terça-feira, 4 de julho de 2017

ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?


Em 1783 um jornal de Berlim perguntou a cada um dos pensadores: “O que é esse movimento ao qual pertencem? O jornal referia-se ao movimento Iluminista. Antes de mais nada, há que ressaltar que naquela época os jornais perguntavam o que queriam saber. Não era como hoje, que já têm as respostas que querem escrever.
Was ist Aufklärung? O que é Esclarecimento? Aufklärung costuma ser traduzido por Esclarecimento, Iluminismo, Século das Luzes ou Ilustração, termos estes ligados ao espírito do século XVIII, que se alvoroçava com a crença e a confiança na razão. A Europa deste século achava que bastava fazer o uso correto da razão para ser feliz, pois esta poderia resolver todos os problemas.
Immanuel Kant, ao responder a pergunta, começa definindo o que é Esclarecimento:

Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! [1] Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continue, no entanto, de bom grado menor durante toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar…

Ora, não estaria o próprio Kant também tutoreando? Afinal, os três exemplos que ele deu coincidem com três livros que escreveu: o livro que faz as vezes do entendimento refere-se à “Crítica da Razão Pura”; o diretor espiritual à “Crítica da Razão Prática” e o médico à “Crítica do Juízo”. Mas o problema não está em escrever e ler livros, mas em aceitar passivamente o que vem de fora sem ruminar durante um tempo o que fazer com aquelas informações. Porque tudo o que vem de fora, sejam livros, pregações ou recomendações médicas, são apenas informações. O que vale é a vivência e experiência de cada um. É só a vivência e experiência que nos diz se algo nos serve. O que é bom para uma pessoa, pode não ser para outra. Há que respeitar a individualidade de cada um. Kant dá uma enorme importância à liberdade de pensar.
Mais de duzentos anos se passaram. Alguém conhece alguém que saiu da menoridade? Que não recorre a um livro que lhe diga o que pensar? Que não recorre a um médico que lhe diga como cuidar de sua saúde? Talvez alguns hoje tenham substituído o padre por um psicólogo para amenizar seus problemas de consciência. Mas algum tutor deixou de fazer propaganda do perigo que as pessoas correm caso queiram seguir seus próprios princípios? A meu ver, as coisas pioraram. A medicina vigente dos últimos séculos, a alopatia, propaga um verdadeiro terror de ameaças caso o paciente não queira submeter-se a seu tratamento. Tutores religiosos ainda ameaçam aqueles que não os seguem chamando-os de pecadores. Em suma, a domesticação continua a todo vapor.
Em seu texto à resposta “O que é Esclarecimento?”, após definir o termo, Kant irá dizer:

Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranquilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. (…) É difícil, portanto, para um homem em particular desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza. (…) Por isso são muito poucos aqueles que conseguiram, pela transformação do próprio espírito, emergir da menoridade.” O homem não está habituado a ser livre, é “incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder.

Extremamente interessante o que o filósofo dirá em seguida para o jornal:

Que porém um público se esclareça a si mesmo é perfeitamente possível. Pois encontrar-se-ão sempre alguns indivíduos capazes de pensamento próprio, até entre os tutores estabelecidos, que, depois de terem sacudido de si mesmos o jugo da menoridade, espalharão o espírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por si mesmo. O interessante nesse caso é que o público, que anteriormente foi conduzido por eles a este jugo, obriga-os daí em diante a permanecer sob ele, quando é levado a se rebelar por alguns de seus tutores (…) Vê-se assim como é prejudicial plantar preconceitos, porque terminam por se vingar daqueles que foram seus autores. Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento (Aufklärung). Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento.

Ao afirmar que as mudanças nas instituições devem ser lentas, Kant estava constituindo isso. Hoje o neoliberalismo usa Kant, e toda a linguagem jurídica é kantiana. Aliás, segundo o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), todas as linhas da filosofia atual derivam de Kant.
Na continuação do referido artigo dirá Kant que a condição para o esclarecimento é a liberdade, mas não qualquer liberdade. Ele diferencia o uso público e o privado da razão. Kant leu Rousseau – o problema da liberdade geral e privada. Toda a reflexão moral em Kant tem uma relação com Rousseau. Para ele, no uso público pode haver liberdade, o raciocinar deve ser em proveito da humanidade para que se consiga o esclarecimento. Mas há que destacar que Kant entende por uso público da própria razão o que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela perante o público do mundo letrado. E o uso privado da razão deve ser limitado, ou seja, pode raciocinar, mas ao mesmo tempo tem que obedecer, sendo que isso não impede o progresso do esclarecimento. Esta é a liberdade civil. É o uso que o sábio pode fazer de sua razão dentro de um cargo público, por exemplo, quando trabalha em uma instituição. Nas suas palavras:

Para muitas profissões que se exercem no interesse da comunidade, é necessário certo mecanismo, em virtude do qual alguns membros da comunidade devem comporta-se de modo exclusivamente passivo para serem conduzidos pelo governo (…) em casos tais não é permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. (…) Assim, seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse se por a raciocinar em voz alta a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Mas, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, de fazer observações sobre os erros no serviço militar, e expor essas observações ao seu público, para que as julgue. (…) O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos (…) apesar disso, não age contrariamente ao dever de um cidadão se, como homem instruído, expõe publicamente suas ideias contra a inconveniência ou a injustiça dessas imposições.

Segundo Kant, se os homens instruídos esclarecem a população, isso faz com que a próxima geração não cometa os mesmos erros. Ele diz: “Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torne impossível para esta ampliar seus conhecimentos, purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. (…) Ao mesmo tempo, se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a possíveis defeitos das instituições vigentes. (…) é absolutamente proibido unificar-se em uma constituição religiosa fixa, de que ninguém tenha publicamente o direito de duvidar (…) um homem pode adiar o esclarecimento, mas renunciar a ele significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade.” Note-se que isso é exatamente o oposto do que pregava Santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.).
Kant escreve para o jornal que se for feita hoje a pergunta: Vivemos agora em uma época esclarecida?, a resposta será: Não, está a caminho, mas ainda não é, vivemos em uma época de esclarecimento ou o século de Frederico. E ele explica: “Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever não prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em tal assunto plena liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome de tolerância, é realmente esclarecido e merece ser louvado pelo mundo e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as questões da consciência moral. (…) Os homens se desprendem por si mesmos, progressivamente, do estado de selvageria, quando intencionalmente não se requinta em conservá-los nesse estado.” Dito isto, quase no final de seu texto escreve:

Mas também somente aquele que, embora seja ele próprio esclarecido, não tem medo de sombras, e ao mesmo tempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir a tranquilidade pública, pode dizer aquilo que não é lícito a um Estado livre ousar: raciocinai tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui uma estranha e não esperada marcha das coisas humanas; (…) quase tudo nela é um paradoxo. Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa.

Vemos assim que Kant era a favor do livre pensar e era a favor de mudanças, mas não acreditava em mudanças súbitas através de uma revolução, e sim em mudanças lentas através do livre pensar. Para ele, a liberdade de pensar acaba levando à liberdade civil, e obedecer não impede que se saia da menoridade. Podemos obedecer às instituições, mas ter a liberdade de pensar. Ele acreditava que um dia toda a humanidade saberá pensar por si mesma, mas que isso está longe de acontecer, e o que pode facilitar esse acontecimento é a divulgação do pensamento da minoria esclarecida. E quando todos forem ilustrados, não será mais necessário instituições. Mas estas nunca mudariam, e menos ainda poderiam deixar de existir, sem mudar primeiro o pensamento. Por isso, para ele, as revoluções não resolvem os problemas. No princípio aparentam ter feito mudanças, mas a médio prazo mostram que continua tudo igual. No entanto, ele dá o exemplo da Revolução francesa para mostrar o poder do entusiasmo. Mas Kant não foi nenhum ingênuo ao pedir apenas a liberdade de pensar. Objetos de conhecimento que ele deixou de lado em sua “Crítica da Razão Pura” são aceitos como postulados que guiam nossa ação em sua “Crítica da Razão Prática”.
Bem, segundo Kant, o monarca é esclarecido e ninguém tem o que temer. Mas ainda há um problema: como garantir segurança no plano efetivo das relações entre os povos. Há sempre a vontade de subjugar o outro. Kant foi o primeiro a pensar, por analogia ao direito civil, um direito internacional submetido a leis que todos serão obrigados a obedecer. Para ele, na medida em que postulamos, isso pode acontecer efetivamente, podemos postular até a paz perpétua. A liberdade de pensar põe as metas da instituição. Kant não é um pensador individual, é um pensador universal, e chama de teoria mesmo quando fala da prática, sempre em termos universais. Em Kant, desejar é o mesmo que produzir. Enquanto no século XVIII os realistas diziam que os homens são como são, Kant dizia que os homens são o que nós temos feito deles. Trata-se de um filósofo que acredita no progresso e na transformação. Ele não parte de como os homens são, mas como devem ser. Ele tenta reconciliar Rousseau e Hobbes sem dar razão a nenhum deles, mantendo as antinomias e contradições. Nota-se um pensamento estoico em Kant – o mal tem a capacidade de se auto destruir, e o bem, uma vez implantado, se mantém por si mesmo.
Podemos ainda perguntar: mas e se ninguém quiser o esclarecimento? Afinal, quase ninguém quer sair da caverna de Platão. Para Kant, isso não tem importância, pois a natureza sozinha tem um germe que nos levará ao progresso. A humanidade será obrigada a ser livre!

NOTA
01. “Sapere aude” é uma frase em latim que significa “Atreva-se a saber, a conhecer”.


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ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963). Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga Sutra de Patanjali. Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Tita do Rêgo Silva (Brasil), artista convidada desta edição.

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● ÍNDICE # 99

EDITORIAL | A pronúncia esquecida da realidade

ALICIA LLARENA | Agustín Espinosa: Lancelot 28º - 7º

CARLOS OLIVA MENDOZA | Erotismo, pornografía y felicidad

ESTER FRIDMAN | Quer a humanidade ser livre?

FLORIANO MARTINS | Valdir Rocha e o mito transfigurado

GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Leonora Carrington y surrealismo novelado, por Elena Poniatowska

JORGE ANTHONIO E SILVA | A poética na esquizofrenia

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Gilka Machado, a maldita

PEGGY VON MAYER | Volver la mirada a Ninfa Santos

RIMA DE VALLBONA | Indicios matriarcales en las comunidades chorotegas

SOFÍA RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ | Homenaje a Max Rojas

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Tita do Rêgo Silva e o mundo fantástico, faceiro e colorido da xilogravura

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Agulha Revista de Cultura
Número 99 | Junho de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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4 comentários:

  1. Belo e profundo TEXTO, Kant mostra ao HOMEM sua visão de LIBERDADE e conhecimento PRÓPRIO, mas não sobre uma LIBERDADE qualquer........

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    1. Muito obrigada, Toninho!Fico muito feliz com a sua leitura e comentário.

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