque na poética de Huidobro, aquele do anúncio de uma vanguarda, a que ele
próprio batizou de Criacionismo — e
nisto difere, sem que a diferença concorra para enaltecer alguma grandeza
estética, em relação a Borges e Vallejo — e a surpreendente entrada em cena de
dois livros que se complementam na medida em que confirmam a singularidade de
uma das mais altas vozes poéticas da primeira metade do Século XX: Altazor e Temblor de cielo.
Altazor consagrou-se rapidamente pela vertigem intransigente de
suas imagens, pelo roteiro incontornável de sua viagem ⎼
espécie de lírica das vazantes do abismo ⎼, mas também pela
urgência de se criar um poema que fosse além das fronteiras do provincianismo e
apresentasse ao mundo um poeta hispano-americano cuja única pátria fosse a
poesia. Certamente não são os únicos méritos dessa fascinante épica da
linguagem, um livro que lido e relido, décadas a fio, não deixa de surpreender
um momento sequer, que se renova como o próprio conceito de ruptura.
Temblor de cielo é a esfera cintilante de outra ruptura.
Huidobro sabia que a estrutura de alguns cenários da criação poética carecia de
certa ousadia que melhor os definissem, e este livro é uma introspecção de Altazor na prosa poética. Não nos
esqueçamos que o chileno singularizou também três outras expressões: a novela,
o teatro e os manifestos de defesa estética. A latência admirável de sua
ruptura não foi fruto unicamente de uma dádiva ou mesmo de uma obsessão.
Ao chegar na Europa em
pleno reboliço da 1ª Guerra Mundial, Huidobro sabia exatamente a quem procurar,
e o encontro com Apollinaire não foi propriamente um gracejo do acaso.
Sentia-se destinado ao melhor banquete da época, e na condição de um dos chefs de seu cardápio de maravilhas. Em
um primeiro momento era um mestre de ousadas aproximações, seus livros iniciais
traziam em si já um prenúncio de que iria além do Cubismo ou Futurismo da
época.
Quando em 1921, funda
Huidobro em Madri sua própria revista, Creación,
a capital espanhola já conhecia este “meteoro fabuloso” — como a ele costumava
se referir Gerardo Diego —, em especial por sua presença, em 1916, em um dos
encontros literários semanais, sempre aos sábados, promovidos por Ramón Gómez
de la Serna no Café de Pombo. Creación,
que em Paris seguiria seu curso sob a denominação de Création, foi concebida como palco multilíngue de toda a vanguarda
e nela se encontravam poemas e ensaios escritos em cinco idiomas.
As amizades de Huidobro
constituíam um núcleo pouco maior do que seus desafetos. Por sua desconcertante
presença passava um extenso rol de personagens, em trajes de fascínio e
cumplicidade, porém também em vestes de inveja e decepção. Entre os amigos
sempre fiéis encontravam-se Juan Gris, Jacques Lipchitz, Hans Arp, Guillaume
Apollinaire, Tristan Tzara. As inimizades também eram expressivas.
Um exemplo de cada lado
da mesma moeda. Quando André Breton convoca o evento que ficou conhecido como
Congresso de Paris, em 1922, com a declarada intenção de “pôr fim à anarquia da
vanguarda”, Huidobro é informado da manobra de Breton para desacreditar Tzara,
graças aos desentendimentos entre ambos quando integravam sua comissão
organizadora. Uma declaração contra a realização do Congresso, sob a tutela do
poeta chileno, foi assinada por vários nomes, dentre eles Paul Éluard, Erik
Satie, Ribemont-Dessaignes e o próprio Tzara.
Antes, em 1918, quando
Huidobro passou a residir em Madri, o encontro com Igor Stravinski e Robert
Delaunay propiciara a criação de uma peça para a companhia de balé de Serguei
Diaghilev: Football. Definidos tema e
divisão de tarefas, cabendo a Huidobro assinar o libreto, este subitamente
abandona o projeto para estar presente ao casamento de sua irmã no Chile,
frustrando a todos.
Confundindo as duas
faces dessa intrigante moeda fez ninho na forma de uma encruzilhada o assunto
mal resolvido de Huidobro com Pierre Reverdy, cujas extremidades em tensão
revelam uma afeição mútua, inicialmente, e um sarcasmo igualmente recíproco
quando ambos disputam a patente do Criacionismo. Irresistível, como anunciei ao
início: o personagem Huidobro é tão fascinante e revelador de uma época quanto
sua própria poesia.
Bem identificado o
personagem, quais as origens do criador? Como nos melhores casos, a expressão
do gênio apaga as pistas de suas influências, em grande parte pela
incontestável contribuição que agrega à tradição, porém em muitos casos
respaldada pelo desconhecimento generalizado em relação ao passado. O século XX
foi pródigo em estabelecer uma voragem suicida entre tradição e vanguarda.
Perdeu sentido a ideia renascentista da soma e ganhou recurso extra a fantasia
da exclusão. Com isto a fertilidade das vanguardas acabou se resumindo a uma
fatalidade excludente.
A este fio invisível se
soma sua vertente visível, a dos caligramas
de Apollinaire (1880-1918). A fascinação por esse primórdio do poema visual no
Ocidente, no caso de Huidobro, vem de sua aproximação com Apollinaire, e não da
coincidência de datas da descoberta dos ideogramas japoneses pelo poeta
mexicano José Juan Tablada (1871-1945).
Por último, Pierre
Reverdy (1889-1960), não propriamente como uma influência, mas antes como uma
cumplicidade a fogo, espécie de ninho de centelhas confluentes — Reverdy: “a
imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer de uma comparação,
mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distantes.” / Huidobro: “O
poema deve ser uma realidade em si, não a cópia de uma realidade exterior.”
Em meio às pontes
mágicas com Rabelais, Apollinaire e Reverdy, confluentes em muitos aspectos,
Huidobro viu ganhar esplendor o Dadaísmo, seguido de um Surrealismo que poderia
adotá-lo pela alta voltagem de suas imagens poéticas. Jamais estaria de acordo,
e a razão ocupava um lugar central, posto que o autor de Poemas árticos (1918) entendia que os manifestos surrealistas
descartavam o domínio da vigília sobre a criação artística. A batalha campal no
tablado da criação punha em dúvida se o poeta necessita de uma referência
concreta ao dar vida a um poema. Nem Huidobro ou o Surrealismo situariam o
acaso como elemento radical na criação de um poema, por exemplo.
Huidobro é o primeiro
poeta não-surrealista a compreender que o princípio do Surrealismo não estava
na alienação de uma configuração estética, mas antes no absoluto desnudamento
da retórica. Neste sentido, até poderíamos dar lenha à fogueira daqueles que
eventualmente o situam como um surrealista. Afeição declarada, não era o caso
de uma adesão. Huidobro polarizou com a queimação da vanguarda no sentido de
uma percepção de detalhes que ele próprio conjugava como equívocos de cada
manifesto que surgia, em especial do Dadaísmo e do Surrealismo. Contudo, o que Huidobro acaba por defender é que a utilização de
métodos surrealistas não garante a qualidade de uma obra de arte.
Em meio ao burburinho das vanguardas, é inconfundível
sua voz, sua defesa poética: o poema propagador de metamorfoses, distribuidor
de uma complexa rede de metáforas, iluminado pela vertigem da criação. Huidobro
é o grande pai da metáfora na lírica hispano-americana. Ninguém antes ou como ele
ousou tanto na visceral fatura desses ninhos abissais da imagem. Multiplicou-se
em imagens que se desdobravam à exaustão, uma orgia de significados que a todo
instante mudavam de curso, em obsessiva busca de um sentido distinto, ou seja,
de uma imagem nova. Neste sentido, foi o mais lúdico e luminoso dos poetas,
sempre em goles de puro risco. Não esqueçamos suas palavras: “A primeira
condição do poeta é criar, a segunda criar e a terceira criar”
Em um livro sobre nosso
personagem, espécie de biografia indispensável, escrito por Volodia Teitelboim,
encontro um parágrafo, em sinal de irrestrita concordância, com que encerro
estas minhas notas de acesso:
Alguém disse que o homem nasce e morre com seu perfil. Este
está forjado por seu temperamento e sua história. Se a história de Huidobro
fosse conhecida se transformaria — é possível — na saga de um aventureiro do
espírito que tentou iluminar com sua poesia, com seus delírios e seus sonhos,
uma parte sensível da literatura latino-americana na primeira metade do século
XX.
*****
Floriano
Martins (Brasil, 1957). Fundou e dirige a Agulha Revista de Cultura, bem como o
selo editorial ARC Edições. Página ilustrada com obras de Franz von Stuck (Alemanha, 1863-1928), artista convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de
Cultura
Fase II | Número 17 |
Junho de 2016
editor geral | FLORIANO
MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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revisão de textos &
difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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