Se a inteligência de um homem
é proporcional à sua capacidade de estabelecer recusas, ao conversar com o cearense
Floriano Martins tem-se a nítida sensação de estar diante de um homem muito bem
dotado dessa faculdade tão mal distribuída entre os seres humanos, sobretudo entre
os intelectuais. Autor do livro de poemas Alma em Chamas, certamente
um dos acontecimentos poéticos das últimas décadas, e de uma obra volumosa que abrange
ensaios, crítica, tradução e entrevistas com poetas, além de uma série de inéditos,
Floriano é um dos maiores conhecedores da poesia latino-americana moderna e contemporânea
entre nós, e vem fazendo pontes das mais estimulantes entre essas literaturas e
o Brasil. Mas, para nossa surpresa, é uma voz solitária e praticamente isolada em
sua proposta. Pela importância e amplitude desse trabalho, veiculado, sobretudo,
nas revistas virtuais Agulha e Banda
Hispânica, das quais é editor, assusta sabermos
que ele não tenha maior repercussão. [RP]
RP O segundo volume de O Começo da Busca vai ser uma continuidade do primeiro ou vai propor
outras diretrizes poéticas e conceituais que convirjam para o Surrealismo? Fale
um pouco do projeto como um todo.
FM A princípio não havia nenhuma ideia de segundo
volume, por mais que o assunto não pudesse ser responsavelmente resolvido em 300
páginas. Confesso que já foi um obstáculo e tanto vir a editar este livro. A acolhida
da Escrituras foi providencial e o objeto final me é bastante simpático. Ao vê-lo
publicado é que comecei a pensar em lacunas que deveriam ser preenchidas, todas
dentro da mesma perspectiva. Não há porque buscar uma ótica outra se estamos tratando
de um tema de tamanha amplitude e ainda não de todo ambientado. Há uma pressa entre
nós brasileiros de mudar de assunto ou diretriz que reflete apenas uma frivolidade.
Somente agora é que começo a pensar no que chamas “do projeto como um todo”. Em
carta enviada, pouco antes de morrer, ao grupo surrealista de Chicago, escreveu
Pierre Naville “que o mundo atual deverá conhecer uma explosão surrealista muito
maior do que aquela que se deu em Paris, em 1924” . Isto foi em 1992, e até
então o Brasil não conhecia absolutamente nada do surrealismo em suas vertentes
hispano-americanas. Mesmo hoje há ainda muito a ser revelado e bem sabes que sou
uma voz praticamente isolada nesse processo. Na continuidade de meu trabalho vou
chamar a atenção sobre outros poetas, frisar as relações entre vários deles – em
termos de ação e poética – e apresentar novas entrevistas. Além disso, estou escrevendo
um volume apenas de ensaios, em que vão se revelando cronologicamente os dados essenciais
para uma leitura dessa explosão a que se refere Naville, já em ambiente latino-americano.
RP Em O
Começo da Busca você demonstra justamente que é possível traçar uma história
da literatura latino-americana a partir do Surrealismo. Você defende um Surrealismo
policêntrico, que emergiu por aqui em diversas etapas e sob diversas circunstâncias,
ao contrário da ideia de um movimento epicêntrico, com sua origem datada nos manifestos
de André Breton. Fale um pouco sobre isso.
FM Não havia ideia de epicentrismo nem mesmo
naquele bando mesclado de ex-dadaístas que se reunia em torno de Breton. Acho que
há algo em comum, o princípio libertário que norteia o Surrealismo, não resta dúvida.
Mas a manifestação desse princípio na América Latina se deu investida de um otimismo,
inclusive uma crença voluptuosa na linguagem e não apenas na ação. Não cabe falar
em emancipação porque a relação entre os países latino-americanos e a Europa possui
vários matizes. Não há o que se possa chamar de “nossa história”. Não temos uma
história comum, no sentido em que jamais a percebemos sob tal ângulo. No caso brasileiro,
nossa relação com a Europa estava mais acentuadamente ligada à França de Claudel,
Verlaine, Valéry. Desnecessário dizer que me refiro a um mapa oficial dessa cultura.
Tzara, Reverdy ou Breton eram nomes pouco mencionados por aqui. E uma imediata aproximação
entre Surrealismo e marxismo, por exemplo, afastou de vez toda possibilidade de
uma filiação do Brasil a essa corrente libertária que se anunciava. Nenhuma história
corre independente, pois a história é uma mescla de fatores, e sequer pode ser tão
levianamente lida como tardia ou antecipatória em relação a qualquer aspecto que
se coloque. Quando se pretende um recorte isolado o que se está fazendo é falsear
a história – a exemplo do que tivemos tanto na Semana de Arte Moderna quanto no
Concretismo.
RP Como você situa algumas vozes fortes como
César Vallejo e Vicente Huidobro nesse panorama?
FM Grande dilema o de atestar vínculos. O Surrealismo
procurou romper com a ideia de clubismo, e mesmo assim muitos se aproximaram dele
como se buscassem apenas uma carteira. Essa ambiguidade – se cabe o termo – gerou
rejeições famosas, manifestas de várias maneiras. Vallejo e Huidobro são dois casos
paradigmáticos. O chileno é apontado pelo romeno Stefan Baciu como um dos precursores
do Surrealismo na América Latina. Já o espanhol Ángel Pariente situa o livro Trilce, de Vallejo, como sendo de recorte
surrealista. Huidobro tinha um ego assombroso e jamais admitiria influência de quem
quer que seja, o mundo começava nele. Creio que foi o poeta que mais redigiu manifestos
– há um largo volume que recolhe todos eles –, manifestos de um homem só. Já o peruano
estava tão impregnado de comunismo que a própria ruptura de linguagem que alcança
em Trilce seria posteriormente enfraquecida
em outros livros. De qualquer maneira, creio que a desconstrução neste livro do
Vallejo tende mais ao dadaísmo – embora não tão nítida como no caso de En la masmédula, de Girondo – do que ao Surrealismo.
E Huidobro estava, como o sabemos, demasiado impregnado de Cubismo.
RP No Brasil, nosso conhecimento da literatura
latino-americana se restringe à trinca Borges, Paz e Neruda. Quanto a Lezama Lima,
há ainda o agravante de ter penetrado aqui por intermédio do Concretismo, que importou
a imagem deformada e afetada que o Neobarroso
de Nestor Perlonguer fez dele. Fale de outros poetas e poéticas americanos.
FM Talvez seja melhor começarmos falando dos
prejuízos advindos da limitação e, sobretudo, do falseamento dentro desse âmbito
restrito. É precário aceitar a presença de Borges, Paz e Neruda como grandes poetas,
ainda mais sob o crivo de fundadores da modernidade na poesia hispano-americana.
Borges era um fabulista, mestre imbatível na arte de tornar a si mesmo o grande
personagem de sua obra e, por consequência, da tradição literária moderna. Gerardo
Deniz está completamente correto ao dizer que se trata de um poeta de imagens e
recursos previsíveis, enfadonhos. Paz possuía uma aguda percepção da realidade à
sua volta – soube ser inicialmente o crítico dessa realidade, mas acabou por converter-se
em cúmplice dela. Poeticamente cristalizou-se muito cedo. Neruda jamais buscou outra
coisa que não fosse tocar a imensidão do ego, e não reside em outro aspecto a máscara
cosmogônica com que revestiu sua poética
nos incontáveis experimentos estéticos a que a submeteu. Já o caso de Lezama possui
uma graça particular: há algo de enciclopédico
na visão de mundo do cubano que o aproxima de figuras como Peter Greenaway ou Haroldo
de Campos. A verdade é que todos querem ser Deus. E cada vez me parece que a grande
tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo. O venezuelano José
Antonio Ramos Sucre, por exemplo, matou-se por não suportar mais a presença de visões
que lhe assombravam a existência. Não vivia em um plano literário, mas sim na mesma
dimensão excessiva de um Artaud. Após o suicídio, em 1940, não foi mais lembrado
de maneira consistente. O Chile possui uma vertente múltipla que encontra em Pablo
de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto Díaz-Casanueva uma fonte de renovação que
não desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo com a Europa. No colombiano
León de Greiff encontramos o mais surpreendente caso de polifonia na tradição poética
latino-americana. O guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón soube buscar na algazarra
da modernidade uma voz que fosse a soma de todas; uma nova relação com o mito proposta
pelo nicaraguense Pablo Antonio Cuadra etc. O que me pedes não é fácil, toma um
livro. Sobretudo quando no Brasil desconhecemos toda essa tradição. Acho que em
todo momento atestamos a infelicidade de nossa ausência de mundo. Toda a sociedade
brasileira desmonta-se por esse desconhecimento de si mesmo, um mínimo estalo que
nos leve à relação com o outro. Sem ele, não há nada.
RP Você é dos poucos poetas brasileiros que
se preocupam com a dimensão política da arte, o que é, mais do que louvável, necessário,
em um momento em que intelectuais, escritores e artistas oscilam entre uma burocracia
mental aviltante e um espírito gregário cada vez mais acentuado, ou, na pior das
hipóteses, em seu idiotismo, mal sabem o que vem a ser a dimensão política de uma
poética. Como você vê a articulação entre essas duas esferas?
FM Se não me falha a memória certa vez o Augusto
de Campos referiu-se ao afazer poético como uma afasia. Isto é curioso porque carece
de autocrítica, ou seja, a quem exatamente ele estava se referindo? Por aqui começamos
nosso curso de idiotismo. Este é um formoso
termo de alheamento da realidade, de criação de uma linguagem isolada, que não se
relaciona com nada. O idiotismo é a anti-poesia, mas tem sido a tônica da poesia
que se pratica no Brasil de algumas décadas para cá. É curioso observar as maneiras
distintas do ser idiota no poeta brasileiro. Há os que se tornam reféns da pós-modernidade,
que fazem questão de serem reconhecidos como contemporâneos, por mais desarticulada
ou retrógrada que seja essa pós-modernidade. Na outra ponta estão aqueles que detestam
a atualidade, os passadistas de carteira e louvor, que pousam em bando como uma
equipe de resgate da história. Evidente que em um cenário desses, reforçado por
uma tradição positivista, brigadas da TFP, política cartorial, amiguismos, uma relação responsável de complementaridade
entre poética e política está fadada ao ideário das charges. Não te parece que o mais importante na vida dos brasileiros
é que algo te faça rir? Rir da própria miséria pode ser uma tática de resistência,
mas ser levado a isto é aceitar-se como instrumento de uma perversão, com o qual
somos todos coniventes. A chamada arte tornou-se mecanismo de idiotização de uma
sociedade carente de si mesma. O pão convertido em circo e vice-versa. Somos todos
absolutamente responsáveis por esse crime em larga escala. A maneira como tocadores
de violão são aceitos como músicos, modelos fotográficas como atrizes, músicos como
romancistas, jornalistas e redatores publicitários como poetas ou roteiristas de
cinema, enfim, a forma espúria como a mediocridade ascende ao poder cultural em
nosso país já se tornou um caso de polícia.
RP Você diz que o Surrealismo teve pouca penetração
no Brasil exatamente por causa de nossa tradição positivista, o que eu considero
uma análise agudíssima e correta. O que é curioso é essa estética ter se imiscuído
entre nós pelas mãos de dois poetas católicos e com interesses místicos: Murilo
Mendes e Jorge de Lima. Ao mesmo tempo, você tece algumas críticas a esses poetas
e sugere outros nomes. Isso está relacionado às eternas idiossincrasias brasileiras?
Como você analisa esse fato?
FM O Surrealismo estava na pauta de rejeições
de todas as culturas que buscavam uma identidade em meio àquela eclosão destemperada
de ismos das primeiras décadas do século XX. Basta pensar que Lezama Lima ou Gaitán
Durán possuíam articulações essenciais com o Surrealismo, mas que não as admitiam
em circunstância alguma, imbuídos que se sentiam da necessidade de fundar algo em
Cuba e Colômbia, respectivamente. É possível que o mesmo tenha se dado com o Mário
de Andrade, conhecedor que era dos vislumbres anunciados ao mesmo tempo em que não
lhes correspondiam – nem ele nem Oswald – em termos estéticos. Então nos pegamos
com réstias ou pequenos sinais de vida. Basta ler manifestos assinados por ambos.
Já em relação a Jorge de Lima e Murilo Mendes, façamos o seguinte: troquemos catolicismo
por cristianismo e misticismo por ocultismo, por exemplo, e já teremos aí um novo
ambiente conceitual onde o assunto começa a ganhar clareza. Vincule-se cristianismo
a comunismo e ressalte-se o interesse do Surrealismo pelas ciências ocultas e ganhamos
ainda mais em nitidez nessa relação por ti sugerida. O que chamas de “idiossincrasias
brasileiras”, é sempre o mesmo fruto podre de nosso desconhecimento de causa. Eu
não tenho nenhuma rejeição aos dois poetas. Acho impressionante que se mencione
tão amiúde o Drummond como nosso grande poeta, este sim tão católico, tão conservador,
tão transigente, tão acomodado às circunstâncias, sob quaisquer aspectos que se
mencione. O que digo em meu livro é que nossa crítica literária necessita sair do
lugar comum de tratar o Murilo como único surrealista no Brasil. Isto não passa
de um refúgio para evitar referir-se à questão como ela merece. Murilo foi um grande
transgressor, e mesmo naquele ambiente interiorano de uma Jandira, por exemplo,
já se ressaltava uma visão mais profunda de mundo, com um recorte filosófico que
não tínhamos em nós nem mesmo de maneira caricatural. É leviano – quando não criminoso
de vez – reduzir a poética de ambos ao que se chama de “poesia em Cristo”. Como
esperar que se manifestasse a explosão do ser em poetas marcados por uma exasperada
chaga católica que tanto define a história brasileira? Diante da irrelevante obra
poética de nomes como Mario e Oswald de Andrade, por exemplo, tento buscar outra
explicação, que não de ordem estética, para que poetas como Jorge de Lima e Murilo
Mendes não tenham sido até hoje lidos com a isenção que a obra de ambos cobra de
nossa crítica.
RP Falando em idiossincrasia, há uma curiosa.
Enquanto na América do Norte o fenômeno Walt Whitman já tinha acontecido há décadas
e na Europa tínhamos uma plêiade composta por Rilke, Valéry, Eliot, Pound, Apollinaire,
Joyce, Lorca, Breton e Proust (desconto Kafka e Pessoa por causa do seu anonimato
incipiente), Mário de Andrade resolve se agarrar a uma estrela cadente, e importa
a tagarelice de um italiano cuja fortuna mental e talento irrisório deixaram, para
a posteridade, um manifesto e algumas frases tão ridículas quanto ele próprio: Tommaso
Marinetti. Sabemos que o futurismo estava no front de toda a proposta modernista, e que esse mesmo Modernismo, por
razões muitas vezes meramente ideológicas, é a cartilha sobre a qual reza a maior
parte da arte que se fez e faz até hoje. À parte o valor inquestionável da obra
de Mario e Oswald de Andrade, há um legado bastante negativo da Semana de 22, não?
Como você avalia isso?
FM O legado da Semana de 22 equivale à leitura
de curso das águas em uma lagoa. É nossa principal metáfora da permanência, com
a ambígua leitura de que é nossa entrada na modernidade. Mário estava menos interessado
nela do que em um projeto pessoal de afirmação de leitura dessa modernidade. Os
nomes ligados à Semana eram os do rebanho possível. Como Alberto Nepomuceno morrera
dois anos antes, embora deixando volumosa pesquisa sobre cantos populares em todo
o Brasil, e mesmo tendo posto o pescoço a prêmio ao colocar a Sinfônica brasileira
a tocar com Catulo da Paixão Cearense, por exemplo, inúmeros fatos foram apagados
e hoje cabe ao modernismo e em especial a Villa-Lobos essa aproximação entre o popular
e o erudito em nossa música. Também nas artes plásticas teríamos muito a conversar
sobre o injustamente reduzido prestígio de um artista como Vicente do Rego Monteiro.
Não se trata de “legado negativo”, mas sim de falseamento da história e com a larga
conivência de toda uma casta intelectual envolvida. O mais curioso é quando escuto
dizer do nacionalismo exacerbado do Nepomuceno, por exemplo. Ora, ninguém fala em
tal coisa quando se trata dessa íntima relação que o Mário assumiu com o Futurismo,
nitidamente de ordem nacionalista. Nacionalismo, ressalte-se, no sentido de preparação
para regime de exceção.
PR Fale um pouco mais desse falseamento da história
e desse regime de exceção. É ele que endeusa o Fernand Léger de saia (Tarsila do
Amaral) e praticamente risca do mapa um artista excepcional como Ismael Nery? Que
devolve o Concretismo ao centro do seu próprio umbigo cósmico e torna opaca uma
série de coisas em volta? Que eclipsa Augusto dos Anjos e confere qualidade à versalhada
de Mario de Andrade? Tenho a impressão que se Augusto dos Anjos tivesse escrito
em alemão haveria uma miríade de pedantes usando-o como epígrafe em seus estudos
sobre o expressionismo.
FM Acho que podemos rir um pouco. Em uma das
edições de dezembro de 2002, a revista Época
publica um artigo de Antonio Gonçalves Filho onde menciona a decorrência ingênua
da pintura de Anita Malfatti, o realismo socialista para onde escorreu a obra de
Tarsila do Amaral, a decadência suburbana de Di Cavalcanti e o exílio no academicismo
em Brecheret. A princípio este é um atestado de que a Semana de Arte Moderna não
manteve a chama acesa nem mesmo enquanto o bolo do primeiro aniversário era cortado.
Ora, mas de que nos servia o cubismo de Fernando Léger e a concisão de Brancusi,
se não sabíamos o que propor, a partir deles, em termos de um Brasil aclamado como
bandeira da (nossa) modernidade? Trocar xenofobia por xenofilia? Ismael Nery sabia
o caminho. Mas ia de encontro à pretensa ousadia
nacionalista de nossos modernistas. O mesmo vale para Cícero Dias. Uma coisa
que tenho observado nessas leituras comemorativas de nossa entrada na modernidade
é que uma crítica de arte se manifesta de maneira mais efetiva do que o correspondente,
por exemplo, na música ou na literatura. Nem falar em Niemeyer, que tornou-se um
mito intocável de nossa arquitetura, uma curiosidade na perspectiva de uma arquitetura
funcional esse encantamento por um declarado comunista que planejou espaços onde
é bastante dificultado o encontro entre duas almas. Bom, no caso da música o lobby de Mário de Andrade em favor de Villa-Lobos
foi decisivo. Agora, por que aceitamos tão passivamente a importância de Mário e
Oswald como poetas se não atendem, em circunstância alguma, a uma perspectiva estética
em que deveriam quando menos apontar certos traços renovadores? O falseamento da
história é exercido por um corte abrupto em relação ao passado. Nossa modernidade
parte do nada. O mesmo se repetiria no plano-piloto do Concretismo, décadas depois.
O regime de exceção é decorrente desse comportamento. Basta cotejar cronologia artística
e política – como se fossem entidades inconciliáveis! – e veremos que a Semana de
Arte Moderna é precursora do Estado Novo e que o Concretismo e o Golpe de 64 são
consanguíneos.
RP A propósito, temos no Brasil duas correntes
que se desenvolvem paralelamente e que parecem formar a esquizofrenia fundamental
de nossa intelligentsia. De um lado, uma
forte tradição dialética advinda do Idealismo Alemão, mais especificamente de Hegel,
busca o Bildung, o caráter formativo da
nossa nacionalidade por intermédio da análise da literatura. De outro, há uma via
que finca raízes na linguística, na semiologia in nuce, na ciência positiva do século XIX e mais tarde no Estruturalismo,
que se preocupa com os aspectos imanentes da arte, e que nos deu os jogos florais
e formais de toda essa poesia de véu e grinalda feita nas últimas décadas. Em decorrência
disso, ora fazemos da literatura um mero instrumento que expressa uma hipotética
essência (a nacionalidade), ora a tomamos nela mesma e reduzimos seu sentido a um
enunciado discursivo (a linguagem), em contraste com o “mundo”, que confesso francamente
não ter a mínima ideia do que venha a ser. Isso demonstra que as duas grandes diretrizes
do pensamento e da produção poética estão concentradas na dualidade Forma versus
Conteúdo. No seu livro Fogo nas Cartas,
você diz que a poesia, mesmo sendo intransitiva, é filha da alteridade. Essa definição,
além de ser muito bonita, parece negar de saída essas ambiguidades falazes. Como
você se posiciona diante dessas questões?
FM Tua leitura é cristalina e incontestável.
Quem primeiro me chamou a atenção para isso foi o Roberto Piva. Não podemos nos
tornar reféns ou cúmplices dos crimes de lesa pátria ou língua. A rigor, a poesia
é a contestação desses conceitos. Há um aspecto aparentemente negativista na poesia,
o de recusa essencial. Mesmo a afirmação é uma negação, e isto porque ela parte
do princípio de que algo deve ser contestado. Condição ambígua? Não se trata propriamente
de um sofisma. Não posso me pôr dentro da linguagem se não estou dentro de mim mesmo,
com as implicações naturais do cidadão que sou. Mesmo que vivesse isolado do mundo,
essa seria uma forma de relacionar-me com o mesmo. Então não tenho como fugir de
mim e de minha circunstância – por mais que o deseje. É por isso que me refiro a
muitos de nossos poetas como autistas. A pretensa autonomia – ou voz própria, seja
lá que nome se queira dar – é fruto não de isolamento, mas de mergulho em todas
as águas. A rigor não escolhemos o inferno onde queremos ser Dante. Mas jamais chegaremos
a gare alguma pela via inexpressiva de nossos poetas incultos.
RP Você defende a união indissolúvel entre a
vida e a arte. Isso não pode gerar algumas dificuldades de avaliação da obra artística
e seu valor objetivo, na medida em que a liga de maneira muito direta a seu criador
e à sua biografia?
FM Não creio nisto. A biografia de um poeta
está intrinsecamente ligada a uma perspectiva de errância, do matutar em peregrinação,
de maneira que não vejo como dar à vida ou à obra uma dimensão inquestionável. Os
valores objetivos são um encargo da sociedade de consumo. A criação artística possui
um valor intrínseco, soma do objetivo e do subjetivo. É o retrato falado de quem
a cria. Prova maior do que falo a obtemos quando do encontro com o autor de qualquer
um desses versos anódinos que se publicam a rodo. Qual a biografia possível dos
poetas brasileiros, por exemplo, da minha geração?
RP Boa parte da nossa miséria econômica deita
suas raízes na e coroa a nossa dependência cultural. Mesmo assim, parece que há
cada vez menos debate artístico em âmbito civil, ou seja, motivado por projetos
impessoais e coletivos sobre a arte. Qual o seu diagnóstico da poesia brasileira
atual, com o perdão da amplitude do tema e da questão?
FM Não há perdão para a amplitude. Não padecemos
propriamente de uma dependência cultural nos moldes de uma invasão, se cabe o termo.
Há cultura suficiente no país para torná-lo uma grande nação. Eu sempre penso no
caso da música e me indago como é possível que o choro tenha se convertido em algo
de quase nenhuma percepção em nossa tradição musical. Ora, o choro praticamente
funda um legado essencialmente brasileiro. A bossa nova vem depois. Mas claro, é
música de branco universitário. Eu acho um absurdo que não se consiga conversar
com poetas brasileiros sobre música ou teatro ou cinema, por exemplo. Que espécie
de mundo à parte eles estão construindo? E mesmo sobre a matéria queimante da poesia,
raros cruzam os cercados dos lugares comuns, e alguns ostentam ainda com peculiar
parvoíce sintomas de obsessão enciclopédica. Ora, vivemos em um país onde a miséria
intelectual determina a miséria social. Bem podemos compreender todo o despejar
de preconceitos ou rejeições em torno de qualquer maneira distinta de tratar do
assunto. Para que fosse possível um diagnóstico teríamos que evocar toda uma tradição
fraudada, o que significaria revolver túmulos, reconsiderar decretos de genialidade,
rever diários de bordo etc., pois de outra maneira não alcançaríamos uma justa relação
entre passado e presente. Teríamos, enfim, que enfrentar um largo processo de desmi(s)tificação.
Acontece que os novos talentos são dados à luz dessa deformação cultural, gerando
um círculo vicioso que a ninguém interessa romper. Não quero dizer com isto que
padecemos de um mal incurável. Cabe, no entanto, lembrar que somente através da
revolta, da negação, da insubmissão, em relação a quaisquer cânones é que encontramos
uma razão de ser da poesia.
RP Pela primeira vez, desde a instituição da
República, vamos ter um governo de esquerda gerido pelo maior partido de esquerda
do mundo. No que isso pode mudar o curso do Brasil e dos países dependentes? Você
arriscaria alguma opinião sobre a América Latina?
FM Eu tenho a impressão de uma dádiva queimante.
Um grande dilema da América Latina tem sido a recusa a entender que a solução encontra-se
em casa. Este é nosso maior desafio. Não vejo isoladamente o assunto como de ordem
política. Caberá ao novo presidente o que sempre coube a seus antecessores: buscar
vínculos substanciosos, que não sejam regidos apenas por uma falácia de crise. Não
arrisco opinião alguma. Afirmo um caminho que já trilho com meu trabalho. Mínimo
sinal, mas que considera uma relação continental até então inexistente. O mundo
deixou-se tragar pela falácia econômica, sempre cartorial, onde a ameaça terrorista
possui até um dado positivo, que é o de nos despertar dessa hipnose estatística.
Mas não cabe apelar a uma antevisão agora. Há muito a ser inicialmente conversado.
Lula naturalmente tem suas prioridades. É aguardá-lo, antes de qualquer outra coisa.
Entrevista
concedida a Rodrigo Petronio. Originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 32. Fortaleza/São Paulo, janeiro de 2003.
Foto do poeta, México, 2004 © Eleuda de Carvalho. Foto do poeta com Rodrigo Petronio,
São Paulo, 2003 © Socorro Nunes. RODRIGO PETRONIO (Brasil, 1975). Poeta, ensaísta
e pesquisador. Professor de Criação Literária na Academia Internacional de Cinema
(AIC), no Centro de Estudos Cavalo Azul, e no Instituto Fernand Braudel. É autor
dos livros História Natural (poemas, 2000),
Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e
Pedra de luz (poemas, 2005).
Colagens
reproduzidas nesta página:
2008 Santuário dos caprichos
2008 Uma segunda versão
2008 Vítimas do espelho
2012 A imagem e a semelhança
*****
Organização
a cargo de Márcio Simões e Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Artista convidado
| Floriano Martins
Imagens ©
Acervo Resto do Mundo
Esta edição
integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim
estruturado:
1 PRIMEIRA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS
DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA
MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS
NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO
EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS
DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA
MEMÓRIA, II
9 SEGUNDA
ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
A Agulha
Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano
Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio
2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de
Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde
2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano
Martins e Márcio Simões.
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