quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

KENICHI KANEKO | Agonias e bonanças, anotações autobiográficas


QUEM SOU EU? | É muito difícil falar sobre mim. Ninguém fala do verdadeiro Kaneko; se eu falo de Kaneko também não consigo dizer sobre mim. Pessoalmente, defendo um pouco o meu ego e meus pontos fracos. Um jornalista ou um crítico cria imagem de uma parte muito pouco conhecida de mim; os dois fazem uma fantasia da verdade. Eu teria tanto a falar de mim, mas nunca consegui. Para escrever a minha história, não adianta dizer quando nasci e como cresci, porque isso não me explica.
Quem sou eu? Precisaria da vida inteira para buscar uma resposta. Você se conhece? Acho que não. Conhece-se uma parte; às vezes artificial. Assim, não posso falar disso.
Por que eu sou pintor? Sou pintor porque tenho certo tipo de mecanismo que entra pela janela visual, que é o olho, passa por dentro de meu corpo - misturado com um pouco de inteligência, sentimento, filosofia e idealismo -; filtro e trago na ponta de lápis ou pincel e mostro como sou eu. Esse processo, normalmente, encontra uma falta de técnica para realizar aquilo que se sente, aquilo que se tem. É por isso que ninguém consegue dar essa resposta. Se responder, diz mentira.
Eu nasci no dia 30 de março de 1935, em Tetsuka, Yokohama, perto de Tóquio, mas não na área urbana, porque minha família é de agricultores. Minha aldeia tinha mais ou menos 150 pessoas que cultivavam arroz, todos com sobrenome Kaneko. Então, naquele lugar, naquela aldeia com mais ou menos 700 ou 800 anos, pode-se buscar um pouco de história: havia um parentesco entre todos, uma família Kaneko. Na minha infância, todo amigo, todo parente, todo titio, toda titia tinha certo tipo de liberdade para correr, subir, entrar em outra casa, comer a comida do outro. Cresci em um ambiente bem solto, livre, vida de campo mesmo. Cresci sentindo aquela água do rio em que nadei muito, entrei no mato, cacei pássaros e comi muita fruta silvestre.
Quando começou a Segunda Guerra Mundial, ninguém sabia o que significava guerra. Eu entrei no grupo escolar quando iniciou a Guerra. O país era uma festa. O ataque em Pearl Harbor, no Havaí, foi quase um acidente. Quando eu tinha nove anos, o Japão foi derrotado. Quase 90% das grandes cidades do Japão foram destruídas ou queimadas; eu vi a maior miséria quando terminou a Guerra. No fundo do meu olho, o fogo da guerra é a parte que mais marca minha vida.
Quando fechava os olhos, via fogo - não perto de minha casa, mas subindo um morro atrás dela. Subia o morro para ver a cidade incendiada, queimada. No mar, havia centenas de navios americanos, olhando para nós. No fundo, no fundo, não posso falar de medo, porque, criança, não tinha o entendimento do medo. Só tinha uma sensação dolorosa e muito pesada. Essa foi a minha infância.
Formado no colégio, logo procurei emprego. Entrei numa empresa de alta tecnologia e comecei a participar do primeiro projeto de televisão japonesa. Só que eu não tinha ânimo nenhum com esse trabalho, que, para mim, era enjoativo. Acho que eu tinha um sonho de viver como criança, aquela vida mais livre, com menos preocupação, brincando com a natureza.
No ginásio e no colégio, eu tinha facilidade de desenhar. Na escola japonesa, toda semana há a hora de desenho, hora de arte, e muitos não gostam desse momento, porque não têm facilidade para fazer, para produzir algumas coisas. Eu fazia desenhos para mais de 15 ou 20 amigos, entregando-os para que eles tirassem uma nota melhor.
Pensando bem, acho que eu tinha um tipo de dom para o desenho. Trabalhando em uma fábrica de eletrodomésticos, comecei a enjoar e percebi o que queria fazer. Tóquio ficava a 40 minutos de minha casa. Eu falava para meu pai que estava indo para a fábrica, mas não ia.
Depois, meu pai descobriu que eu cabulava a empresa e ficava fazendo arte. Ele não me deu bronca. Falou que a vida de artista não era fácil, que era difícil sobreviver dela, e que eu precisava ter convicção de que era isso que queria.
Falei que queria ser pintor. Comecei a estudar com um grande mestre japonês que me disse: “Kaneko, volte para sua casa e pergunte para o seu pai se até os seus 40 anos ele pode te sustentar, porque pintura não sustenta a vida de um homem. Então, até seus 40 anos, peça pensão para seu pai.”
De verdade, até meus 40 anos não consegui sobreviver só de arte. Até essa idade ninguém consegue ficar famoso como artista, para conseguir sobreviver. Para ser artista, tem que se ter capacidade de sobreviver. Então, aprendi a retratar pessoas; tenho certa facilidade nisso e consegui sobreviver com essa capacidade, retratando amigos, criando amizades. Mesmo que a obra não fosse vendida, essa parte sustentava minha vida. Por isso, tenho tido dois trabalhos na minha vida inteira: um é retratar (viajei para a Europa, levando um caderninho de desenho e lápis; com isso, consegui sobreviver dois ou três meses sem gastar dinheiro, porque as pessoas cuidavam da minha vida, porque eu dava desenhos para elas). Por isso, acho que mesmo agora meu trabalho de arte não precisa ser nem é só para vender, não é para só ganhar a vida.
Todo pintor sofrido me apaixona. Por exemplo, Rembrandt, naquele último autorretrato, muito sofrido. Acho beleza dentro desse sofrimento. Francisco Goya viu a guerra civil em frente à casa dele, aquele massacre de espanhol matando espanhol. Não sei porque Van Gogh usa cores tão vibrantes, mas no fundo tem um tipo de sinceridade sobre como enfrentar a coisa trágica da humanidade; ele não busca a beleza, busca vida e isso é um pouco diferente. Parece que eu tenho o mesmo sentimento deles.
Classifico o meu trabalho como kanekismo, porque não busco um estilo, uma escola ou um tema. Sou muitas vezes envolvido com o acontecimento do momento: como eu estou aqui, em 2011, não posso pensar como um artista que vivia em 1600 ou em 1800 e também não posso pensar no futuro da arte; aí sou realista.
O Brasil é maravilhoso, um país tropical, com clima gostoso, comida e bebida muito boas, mas para mim, que sou japonês, há um choque cultural. O que eu pensava que era certo, aqui, às vezes não cabe: é que o ponto de vista brasileiro nem sempre se encaixa com o ponto de vista de um japonês, como eu. O meu primeiro choque é cultural; outro, constante enquanto eu estou vivo, é o desastre humano - as guerras, matanças, assassinatos, crises, guerrilhas. Será que em nome da justiça pode-se matar pessoas? Então isso tudo é muito doloroso para a minha vida cotidiana. Às vezes eu quero fechar o ouvido e ficar sem olhar o mundo, mas eu escuto, eu enxergo. Assim, enquanto estou produzindo, pintando algumas coisas, não posso recusar a influência do momento.

CHEGADA E PERMANÊNCIA NO BRASIL | Cheguei ao Brasil em 1960, sonhando como estrangeiro, como se tivesse ido para Paris ou Nova Iorque, e, de repente, entrei numa antiga colônia, acho que abandonada, uma casa do século passado, quase em ruína. Fui para um lugar perto de Campinas, para plantar tomate. Em minha casa, no Japão, éramos agricultores, mas eu nunca trabalhei na terra, nunca puxei enxada.
No primeiro dia, fui limpando a área. Num saco de estopa, coloquei palha de milho para fazer uma cama. O lugar não tinha banheiro, não tinha banho, nada; para fazer xixi, tinha que sair da casa. À noite, no escuro, via estrelas; naquele tempo, no Brasil ainda se via muita estrela no céu...
Puxa vida! Acho que isso me libertou. Eu era aquele japonês muito preocupado. Fiquei mais livre, mais solto, pessoalmente.
Nos primeiros dois anos, claro que eu puxei enxada, cortei mato, desmatei e fiz queimada, como todo imigrante faz.
Depois desses dois anos, saí para São Paulo, com um rolo de desenhos feitos nesse período. Comecei a percorrer todas as galerias. No primeiro dia, vendi dois desenhos pelo valor de quase um salário que eu recebia na minha vida lá na roça.
Em 1963, mandei cinco quadros para a Bienal de São Paulo. Entrou tudo; vendeu tudo. Assustei-me; aquilo me sustentava.
Um dia, fui à casa de um colecionador. Na parede, havia muitos quadros. Ele colocou o meu em cima da lareira, ao lado de um Picasso. Assustei-me! Como é o Brasil, como é o Brasil... Acho que isso simboliza o brasileiro.
Os quadros viajam, viajam... e nem sei como fizeram essas viagens.
Minha pintura não é comercial, não tenho compromisso de decorar casas, mas alguém sempre comprava meus quadros.
No começo, vendia mais desenhos, do tamanho de uma folha de cartão ou cartolina. Toda semana vendia um ou dois. Só com desenho não podia sobreviver; então organizei uma exposição em São Paulo e outra no Rio de Janeiro, na Galeria Goeldi, nome daquele gravador famoso - a galeria era da filha dele. Na exposição também vendi alguns quadros.
Participei da sétima e da nona Bienal de São Paulo, além de salões no Paraná, em São Caetano, Belo Horizonte, Salão Paulista e... ganhava prêmios. Os prêmios eram, naquele tempo, de 300 cruzeiros.
De verdade, era uma vida de muita aventura, sem rumo, porque tinha que se viver um dia de cada vez.
Casei-me duas vezes e tive quatro filhos: Monica, Erika e Alberto, do primeiro casamento, com Chieko (falecida), e Maya, do segundo casamento, com Mariko. Meu filho é químico, uma das minhas filhas é farmacêutica e a outra trabalha com um movimento ecológico no Japão. A mais nova é estudante. Tenho seis netos.
Eu cresci num ambiente budista. Minha casa, no Japão, ficava junto de um templo antigo do século VII. Os monges de lá são todos meus amigos, mas eu sou cristão. Na minha vida, a regra vem do cristianismo; a sabedoria vem do budismo.
O budista parece ter uma maneira de viver menos chocante, mais harmoniosa com seus vizinhos e com os acontecimentos. O cristianismo tem um tipo de justiça que dá um eixo, um rumo, à minha vida. Culturalmente, eu sou um mestiço.
Muitos japoneses foram criados com educação europeia, na parte artística. A literatura francesa teve muita influência no Japão. Na época em que ia à escola primária, a base de educação era alemã.
Então, tenho certo tipo de pensamento alemão, que vem da música alemã, de sua literatura, além da poesia francesa, mais esse modernismo de depois de guerra, que é americano. A base de minha pintura é europeia, sobretudo italiana e francesa. Então, eu sou um mestiço. Por isso eu não sei falar sobre mim.
Eu cresci com muita dificuldade; não foi uma vida fácil. Mas acredito que sempre há uma saída, nada acontece sob total desespero. Sempre existe o dia seguinte. Os japoneses sempre falam: amanhã nasce o sol; passada a noite, amanhece com claridade. É isso o que a própria vida ensina; eu nunca fico desesperado, ainda que, dentro de mim, exista um sentimento amargo, pesado.

MEU INTERESSE É PELO ESPIRITUAL E PELO DESTINO DA HUMANIDADE | Eu acredito em algumas coisas em que ninguém acredita. Por isso, percebo que sou religioso também. Como sou artista, acho que hoje estou me identificando com um tipo de religião que busca algo, e esse algo eu não sei o que é, porque o artista sempre anda no meio da escuridão...
Eu me interesso mais pelo espiritual do que por uma técnica ou escola; interesso-me mais pelo traço, que transmite um tipo de emoção. Cada pontinho num quadro identifica alguma concentração de alma e isso, às vezes, pode-se chamar de espiritual.
Muitas pessoas se preocupam com o destino da humanidade, e eu, principalmente eu, sempre me preocupo com o destino da minha vida. Porque a minha vida significa o humano. Em 1999, viajei para a Europa - sul da França, região onde nasceu o profeta Nostradamus - e andei por toda a região em que ele viveu e onde também Van Gogh esteve. Onde Nostradamus nasceu, Van Gogh ficou hospedado - aquele hospital de loucos. Os dois são totalmente diferentes; às vezes têm algumas coisas semelhantes. Lá, andei atrás de Van Gogh, no seu rastro. Em cada ponto que ele desenhou ou pintou uma paisagem há alguma placa: “aqui Van Gogh pintou tal quadro”. Fui lá, sentei nos mesmos lugares, desenhei aquelas paisagens que ele retratou, e percebi que eu não sou Van Gogh; eu sou Kaneko.
Por que fui para a Europa? Porque queria ver, como o profeta Nostradamus escreveu, como o mundo ficaria no final do século, ou se iria terminar em junho de 1999. Cheguei lá em maio, esperando o fim do mundo. Desenhando, retratando paisagens, andando por ali, conversando com pessoas, esperei, esperei, esperei, e o mundo não acabou.
Materialmente o mundo não acabou, mas dentro de mim - e também no mundo - aconteceu alguma coisa diferente na entrada de 2000.
Depois dessa passagem de século, no mundo estão acontecendo muitas coisas que ninguém podia esperar. Então, deve ter acontecido algumas das coisas que o profeta falou e a gente não percebe. Por exemplo, o profeta escreveu que no fim do mundo, no Oriente Médio, cairia fogo do céu. Pintei um quadro que está no Museu dos Imigrantes de Registro: no céu, na escuridão, chegando a mim, pontos vermelhos, centenas de pontos vermelhos avançando. E esse, às vezes, é o meu fim do mundo de 1999.
Agora parece que estamos vivendo um tempo depois do fim do mundo.
Nós somos sobreviventes; às vezes, retrato o final do século. Picasso nasceu no final do século e começou a ficar famoso em 1910. Quase todo artista que marcou alguma coisa nasceu em final de século, viveu no começo de século.
Há dez anos, em Kobe, no sul do Japão, onde minha esposa Mariko nasceu, aconteceu um terremoto muito grande. E agora, no dia 11 de março de 2011, aconteceu outro grande terremoto, no norte do Japão. Só que esse terremoto trouxe um tsunami junto, e esse destruiu uma usina nuclear, que começou a soltar radioatividade. Nós japoneses estamos sofrendo com essa radiação atômica.
Quase 66 anos depois do ataque de Hiroshima e Nagasaki, o Japão está sofrendo mais uma vez com essa radioatividade atômica. Acho que a vida acompanha todas essas coisas. E eu não posso recusar a vida; só que eu não aceito tão facilmente essa vida. Claro que a guerra mata muita gente, mas a natureza também mata; a natureza também é violenta.
A natureza consola. O japonês acredita que conviver com ela é o maior consolo para a gente. Então, toda a energia que existe no mundo, humana ou natural, é um tipo de acontecimento que se tem de olhar com olho aberto.
Será que o homem fez alguma coisa má? Acho que não; cada pessoa vivia com toda vontade, com toda bondade, harmoniosamente, com amigos, com a sociedade, com teorias e filosofia. No entanto, o ser humano encontra uma energia maior, uma força maior, e, para enfrentar essa energia, ele também precisa ser enérgico, para não ficar derrubado, arrastado. Dentro de mim há um tipo de energia que defende essa energia, para contrariar aquela outra energia, para sobreviver dentro dessa grande violência. Dentro de nós também existe uma violência. Eu sou violento como artista.
Eu enxergo mais o Japão que os próprios japoneses que moram lá. Só que eu sou brasileiro, eu sou brasileiro... A origem do brasileiro não sei qual é, mas o brasileiro tem sua própria identidade. Esse clima, esse ambiente, essa sociedade, essa terra, essa comida criam outro tipo de Kaneko.
Eu vivi alguns anos no Rio de Janeiro e retratei toda a parte dolorosa, a vida dura do carioca, o dia a dia de Copacabana. Eu retratei mendigos, vendedores de rua, pessoas encontradas na praia, loucos e assassinos. Eu vi a parte negra do Rio de Janeiro.
Não sou como um turista que só vê a parte bonita, as maravilhas do Rio de Janeiro. Comecei a enxergar o Rio cotidiano. Fiz muitos desenhos naqueles anos e, como tinha dificuldade econômica, trabalhei muito com papel kraft, que é bem resistente, de cor escura, parecida com a da madeira.
Eu retratei muitos personagens cariocas, mas nada de carnaval, de vida gostosa, de mulher bonita; não retratei essa temática e, sim, aqueles que vivem no chão, no degrau mais baixo da sociedade.
Do apartamento em que morava, quando abria a janela, eu via a Rocinha, via a favela, a miséria de seus moradores: os contrastes. Procurava sentir e pensar como eles pensavam. E ainda hoje, toda manhã, quando acordo, penso: “O que aqueles moradores estariam pensando sobre nós?” Então, eu tenho dupla personalidade, dupla visão.

MINHA CARREIRA DE ATOR | O início da minha carreira como ator não tinha nada de agradável. Meu primeiro papel foi o de um contrabandista, um muambeiro. Toda a colônia, a sociedade japonesa ficou contra mim. Perguntavam-me: “Por que você não fez uma imagem mais bonita, por que você faz essa imagem negativa do japonês?” E continuavam: “Você está vendendo o Japão, o orgulho japonês, simplesmente por um cachezinho.”
Só que eu sempre tive claro o conceito de que sou um ator, e assim não apresento nada de mim. A história é daquele que escreveu e de quem dirigiu. Eu ofereci esse trabalho para a televisão e para o cinema.
Minha vida cênica teve certas mudanças dentro desses 30 anos. No começo, eram papéis de camponês, marginal, verdureiro, pasteleiro, feirante, pessoas de verdade, das classes mais simples da sociedade. Pouco a pouco, da década de 1990 para cá, passei a representar papéis de técnico, de engenheiro e de empresário. Numa novela da Globo, meu primeiro trabalho era o de um pasteleiro que fez pastéis, não vendeu nada e teve que comer todos eles. Em outro, em 1990, numa novela com a atriz Fernanda Montenegro, Zazá, eu fiz um empresário japonês.*
Os diretores e os escritores começaram a enxergar os japoneses um pouco melhor, entendendo mais a sociedade japonesa. Por outro lado, os japoneses, que, no começo, falavam mal, hoje em dia elogiam meu trabalho como ator.
No último ano, eu participei das filmagens de Corações sujos - uma tragédia do final da Segunda Grande Guerra. No Brasil, a sociedade japonesa dividiu-se em dois grupos, um que aceitou a derrota e outro que não a aceitou. O meu personagem tem uma paixão pelo Japão e cuida da bandeira japonesa como se fosse o tesouro da sua vida. Um policial chega em sua casa, rasga a bandeira e com ela limpa os sapatos. De repente, acontecia essa barbaridade. Eu estava fazendo cinema e tive aquele sentimento direto.

A MINHA VIDA É SEMPRE A DÚVIDA | Normalmente, quando se vê um japonês, pensa-se que é um comediante. Quando eu apareço na imagem, todo mundo começa a gargalhar. Só que, de verdade, eu sou muito complicado.
Por que se vive, para que viver?
Minha vida sempre foi para enfrentar a morte. Claro que todo mundo morre, mas eu, desde criança, senti a morte ficar perto de mim e sempre estou andando na beira da morte.
Por isso eu senti uma graça de vida. Enquanto eu estou vivo, digo para aqueles amigos de anos, quando a gente se encontra: “Alô, você ‘tá vivo?” E ele diz: “Estou respondendo”.
Então, vivo, a gente pode responder. E eu sempre tive uma dúvida:
“Por que desenho? Por que sou pintor? Por quê? Para que pintar? Para que serve minha pintura? Por que tem que ser assim? Não pode ser outra?”
A minha vida é sempre a dúvida. Sempre pergunto a mim mesmo:
“Por quê?”
Esse porquê às vezes traz alegria, às vezes traz devastação e derruba-me lá embaixo; entro no desespero. Uma coisa sem sentido.
Em japonês, existe a palavra “essoragotô” (bonita palavra). Nesse sentido, a pintura é mentira. Grande mentira. Eu também sinto meu quadro, minha obra como uma grande mentira. Porque nunca consigo mostrar o que estou sentindo, o que estou querendo falar. O que estou querendo mostrar para vocês é que a pintura é tão difícil de alcançar - tomar altura.
Minha carreira artística sempre foi marcada por essa dúvida. Porque eu sou uma coisa assim, uma pessoa muito insegura. Eu balanço muito. Às vezes fico do lado de lá, às vezes fico do lado de cá, às vezes vou lá embaixo, às vezes fico de cabeça erguida.
Às vezes eu esqueço meu eixo; fico fora de mim. Eu estou aqui. A pintura sempre mostra minha vida como a procura de equilíbrio. E se eu conseguir ficar totalmente equilibrado, acho que será a hora da morte. Acho que será quando eu não me mexer mais.
Enquanto viver, sempre terei dúvida, sempre terei angústia e sempre terei alegria.
Eu tenho formação budista, mas não sou. O budista fica lá sentado; é um pouco diferente. Também tenho formação cristã. Em muitas filosofias, pensamentos e jeito de ver o mundo, eu sou cristão. Eu adoro a Bíblia; sou muito estudioso dela. Decorei muitos versículos da Bíblia e, mesmo assim, meu caminho, minha vida, é a pintura. Não sei por quê.
Às vezes esse tipo de formação, de educação que a gente recebe no mundo, não é uma coisa cem por cento. Cem por cento acho que está dentro de nós, dentro de mim. Mas isso é difícil de a gente demonstrar, de explicar. Por isso, eu pinto.
Um quadro não dá para explicar. Muitas vezes as pessoas explicam quadros, o que significa cada forma, o que significa cada cor. Mas eu acho que a pintura nasce sem querer. E, sem perceber, o autor - o artista - entende-a, mas ela nasce sozinha. Às vezes no meio do papel uma manchinha conduz, chama para se fazer algum gesto.
Eu tenho formação acadêmica. Já fiz muitos retratos, paisagens, naturezas mortas. Um dia aconteceu algo assim: uma coisa irreal e invisível entrou em mim e eu comecei a copiar aquela imagem que estava dentro de mim. Assim, mesmo se estiver olhando para uma moça bonita, quando ela entra pela minha visão e sua imagem mergulha no meu corpo, eu começo a olhá-la de uma maneira pessoal - não sei como - de enxergar...
Por isso, eu não sou abstrato; não procuro forma. Eu não sou acadêmico porque eu não copio como uma fotografia copia. Eu sempre copio o que está dentro de mim e dentro da minha cabeça... Claro que nossa cabeça e, principalmente a minha, é cheia de minhoca.
Há duas espécies de minhocas: aquela que anda por aí e outra que fica dentro do pensamento humano. Na minha cabeça, a minhoca é aquela que está dentro da terra. Não dá para identificar, é uma coisa nojenta, mas a gente corre, anda atrás dela, e aí nasce um quadro.
Acho que todo artista tem certo estilo. Quando estou pintando, fazendo um trabalho, percebo que há influência de algumas escolas. Aí eu sinto um nojo da minha cabeça, da minha minhoca. Porque eu tenho tanta informação, tanta educação, tenho tantas influências, que não consigo sair delas.

RETRATOS | Eu desenho outras pessoas: amigos, idosos, jovens, crianças, nenéns. A vida é o momento; nunca se repete. Nunca há duas vezes a chance de se ver a mesma cara. Eu já perdi muitos amigos, muitos conhecidos, pessoas que eu adorava e respeitava. Naqueles momentos, eu não tinha papel e lápis e não retratei. Como o fotógrafo tem a sensação de tirar a foto de alguém, eu tenho a sensação de retratar com minha ponta de lápis e viajar. A ponta do lápis viaja na história que está no rosto. Então, meu traço é uma leitura, também, daquela pessoa, e fortalece meu trabalho abstrato, meu trabalho meio maluco e, parece brincadeira, eu meleco na tinta, mergulho na forma, mas esse tipo de alimento que eu estava recebendo de várias pessoas, e mesmo junto com minha cara com outra pessoa, eu respeito. A história de uma pessoa nunca se repete. Já perdi muitas pessoas que queria desenhar, mas morreram. Eu já fui a despedidas eternas de pessoas que não estavam desenhadas; não registrei aqueles momentos. Como eu sou pintor, tenho um tipo de obrigação de retratar cada pessoa, porque, mesmo que ela vá embora para outro mundo, seu retrato fica neste mundo. É um registro dela, registro do meu amor para com ela. Ainda que mal feito - já que às vezes eu desenho num papel de lenço, no restaurante -, pego aquele papel vagabundo, uma canetinha qualquer e desenho aquela pessoa.
No Japão, diz-se que se tem a chance de encontrar algo uma vez na vida. Então, se acho aquele momento muito importante, retrato. Mesmo minha pintura abstrata também é um tipo de retrato. Sou o mesmo quando retrato uma pessoa ou uma paisagem. Nisso, posso até ser um pouco acadêmico, de certo ponto de vista. Eu fico olhando pessoas, vendo paisagens; retrato aquilo e transformo num quadro.

MEU SONHO DE PINTOR | Meu sonho de pintor: uma tela branca com apenas um risco que já me identifique. Às vezes, no meio de um quadro, ponho uma mancha vermelha e nela se tem um coração. A arte é crua e eu queria passar aquela sensação do primeiro toque de meu pincel na tela. Se consigo passar essa sensação para o público, é uma felicidade total. É uma coisa impossível e também possível. Não sei por que a arte transmite; isso ninguém explica. E essa é a maravilha da arte.
Ainda bem que eu sou artista, mesmo que modesto, mas meu gesto, meu trabalho, transmite uma coisa. Esse é o segredo, a maravilha da arte. Todo artista tem essa sensação. A arte não pode mentir, nem ser escrava do mercado. Não se pode abanar o rabo para o colecionador. A arte não é simplesmente você, o que sente e fixa na tela; a arte transmite algumas coisas que nem o próprio artista sabe. É por isso que a arte de séculos continua viva, a transmitir emoção.



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KENICHI KANEKO (1935). Artista plástico e ator, nascido no Japão, porém naturalizado brasileiro. Artista convidado desta edição de ARC.


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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 22 | Dezembro de 2016
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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