sábado, 10 de junho de 2017

JOSÉ ANDERSON SANDES | Festa da mestiçagem


A Oitava Bienal Internacional do Livro do Ceará abordará o tema Aventura Cultural da Mestiçagem. No entanto, diante de sua vasta programação o evento será múltiplo. Múltiplo e repleto de sentidos. São setenta convidados estrangeiros e mais de 100 participantes do campo editorial brasileiro. Ao todo virão escritores de 23 países. Talvez, seja o maior número de convidados já reunidos numa Bienal no Ceará. O curador do evento, escritor Floriano Martins, afirma que a formatação da Bienal tem uma nova lógica. Sua configuração é “essencialmente cultural de defesa da produção, circulação, difusão do livro e estímulo geral à leitura”. Leia a seguir entrevista que o curador da Bienal, Floriano Martins, concedeu ao Caderno 3. [JAS]

JAS Como surgiu a ideia de fazer a bienal reunindo escritores de países de língua portuguesa e espanhola? O desconhecimento por parte do público de grande parte dos escritores não vai gerar certo estranhamento?

FM A ideia surgiu da necessidade de dar uma orientação mais consistente ao panorama cultural deste nosso tempo. O Brasil é o único país da América Ibérica que fala português. É injustificável, para dizer o mínimo, a nossa ausência em relação aos temas culturais que configuram esta comunidade ibero-americana. Eu defendo a urgência deste “estranhamento”, pois tê-lo adiado acarreta uma reserva crescente de prejuízos culturais. Tomaremos um imenso susto diante da saborosa diversidade cultural que encontraremos na Bienal, de tal forma que o “estranhamento” nos dirá o seguinte: mas como pudemos passar tanto tempo sem conhecer tudo isto? Como é possível? Esta é a minha convicção, que é também a de todos – no Ceará, no Brasil e nos demais países envolvidos – os que trabalham para que esta Bienal alcance um alto padrão de qualidade, visitação e reação de público e crítica.

JAS Como se desenvolverá este diálogo? A barreira da língua – já que teremos vários escritores de língua espanhola – não será um problema?

FM Eu tenho conversado frequentemente com todos os convidados e nenhum deles manifesta preocupação a este respeito. As mesas estão formadas mesclando autores nos dois idiomas e os mediadores são todos bilíngues. Sugeri a todos que conversassem entre si, para estabelecer um plano de diálogo para cada mesa. Além disto, o publico terá à sua disposição um sistema de tradução simultânea. Por último, temos a mais plena convicção de que este aparente obstáculo será vencido pelo sentido envolvente de integração cultural que define a Bienal em si.

JAS O que diferencia esta Bienal das anteriores? Por exemplo, a última reuniu escritores da Espanha e de Portugal, mas também brasileiros como Moacir Scliar e Nélida Piñon, entre muitos outros. Tivemos, também, uma Bienal sobre as Mil e Uma Noites. Mas sempre com escritores nacionais de renome tendo uma dimensão maior dentro do evento. Como se deu a escolha tanto de escritores brasileiros, quanto de estrangeiros, ou seja, qual foi o critério adotado?

FM Atendemos primeiramente à necessidade de se estabelecer um conceito que revelasse uma determinação da cultura e não do mercado. O passo seguinte seria dar a esse conceito uma configuração consistente em termos de abrangências de temas, particularidades que poderiam funcionar como traços de união entre alguns países e/ou entre gerações etc. Por último, buscar os nomes e não renomes, ou seja, saímos em busca do substantivo e não do adjetivo, o que não significa dizer que tenhamos rejeitado este ou aquele autor por se tratar de um nome “conhecido”.

JAS Todos os países da América Latina foram contemplados? E os da África e Europa de língua portuguesa e espanhola?

FM A representação não se dará em todos os casos com a presença física de escritores. Há alguns países que estarão presentes através de suas revistas ou através de vídeos. Ao todo virão escritores de 23 países, porém em termos de representação ficaram ausentes apenas uns poucos países, a exemplo de Honduras, El Salvador e Macau.

JAS Na sua concepção, quais os escritores, entre todos convidados, têm maior representatividade?

FM Há destaques em áreas distintas e complementares: a criação literária, a tradução, a edição, a pesquisa acadêmica, a gestão cultural. Cada um de nossos convidados está aqui na condição de altos representantes de suas áreas de atuação, de maneira que não haveria justiça ou eficácia em tal julgamento.

JAS Quase todos são desconhecidos dos brasileiros. As editoras brasileiras não têm interesse em publicar escritores da América Ibérica?!

FM Conhecemos muito bem o comportamento do mercado editorial brasileiro, cuja rejeição ao risco se enlaça com certa subserviência a cânones viciados, fazendo com que a oferta seja no mínimo oscilante em termos de qualidade e coerência editorial. Tem havido nos últimos anos editoras interessadas na publicação de autores de língua portuguesa, de Portugal e da África, porém isto graças a um convênio estabelecido pelo governo português que investe recursos na divulgação dessa literatura no Brasil. Eu sei de algumas editoras que começam a manifestar interesse na publicação de autores hispano-americanos. A minha expectativa é de que este cenário comece a tornar-se mais frequente e que descubramos maneiras de anularmos este indesculpável hiato existente entre essas literaturas.

JAS Foi criada para a Bienal a “Ilha dos Continentes”, um espaço que reunirá pequenos estandes de editoras que jamais teriam oportunidade de participar de bienais fora de seus países. Explique melhor este espaço.

FM Uma das grandes dificuldades das pequenas e médias editoras diz respeito ao muro invisível que separa nossos países: os altíssimos custos de traslado, impostos etc. Pensando nisso, tentamos minimizar este obstáculo cedendo estandes para editoras individuais ou representações de editoras em cada país envolvido com a Bienal. Também buscamos o apoio das embaixadas, solicitando a utilização de sua mala diplomática para o traslado dos livros. Estas foram tentativas que na prática permitiram a vinda de estandes de apenas 10 países, o que significa que persistiram alguns obstáculos e que o apoio diplomático é algo ainda não de todo factível em âmbito cultural. De qualquer forma, teremos aqui um espaço amplo e pioneiro envolvendo 24 estandes com uma variedade comovente de editores que se reuniram e virão ao Brasil representar seus países.

JAS Tanto a Bienal de São Paulo, quanto a do Rio se transformaram em grandes feiras de livros. os preço praticados geralmente são os mesmos das livrarias. Ou seja, o mercado editorial tem grande força nestes eventos. A Bienal Internacional do Livro do Ceará segue o mesmo padrão?

FM Não há como estabelecer regras para a marcação de preços. O mercado deve ser livre nesse sentido. Evidente que deveria falar mais alto o bom senso. No caso da Ilha dos Continentes nós sugerimos aos seus coordenadores que viessem com preços bem abaixo do mercado, o que certamente provocará um valioso confronto. O que tratamos de fazer é com que a Bienal Internacional do Livro do Ceará não se restrinja unicamente à área de vendas, dando-lhe uma configuração essencialmente cultural de defesa da produção, circulação, difusão do livro e estímulo geral à leitura em todo o Ceará.

JAS Por falar em “Ilha dos Continentes”, quais são os demais espaços da Bienal?

FM Ao contrário da Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, não teremos nenhum espaço dedicado ao vazio. Ou seja, atividades é o que não nos falta. Porém não entendamos isto como uma overdose desenfreada de atrações. O roteiro de atividades foi desenhado de tal forma que esta é a sua principal característica: a estruturação consciente e coesa de um conjunto de ações culturais que possam envolver a diversidade do público que certamente teremos. O nosso principal espaço chama-se a Bienal como um todo.

JAS Aliás, foram criadas várias salas para conferências, debates, oficinas e exposições. Exemplifique melhor cada espaço.

FM É fato que o Centro de Convenções tornou-se insuficiente do ponto de vista de espaço e até mesmo de formatação deste espaço. Graças ao apoio da Universidade de Fortaleza podemos então ampliar a Bienal, o que significa poder lhe dar uma configuração mais ousada e diversificada. Neste sentido, estabelecemos espaços próprios para a realização de mesas reflexivas, tanto de conferências e debates quanto também de leitura de textos, considerando que estas envolverão também o comentário sobre obras e a participação do público. Na ala expositiva criamos uma série de salas dedicadas à mostra de vídeos, revistas, gravuras, arte postal, cordel etc. São ambientes que permitirão ao público um convívio mais íntimo com a realidade cultural dos países convidados. A sala de vídeos, por exemplo, possui uma programação intensa de exibição de quase 200 títulos (entre curtas de ficção e animação e documentários) de um total de 18 países. A sala de revistas é um espaço de convívio, de leitura, onde o visitante conta com centenas de revistas de vários países. A sala de música possui uma particularidade fascinante, ao abrir-se para o espontâneo, criando uma programação aberta, que permite uma maior participação do público e um elenco variado e por vezes inesperado de presenças que inclusive virão de outras áreas. Aliás, esta é também uma ideia nossa, a de criar um enlace possível entre as diversas áreas, cuja costura será feita por duas outras salas, a de rádio e a de imprensa, no sentido de se estimular troca de experiências não somente entre público e convidados, mas também entre os próprios convidados.

JAS O tema da Bienal é Aventura Cultural da Mestiçagem. Quer dizer, um tema que foi bastante discutido no início do século passado por pensadores como Oliveira Viana e Gilberto Freire. Por que retomá-lo?

FM Não estamos propondo nenhuma revisão sociológica do termo. Não se trata de uma leitura científica do tema. A mestiçagem é um traço de união que marca toda a história ibérica. Nossa pretensão é a de chamar a atenção para a perspectiva de uma nova dimensão cultural com uma harmonia intensa entre essas culturas todas.

JAS Vocês homenagearão Chico Anísio. Cearense, autor de vários livros, mas um escritor não canônico. Por que Chico Anísio? A Feira do Livro de Porto Alegre, por exemplo, homenageou Pernambuco com uma exposição de Gilberto Freyre e Ariano Suassuna…

FM O fato de não ser canônico, porém ter obra consistente, já seria uma valiosa razão. A mítica Macondo da obra do colombiano Garcia Márquez, por exemplo, é uma aparentada da Chico City criada por Chico Anísio, cada uma com suas peculiaridades e dimensões próprias, porém unidas pela genialidade de seus criadores. Chico é um fantástico criador de tipos diversos e marcantes. É preciso lançar sobre ele este olhar, como algo que nos deveria encher de orgulho. Como brasileiros, também nos sentimos orgulhosos por Gilberto Freyre e Ariano Suassuna. Mas esta é a Bienal de uma especialíssima galeria de personagens que reunidos conformam um satisfatório exemplo de nossa diversidade cultural, dando um sentido muito particular à nossa mestiçagem. Refiro-me naturalmente à galeria dos tipos criados por Chico Anísio.

JAS Vocês elaboraram uma extensa programação de debates e palestras. O senhor não acha que poderá haver um esvaziamento de público com tantas atividades e também por envolver autores desconhecidos no Brasil?

FM Em termos quantitativos a programação não é tão intensa em relação a outras Bienais. As atividades não se chocarão em termos de horários, o que permitirá ao público um aproveitamento maior das mesmas. O tema do desconhecimento nos preocupa em outro sentido, o da constatação do abismo existente no Brasil em relação a essas culturas. É uma situação tão alarmante que há que entender como meritória e inestimável a ousadia do Governo do Estado em busca solução para tanto. 

JAS Mesmo assim a programação envolvendo palestras, debates e oficinas, é bastante vasta e pode cansar o público. Vocês não estão correndo o risco de promoverem tantas atividades entre debates e palestras?

FM O termo “correr o risco” precisa deixar de ser visto sob a ótica de um aspecto negativo. Eu prefiro falar em ousadia, não esquecendo afirmar que se trata de ousadia consciente. A diversidade de opções que estamos dando ao público, considerando o universo cultural que abrange a Bienal, teria mesmo que ser pautado por este desconhecimento tão aludido pela imprensa. Por outro lado, a própria imprensa sabe que desempenhará um papel importante ao situar-se como parceira essencial da Bienal no que diz respeito à divulgação de nosso projeto.

JAS Os temas também são inúmeros – vão dos debates sobre suplementos literários, passando pelas questões envolvendo pequenas editoras até problemas mais complexos de mercado. Temas acadêmicos também serão debatidos como a Perspectiva de Mestiçagem da Obra de José de Alencar. Isso não tirará um pouco o foco central da Bienal?

FM Mas o foco central da Bienal é justamente essa múltipla aventura da busca de integração entre nossas culturas. Diversificar o diálogo, expor os conflitos de cada um, destacar suas excelências. Também aqui ouviremos sobre temas que são pertinentes à cultura de cada um dos países presentes. Tudo isso será novo para nós, novo e fascinante. Quanto mais intensa a irradiação e o envolvimento alcançado, mais nítida será a constatação de que atingimos o alvo.

JAS Aliás, quais foram as principais linhas mestras que conduziram as escolhas para esta Bienal?

FM O Alvo? Estamos conversando a respeito dele o tempo todo. O sinal de alerta para a urgência, inadiável, de uma integração cultural entre esses povos que ultrapasse a fronteira da retórica política ou oportunismo do mercado de entretenimento. É isto o que perseguimos: a descoberta real de uma Ibéria que ainda estamos por inventar.



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Entrevista concedida a José Anderson Sandes. Originalmente publicada no Diário do Nordeste, Caderno 3. Fortaleza, 09/11/2008. JOSÉ ANDERSON SANDES (Brasil, 1955). Jornalista e professor universitário. Foi editor de cultura do Diário do Nordeste. Foto de FM, ao lado de Contador Borges, 2012 © Fábio Chiba.
Imagens reproduzidas nesta página:
2011 Memória do voo
2011 Música inconclusa
2011 Natureza morta
2011 Necessidade interior

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Organização a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado | Floriano Martins (ensaio fotográfico)
Imagens © Acervo Resto do Mundo
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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