A Oitava Bienal Internacional
do Livro do Ceará abordará o tema Aventura Cultural da Mestiçagem. No entanto, diante
de sua vasta programação o evento será múltiplo. Múltiplo e repleto de sentidos.
São setenta convidados estrangeiros e mais de 100 participantes do campo editorial
brasileiro. Ao todo virão escritores de 23 países. Talvez, seja o maior número de
convidados já reunidos numa Bienal no Ceará. O curador do evento, escritor Floriano
Martins, afirma que a formatação da Bienal tem uma nova lógica. Sua configuração
é “essencialmente cultural de defesa da produção, circulação, difusão do livro e
estímulo geral à leitura”. Leia a seguir entrevista que o curador da Bienal, Floriano
Martins, concedeu ao Caderno
3. [JAS]
JAS Como surgiu a ideia de fazer a bienal reunindo
escritores de países de língua portuguesa e espanhola? O desconhecimento por parte
do público de grande parte dos escritores não vai gerar certo estranhamento?
FM A ideia surgiu da necessidade de dar uma
orientação mais consistente ao panorama cultural deste nosso tempo. O Brasil é o
único país da América Ibérica que fala português. É injustificável, para dizer o
mínimo, a nossa ausência em relação aos temas culturais que configuram esta comunidade
ibero-americana. Eu defendo a urgência deste “estranhamento”, pois tê-lo adiado
acarreta uma reserva crescente de prejuízos culturais. Tomaremos um imenso susto
diante da saborosa diversidade cultural que encontraremos na Bienal, de tal forma
que o “estranhamento” nos dirá o seguinte: mas
como pudemos passar tanto tempo sem conhecer tudo isto? Como é possível? Esta
é a minha convicção, que é também a de todos – no Ceará, no Brasil e nos demais
países envolvidos – os que trabalham para que esta Bienal alcance um alto padrão
de qualidade, visitação e reação de público e crítica.
JAS Como se desenvolverá este diálogo? A barreira
da língua – já que teremos vários escritores de língua espanhola – não será um problema?
FM Eu tenho conversado frequentemente com todos
os convidados e nenhum deles manifesta preocupação a este respeito. As mesas estão
formadas mesclando autores nos dois idiomas e os mediadores são todos bilíngues.
Sugeri a todos que conversassem entre si, para estabelecer um plano de diálogo para
cada mesa. Além disto, o publico terá à sua disposição um sistema de tradução simultânea.
Por último, temos a mais plena convicção de que este aparente obstáculo será vencido
pelo sentido envolvente de integração cultural que define a Bienal em si.
JAS O que diferencia esta Bienal das anteriores?
Por exemplo, a última reuniu escritores da Espanha e de Portugal, mas também brasileiros
como Moacir Scliar e Nélida Piñon, entre muitos outros. Tivemos, também, uma Bienal
sobre as Mil e Uma Noites. Mas sempre com escritores nacionais de renome tendo uma
dimensão maior dentro do evento. Como se deu a escolha tanto de escritores brasileiros,
quanto de estrangeiros, ou seja, qual foi o critério adotado?
FM Atendemos primeiramente à necessidade de
se estabelecer um conceito que revelasse uma determinação da cultura e não do mercado.
O passo seguinte seria dar a esse conceito uma configuração consistente em termos
de abrangências de temas, particularidades que poderiam funcionar como traços de
união entre alguns países e/ou entre gerações etc. Por último, buscar os nomes e
não renomes, ou seja, saímos em busca do substantivo e não do adjetivo, o que não
significa dizer que tenhamos rejeitado este ou aquele autor por se tratar de um
nome “conhecido”.
JAS Todos os países da América Latina foram contemplados?
E os da África e Europa de língua portuguesa e espanhola?
FM A representação não se dará em todos os casos
com a presença física de escritores. Há alguns países que estarão presentes através
de suas revistas ou através de vídeos. Ao todo virão escritores de 23 países, porém
em termos de representação ficaram ausentes apenas uns poucos países, a exemplo
de Honduras, El Salvador e Macau.
JAS Na sua concepção, quais os escritores, entre
todos convidados, têm maior representatividade?
FM Há destaques em áreas distintas e complementares:
a criação literária, a tradução, a edição, a pesquisa acadêmica, a gestão cultural.
Cada um de nossos convidados está aqui na condição de altos representantes de suas
áreas de atuação, de maneira que não haveria justiça ou eficácia em tal julgamento.
JAS Quase todos são desconhecidos dos brasileiros.
As editoras brasileiras não têm interesse em publicar escritores da América Ibérica?!
FM Conhecemos muito bem o comportamento do mercado
editorial brasileiro, cuja rejeição ao risco se enlaça com certa subserviência a
cânones viciados, fazendo com que a oferta seja no mínimo oscilante em termos de
qualidade e coerência editorial. Tem havido nos últimos anos editoras interessadas
na publicação de autores de língua portuguesa, de Portugal e da África, porém isto
graças a um convênio estabelecido pelo governo português que investe recursos na
divulgação dessa literatura no Brasil. Eu sei de algumas editoras que começam a
manifestar interesse na publicação de autores hispano-americanos. A minha expectativa
é de que este cenário comece a tornar-se mais frequente e que descubramos maneiras
de anularmos este indesculpável hiato existente entre essas literaturas.
JAS Foi criada para a Bienal a “Ilha dos Continentes”,
um espaço que reunirá pequenos estandes de editoras que jamais teriam oportunidade
de participar de bienais fora de seus países. Explique melhor este espaço.
FM Uma das grandes dificuldades das pequenas
e médias editoras diz respeito ao muro invisível que separa nossos países: os altíssimos
custos de traslado, impostos etc. Pensando nisso, tentamos minimizar este obstáculo
cedendo estandes para editoras individuais ou representações de editoras em cada
país envolvido com a Bienal. Também buscamos o apoio das embaixadas, solicitando
a utilização de sua mala diplomática para o traslado dos livros. Estas foram tentativas
que na prática permitiram a vinda de estandes de apenas 10 países, o que significa
que persistiram alguns obstáculos e que o apoio diplomático é algo ainda não de
todo factível em âmbito cultural. De qualquer forma, teremos aqui um espaço amplo
e pioneiro envolvendo 24 estandes com uma variedade comovente de editores que se
reuniram e virão ao Brasil representar seus países.
JAS Tanto a Bienal de São Paulo, quanto a do
Rio se transformaram em grandes feiras de livros. os preço praticados geralmente
são os mesmos das livrarias. Ou seja, o mercado editorial tem grande força nestes
eventos. A Bienal Internacional do Livro do Ceará segue o mesmo padrão?
FM Não há como estabelecer regras para a marcação
de preços. O mercado deve ser livre nesse sentido. Evidente que deveria falar mais
alto o bom senso. No caso da Ilha dos Continentes nós sugerimos aos seus coordenadores
que viessem com preços bem abaixo do mercado, o que certamente provocará um valioso
confronto. O que tratamos de fazer é com que a Bienal Internacional do Livro do
Ceará não se restrinja unicamente à área de vendas, dando-lhe uma configuração essencialmente
cultural de defesa da produção, circulação, difusão do livro e estímulo geral à
leitura em todo o Ceará.
JAS Por falar em “Ilha dos Continentes”, quais
são os demais espaços da Bienal?
FM Ao contrário da Bienal de Artes Plásticas
de São Paulo, não teremos nenhum espaço dedicado ao vazio. Ou seja, atividades é
o que não nos falta. Porém não entendamos isto como uma overdose desenfreada de
atrações. O roteiro de atividades foi desenhado de tal forma que esta é a sua principal
característica: a estruturação consciente e coesa de um conjunto de ações culturais
que possam envolver a diversidade do público que certamente teremos. O nosso principal
espaço chama-se a Bienal como um todo.
JAS Aliás, foram criadas várias salas para conferências,
debates, oficinas e exposições. Exemplifique melhor cada espaço.
FM É fato que o Centro de Convenções tornou-se
insuficiente do ponto de vista de espaço e até mesmo de formatação deste espaço.
Graças ao apoio da Universidade de Fortaleza podemos então ampliar a Bienal, o que
significa poder lhe dar uma configuração mais ousada e diversificada. Neste sentido,
estabelecemos espaços próprios para a realização de mesas reflexivas, tanto de conferências
e debates quanto também de leitura de textos, considerando que estas envolverão
também o comentário sobre obras e a participação do público. Na ala expositiva criamos
uma série de salas dedicadas à mostra de vídeos, revistas, gravuras, arte postal,
cordel etc. São ambientes que permitirão ao público um convívio mais íntimo com
a realidade cultural dos países convidados. A sala de vídeos, por exemplo, possui
uma programação intensa de exibição de quase 200 títulos (entre curtas de ficção
e animação e documentários) de um total de 18 países. A sala de revistas é um espaço
de convívio, de leitura, onde o visitante conta com centenas de revistas de vários
países. A sala de música possui uma particularidade fascinante, ao abrir-se para
o espontâneo, criando uma programação aberta, que permite uma maior participação
do público e um elenco variado e por vezes inesperado de presenças que inclusive
virão de outras áreas. Aliás, esta é também uma ideia nossa, a de criar um enlace
possível entre as diversas áreas, cuja costura será feita por duas outras salas,
a de rádio e a de imprensa, no sentido de se estimular troca de experiências não
somente entre público e convidados, mas também entre os próprios convidados.
JAS O tema da Bienal é Aventura Cultural da Mestiçagem.
Quer dizer, um tema que foi bastante discutido no início do século passado por pensadores
como Oliveira Viana e Gilberto Freire. Por que retomá-lo?
FM Não estamos propondo nenhuma revisão sociológica
do termo. Não se trata de uma leitura científica do tema. A mestiçagem é um traço
de união que marca toda a história ibérica. Nossa pretensão é a de chamar a atenção
para a perspectiva de uma nova dimensão cultural com uma harmonia intensa entre
essas culturas todas.
JAS Vocês homenagearão Chico Anísio. Cearense,
autor de vários livros, mas um escritor não canônico. Por que Chico Anísio? A Feira
do Livro de Porto Alegre, por exemplo, homenageou Pernambuco com uma exposição de
Gilberto Freyre e Ariano Suassuna…
FM O fato de não ser canônico, porém ter obra
consistente, já seria uma valiosa razão. A mítica Macondo da obra do colombiano
Garcia Márquez, por exemplo, é uma aparentada da Chico City criada por Chico Anísio,
cada uma com suas peculiaridades e dimensões próprias, porém unidas pela genialidade
de seus criadores. Chico é um fantástico criador de tipos diversos e marcantes.
É preciso lançar sobre ele este olhar, como algo que nos deveria encher de orgulho.
Como brasileiros, também nos sentimos orgulhosos por Gilberto Freyre e Ariano Suassuna.
Mas esta é a Bienal de uma especialíssima galeria de personagens que reunidos conformam
um satisfatório exemplo de nossa diversidade cultural, dando um sentido muito particular
à nossa mestiçagem. Refiro-me naturalmente à galeria dos tipos criados por Chico
Anísio.
JAS Vocês elaboraram uma extensa programação
de debates e palestras. O senhor não acha que poderá haver um esvaziamento de público
com tantas atividades e também por envolver autores desconhecidos no Brasil?
FM Em termos quantitativos a programação não
é tão intensa em relação a outras Bienais. As atividades não se chocarão em termos
de horários, o que permitirá ao público um aproveitamento maior das mesmas. O tema
do desconhecimento nos preocupa em outro sentido, o da constatação do abismo existente
no Brasil em relação a essas culturas. É uma situação tão alarmante que há que entender
como meritória e inestimável a ousadia do Governo do Estado em busca solução para
tanto.
JAS Mesmo assim a programação envolvendo palestras,
debates e oficinas, é bastante vasta e pode cansar o público. Vocês não estão correndo
o risco de promoverem tantas atividades entre debates e palestras?
FM O termo “correr o risco” precisa deixar de
ser visto sob a ótica de um aspecto negativo. Eu prefiro falar em ousadia, não esquecendo
afirmar que se trata de ousadia consciente. A diversidade de opções que estamos
dando ao público, considerando o universo cultural que abrange a Bienal, teria mesmo
que ser pautado por este desconhecimento tão aludido pela imprensa. Por outro lado,
a própria imprensa sabe que desempenhará um papel importante ao situar-se como parceira
essencial da Bienal no que diz respeito à divulgação de nosso projeto.
JAS Os temas também são inúmeros – vão dos debates
sobre suplementos literários, passando pelas questões envolvendo pequenas editoras
até problemas mais complexos de mercado. Temas acadêmicos também serão debatidos
como a Perspectiva de Mestiçagem da Obra de José de Alencar. Isso não tirará um
pouco o foco central da Bienal?
FM Mas o foco central da Bienal é justamente
essa múltipla aventura da busca de integração entre nossas culturas. Diversificar
o diálogo, expor os conflitos de cada um, destacar suas excelências. Também aqui
ouviremos sobre temas que são pertinentes à cultura de cada um dos países presentes.
Tudo isso será novo para nós, novo e fascinante. Quanto mais intensa a irradiação
e o envolvimento alcançado, mais nítida será a constatação de que atingimos o alvo.
JAS Aliás, quais foram as principais linhas mestras
que conduziram as escolhas para esta Bienal?
FM O Alvo? Estamos conversando a respeito dele
o tempo todo. O sinal de alerta para a urgência, inadiável, de uma integração cultural
entre esses povos que ultrapasse a fronteira da retórica política ou oportunismo
do mercado de entretenimento. É isto o que perseguimos: a descoberta real de uma
Ibéria que ainda estamos por inventar.
Entrevista
concedida a José Anderson Sandes. Originalmente publicada no Diário do Nordeste, Caderno 3. Fortaleza, 09/11/2008.
JOSÉ ANDERSON SANDES (Brasil, 1955). Jornalista e professor universitário. Foi editor
de cultura do Diário do Nordeste. Foto
de FM, ao lado de Contador Borges, 2012 © Fábio Chiba.
Imagens
reproduzidas nesta página:
2011 Memória do voo
2011 Música inconclusa
2011 Natureza morta
2011 Necessidade interior
*****
Organização
a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Floriano Martins (ensaio fotográfico)
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA
MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO
EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS
DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA
MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano
Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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