Entra
em cena o eunuco Bidê Kalção seguido por três pastorinhas e preparam a mesa com
Salames Empédocles, chás de chávenas com chaves aladas e frutas sortidas caracterizadas
por seus atributos pambióticos. Tudo certo, ao que parece e pelo contar das cadeiras,
para o encontro entre dois convidados até o momento desconhecidos. Ao centro da
mesa duas pequenas caixas de papelão, branquinhas, se agitam como se o conteúdo
de cada uma delas estivesse por um fio para vir a baile. Decerto haverá mesmo um
baile, e toda a dúvida quanto a isto se esvai ao darmos por conta dos vultos que
adentram o ambiente. E entram entrosando uma mesma risada, como se acabassem de
forjar um verbo com infinitas possibilidades de ação.
FM | Como o absurdo da existência pode requerer
uma ciência própria para contê-lo e desanuviá-lo? Faz sentido o homem queimar tantas
pestanas para dirimir suas dúvidas quanto ao que é ou deixa de ser?
ZS | Pros marxistas dos 50s, o absurdo da existência seria
resolvido com o materialismo dialético que se apoiava na ciência, à qual a filosofia
bolchevique dirigia e orientava, dando-lhe o sentido ético e social. E no plano
da vida prática, acabava com os conflitos de classe graças à Ditadura do Proletariado.
Despedida Metafísica, agora era só olhar pro Futuro onde se perfilava uma crescente
felicidade sob a direção do Partido, quando o Mundo inteiro, enfim convencido, abraçaria
o Comunismo para a liberação da Humanidade. Naturalmente, pra conduzir o Comunismo
internacional havia, após o falecimento precoce de Lênin, o Stalin. Começa a terrível
Segunda Guerra Mundial, e Stalin, em aliança com USA e Inglaterra, vence a Alemanha
Nazista e o Mussolini. No após-guerra o Stalin perfila-se como o Supremo Chefe ideológico,
militar, filosófico, moral do Mundo Comunista, ditando tudo, na Filosofia, nas Artes,
na plantação de hortaliças. Após uma euforia galopante que conquistou noventa por
cento das elites intelectuais e políticas da Europa, da China e América, meio inexplicavelmente,
afrouxaram-se alguns parafusos, e o Stalin morreu. Segue avante o Partidão, mas
vai batendo pino, cada vez mais forte, e acaba-se o sonho bolchevique com a queda
do muro de Berlin. Então agora estamos vivendo na maravilha da Globalização Iluminista,
com os Ricos cada vez mais ricos. E os pobres? Cada vez mais pobres, mas vão acabar
se acostumando… (ou morrendo… faz de conta qu'eu não disse nada). Os que estão nas
camadas remediadas se maravilham com os filmes de porrada, assassinatos, ficcionais
ou reais, garotas gostosonas, e um trepa-trepa na tevê, que fica no meio de anúncios
de automóveis e espanadores, e vem tudo embrulhado junto com o noticiário, pra ninguém
mais distinguir a realidade da ficção, porque a realidade virou uma ficção e a ficção
virou a realidade. Então, já não há mais necessidade de explicar o absurdo, porque
já estamos vivendo no absurdo, e todo o mundo está gostando.
FM | Esta foi a grande cartada, que deve durar
enquanto houver formas de financiamento da realidade. Governos mais astutos já distribuem
antidistônicos como se fossem vacinas e o cinema alia-se à televisão para ajudar
a deglutir melhor a ideia – já de todo natural – de que a verdade é um doping barato.
A satisfação do cliente importa na medida em que o mesmo não cause problemas com
a qualidade do produto que lhe é empurrado. Por toda parte rezam os cartazes que
a ilusão é o melhor de todos os sedativos para eventuais crises de consciência.
Não há mais peças de resistência, tudo é fast
food. A moral tornou-se insalubre. Portanto, o absurdo agora está em descobrir
um antídoto para os eufemismos e os prospectos de venda. Encurralados pela própria
toline, já não está passando da hora de desfazer as malas e desistir da viagem pelo
mundo irreconhecível?
ZS | O freguês deve aceitar logo o sanduiche que lhe é empurrado
ou acaba sendo mal visto pelos outros clientes, e deixará
ressentido o garçom. Nada melhor, afinal, de que a verdade venha em antidistônico
na seringa do remorso. Tome o seu antidistônico,
e jogue o remorso no lixo. Só os sadomasoquistas insistem em mascar o remorso. Afinal,
desmontado o circo do Céu e do Inferno, pra que serve o remorso? Só se for pra gozar
mais… Aliás… este é o segredo do sucesso
da Divina Comédia, do Dante…
FM | Zuca, gostaria de saber como foram teus
primeiros encontros com Dr. Faustroll.
ZS | Pois é, Doutor Faustroll me interessou de modo fulminante-instantâneo.
Porque eu jovem adolescente respeitava, mas sentia a visão científica e artística
da sociedade bem pensante como se fosse um saco insuportável, que eu deveria, no
entanto, aceitar como um óleo de rícino indispensável, pra não cair na baboseira
juvenil da turma
mais boa vida dos colegas de Pinóquio. Então, a aceitação da visão científica e
artística bem pensante, se adotada de uma maneira propositadamente exagerada –o
humor de segundo grau! –, foi pra mim a porta escapatória que descobri na Pataphysica
do Doutor Faustroll!…
FM | Como viste, mandei uma pergunta única,
quase seca, direta, porém ajustando a agulha de nossa conversa, onde o Norte deve
plantar bem o mirante de onde desfrutará a tecelagem do horizonte e os eflúvios
dos outros pontos cardeais. Até lembraria aqui outro célebre patafísico, Vicente
Huidobro, ao dizer que os quatro pontos cardeais são três: norte e sul.
ZS | Floriano, eu achei que foi justamente tua pergunta única
e direta a melhor possível, e reforçou minha ideia de um pasquim. Acho que devemos
cortar a parte ficção-teatro, e deixarmos só a parte do nosso Pasquim Nanico Louco… a ficção afrouxa a
parte-entrevista, porque os personagens não responsabilizam diretamente o autor
(sobretudo se forem dois autores… o-ro-rooo…) que sempre pode sair pela tangente
dizendo que o que diz o personagem não representa necessariamente o pensamento do
autor. Ou seja, a ficção é um sabão de Pilatos. As nossas entrevistas me parecem
ter muito maior impacto porque estamos então de trapezistas sem rede. Toda a recepção
que tive de nossos trabalhos sempre se interessava – exclusivamente – pela parte-entrevista.
Sugiro então passarmos da mesa volante ficcional do Dok. Kardoff pras entrevistas-piranhas
do Nanico Louco. Creio que devemos manter
um estilo-jornal dos bons tempos em que havia Sátira. Aliás, o Pasquim, de Millor e Jaguar, foi o último
pasquim, realmente autêntico. Mas como se especializou no feroz ataque ao Regime
Militar… quando este acabou… o Pasquim,
sem ter a quem morder… acabou.
BIDÊ KALÇÃO | Não cortem o teatro, não, não cortem. O
plano era apenas o de servir como introito ao diálogo entre vocês. Não esqueçam
que, assim como o Iluminismo é uma Baleia,
a Ficção é o Sabão de Pilatos. Deem calças
frouxas às pernas longas… Tomem conta da casa… Deixamos uns quitutes sobre a mesa
e um barril do melhor vinho da casa…
ZS | Muito grato, Bidê Kalção!… Jamais cortaremos o nosso
teatro. Vocês são uma trupe formidável, verdadeiros… Plek-Plek-Plek!!! (estalo os
dedos) Plek-Plek-Plek-Plek!!! Como é mesmo o nome daquele pássaro? Uutau?…
Pássaro-Lyra?… Não!!! que renasce… que renasce…
BIDÊ KALÇÃO |… da própria bosta?… é a… Hyena!…
ZS | A hyena não é pássaro, Bidê!… É um mamífero… mas não renasce da própria
bosta. A Hyena…
ZS | Exato, Bidê!… Mas só em
caso de emergência. Todavia, eu me referia ao pássaro!…
BIDÊ KALÇÃO | …o Condor?… Voando sobre o Titicaca e o Cocopateplek!…
ZS | Mais ou menos, Bidê… Mas
enfim vamos ficando por aí… Gratíssimo pelo magnífico introito. De qualquer modo,
em que pesem minhas ranzinzas de velho, nosso teatro é como… Plek-Plek-Plek…
FM | Pensei logo no cenzontle, o imitador-poliglota,
o pássaro dos mil cantos, que aqui nos caberia melhor. Até por evocação ao inesgotável
princípio de todas as coisas que aqui nos leva de volta aos campos magnéticos da
criação e da formação do caráter do criador. Também confesso, já na adolescência,
a minha atração por uma “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam
as exceções”, não necessariamente
a Patafísica, então por mim desconhecida, porém intuída, de algum modo, na rejeição
às formas e métodos com que o mundo ao meu redor se impunha. A memória hoje evidencia
o quanto a sátira – e sempre irmanada na anarquia e do absurdo – me foi um guia
revelador. Em meu caso, bem cedo se revelou
uma técnica que sigo utilizando, a do deslocamento, a retirada de um objeto ou de
um princípio, de seu ambiente natural, tratando de encaixá-lo em outro habitat,
a ver que reação produz.
ZS | Realmente, você intuiu a própria Patafísica. A Patafísica
é uma disfarçada sátira do mundo científico-moral burguês, feita em forma de apoio
a este mesmo mundo racional circunspecto. O perigo da sátira é que o artista tenha
um ideário pronto na cabeça, quando a sátira passa a ser um veículo de propaganda
virtual da ideologia do artista. Mas a sátira é por si mesma insubornável, e se
for forte, ela saberá enganar o próprio autor. Na Rússia, após implantada a arte
realista proletária, os artistas sérios deveriam se dedicar a uma arte devocional
extremada… com Stalin de fardão branco fumando cachimbo rodeado de crianças… e no
final do ciclo, o Brejnev, de fardão militar, no front, ao crepúsculo na floresta,
lendo um livro do Lênin… Enquanto isso, os caricaturistas, não tendo de fazer loas
ao Grande Chefe, nem ao Partido, se deliciavam em sátiras furiosas engraçadíssimas
contra os nazistas e o capitalismo, com toda a liberdade pra lascarem o malho nos
inimigos sem a menor cerimônia… e nos deixaram assim o melhor da Arte Bolchevique,
ao dar vazão a toda uma fúria libertária, sempre contra os inimigos de guerra, mas
certamente, inconscientemente (ou secretamente consciente), contra a própria ditadura
soviética. Os secretamente conscientes acabavam sendo flagrados e eram fuzilados
ou despachados pra Sibéria.
FM | Hitler roubou a cena da época, de tal modo
que, mesmo sendo o seu o menor saldo genocida, ficou na memória como sendo a mais
nefasta criatura que o mundo já produziu. Até mesmo a sátira teve a perna passada,
de modo que jabuticabas floriram num colossal tamarindeiro. A época toda foi de
uma artimanha impagável, com o Pai Goebbels distribuindo manuais de ilusionismo
por todo o Ocidente. Até hoje a nossa moeda de troca existencial tem as duas faces
iguais, o que facilita o comércio e dá plena circulação à hipocrisia. Em meio a
tudo isto, como ias apontando os teus lápis?
ZS | Participei ativamente da Guerra, desenhando batalhas
aéreas e navais, bombardeios, naufrágios, traiçoeiros submarinos… e curtindo os
anúncios da enfermeira Rhódis, que trazia os peitões na bandeja, entre os remédios
fortificantes para os soldados feridos. Havia também uma HQ do Capitão Terry na
guerra do Pacífico, onde por vezes aparecia a fatal Madame Tokyo, gostosíssima,
em seus colantes vestidos de seda, com ousado decote… ela cantava de voz rouca e falava pelo rádio com os pilotos americanos…
dizendo… “e tua esposa, bela e fascinante, sozinha na América?… em noites de
lua cheia?… e tu aqui, morrendo à toa, meu amor…”
FM | Uma delícia, a fala insultante de Madame
Tokyo. Enquanto eu crescia a guerra já havia desmontado seu curtume internacionalista
quase romântico – que tantos filmes deu ao mundo – e passara a dedicar-se à ocupação
estratégica de laboratórios químicos e galões de petróleo. As Graphic Novels se mudaram para o espaço sideral
e a comarca delirante dos super-heróis. Também o sexo perdeu sua vazante de sedução
reveladora e tornou-se o mais vulgar e dilacerador de todos os comércios. Madame
Tokyo hoje não assinaria contrato em nenhum escritório da pastelaria das diversões
eletrônicas.
ZS | Na linha erótica dos comics do entre-guerras, anteriores a Madame Tokyo, gosto muito da Betty
Boop, com um desenho magnífico, em contrastes de campos de preto-e-branco, recurso
aliás também utilizado pelo Gato Félix. A Betty e Félix têm grande semelhança física,
parecem irmãos… A manha inocentinha da Betty Boop me lançava em fúrias de volúpia,
na minha longínqua infância. Hoje acho que o Gato Félix sacou a técnica do contraste
preto-e-branco da Betty Boop, e me pergunto se não haveria um erotismo oculto?…
Todo gato é meio safado…
FM | Uma das grandes maravilhas de minha infância,
premiada com a chegada da TV no Brasil, foi justamente o Gato Félix, do qual voltarei
a falar. Atarraxando o assunto anterior, bem antes do Pai Goebbels, outra figura
tutelar, o apóstolo Paulo, intuiu que a Verdade só se realiza na Fé, de modo que
o fundamental não é a Verdade e sim a Fé. A sabedoria popular equacionou o assunto:
água mole em pedra dura tanto bate até que fura. Dois mil anos de fraude astuta
até que a arte adota a premissa de que a mesma, para ser crível, necessita se basear
em fatos reais. A nova Verdade abomina a imaginação. Indistintamente igrejas, farmácias
e agências de viagem são notórias lavanderias de dinheiro, assim como agências de
modelo e cursos de dramatização se especializaram no negócio camuflado de pedofilias
e prostituições. A analogia entre Verdade e Fé cria um afluente no binômio Crime
e Fachada.
ZS | Questão de fé demais ou fede menos. É preciso a Verdade
pra arrolhar a Imaginação. As bruxas fedem demais, vão pra fogueira. O arrependido
será lavado com sabão
Araxá (mas sem a estampa das Três Gordas)
e logo… axará a Fé no Mercado Global. Todos os sexos são iguais perante a
Lei, o primeiro, o segundo e o terceiro. O quarto e o quinto ainda estão sendo examinados
pelas autoridades competentes civis, militares e religiosas.
FM | São sexos jovens, inscritos
no provão do Ministério dos Tamancos Aguados. Curioso como os corpos celestes definham
submissos aos caprichos do Tempo & Espaço, a dupla sibilina do Araxá. Pracabá
com isso somente os comícios da Fé. A inquilina suspeita nas feiras de inutilidade
pública. A freira pornográfica. A cafetina assexuada. Quem chegou ao episódio 69
de Felix the Cat descobriu que só a loucura
contabilizará ganhos dentro e fora dos tabuleiros. Mas Zuca, chegaste a jogar xadrez
com o Dr. Faustroll?
ZS | Sim, joguei xadrez
com Doutor Fautroll que guardou seu Rei no bolso, e me disse: "Pois é, Zuca,
fora do tabuleiro, meu Rei não poderá sofrer cheque mate”.
O tabuleiro
se fecha automaticamente. Os peões, sempre desprevenidos, escorrem pelas brechas.
Não fossem os cavalos do Rei as torres teriam desabado sobre os bispos. Ainda era
possível ouvir a Rainha solfejando a ária final de Manon Lescaut. Também a plateia, boquiaberta, escorria pelo
ralo. Quando a cortina cai, o cenário se mostra um deserto. Como a memória. Abandonada
por todos.
*****
Os poetas ZUCA SARDAN e FLORIANO MARTINS escreveram a quatro mãos e publicaram os seguintes livros: O iluminismo é uma baleia (2016) e Farelos do Mytho – teatro de farsas (2017). Em 2018 a Sol Negro
Edições publicará Teatro automático.
Página ilustrada com obras de Paulo Aguinsky (Brasil), artista convidado desta
edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de 2017
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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