segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

PRISCA AGUSTONI [sobre] Murilo Mendes



A poeta, crítica literária e editora Mia Lecomte dirige, em Roma, uma coleção de poesia da Zone Editrice, dedicada aos autores da “migração”, isto é, autores não italianos que moram/ moraram na Itália e que passaram a se expressar poeticamente no idioma daquele país. É significativo, a esse respeito, que a coleção tenha sido inaugurada com a obra de um poeta brasileiro pouco conhecido no Brasil, o pernambucano Heleno Oliveira, que morou em Florença de 1983 a 1995. Em agosto de1995, numa viagem a Lisboa, Heleno morre improvisamente, deixando parte da sua obra poética inédita. A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen se interessou pela obra de Heleno Oliveira e, após a sua morte, publicou, pela editora Caminho, uma escolha de seus poemas, na antologia As sombras de Olinda (1997). A edição italiana publicada em 2003 (Se fosse vera la notte) reúne uma série de poemas que o autor pernambucano escreveu diretamente em italiano durante os anos da sua vida na Itália.
O segundo volume dessa coleção chamada “Cidadãos da poesia” também está dedicado a um autor brasileiro, o juizforano Murilo Mendes, que morou por dezoito anos em Roma, lecionando Literatura Brasileira na Universidade da capital italiana, onde escreveu, em 1968, os poemas que compõem o livro Ipotesi (prefácio de Luciana Stegagno Picchio, introdução de Nullo Minissi, posfácio de Mia Lecomte. Zone Editrice. Roma, 2004). Esta obra ganhou uma primeira edição (póstuma) na Itália em 1977, pela Editora Guanda, sob os cuidados da crítica Luciana Stegagno Picchio. Por isso, a recente reedição do livro, pela Zone Editrice, é um acontecimento significativo, consolidando a valorização desse autor no país que o acolheu em idade madura. Trata-se da confirmação da reconhecida marca deixada por Murilo Mendes não só no âmbito da literatura brasileira do século XX, mas agora também em escalas maiores que são a cultura e a sociedade de um século XX atravessado por migrações, exílios, cidades multiétnicas e plurilinguísticas.
Dentro desse cenário de culturas em transição, de poéticas deslocadas do próprio ponto de origem, muitas vezes deslocadas da fonte primária de criação que é a língua materna, surgem vozes poéticas que são, ao mesmo tempo, “contaminadas pelo” e “agentes contaminantes do” cânone literário estabelecido, como é o caso da literatura italiana, caracterizada por uma excelente produção poética dialetal e, ao mesmo tempo, enriquecida (e ameaçada) por uma crescente produção italiana de autores da “migração”. Como indica a editora Mia Lecomte no posfácio ao livro, é nesse contexto que se inscreve a importância dessa nova edição italiana da obra de Murilo Mendes, um autor que reivindicou a “cidadania poética”, isto é, um lugar poético, portanto abstrato, onde pudessem desembocar todos aqueles que estivessem vivendo em estado de errância, seja ela histórica, existencial ou linguística.





 O livro foi lançado inicialmente na Embaixada Brasileira, em Roma, no final de setembro desse ano, reunindo poetas italianos contemporâneos e amigos e conhecidos de Murilo Mendes da época da sua estadia nesta cidade. Em outubro, a obra foi apresentada em Juiz de Fora, cidade natal do poeta, no Centro de Estudos Murilo Mendes, contando com a presença da poeta e editora Mia Lecomte, numa noite de homenagem à fase italiana do poeta mineiro.
No belo prefácio à redição de Ipotesi, Luciana Stegagno Picchio escreve sobre a obra de Murilo com a lucidez de quem reconhece na sua poesia concisa e precisa, o leve esboçar-se do sorriso interior de astúcia e desconfiança, reconhecimento que é marca indelével de uma proximidade afetiva que, ao invés de prejudicar o minucioso escrutínio crítico, pôde enriquecê-lo ao longo dos anos. Ela comenta que Murilo Mendes sempre foi muito sensível à paisagem humana e escolhia os amigos por uma espécie de afinidade que perpassava a dimensão da história. No entanto, ela ressalta que o poeta brasileiro estava atravessado por angústias plurais, entre elas, a angústia histórica de viver longe de um Brasil que, aos seus olhos, se engrandecia miticamente, inclusive naquilo que lhe parecia errado. E essa transformação quase mítica da origem é um dos elementos mais peculiares da experiência do exílio, embora no caso de Murilo Mendes não se trate propriamente de um exílio político, e sim de um afastamento voluntário que resultou num efetivo “exílio linguístico”.
Como escreve Mia Lecomte no posfácio, “a migração, voluntária ou necessária, comporta um longo percurso atravessando todos os sentidos de uma língua, e em alguns casos expatriar-se é exatamente o meio pelo qual visitar todos os aspectos da língua e da própria existência”. Essa indagação linguística e existencial perpassa o livro Ipotesi, já que Murilo Mendes vivia suas noites romanas com o medo de não ter o domínio total sobre a língua italiana, de acordo com as lembranças de Luciana Stegagno Picchio, que disse ter se tornado, naquelas tardes de Roma da década de 60, uma habituée das ligações telefônicas do poeta e amigo brasileiro, que queria esclarecer alguma duvida terrível sobre as duplas italianas ou seus acentos.
Através de uma cartografia sentimental, mapeada por cidades e referências a artistas europeus, Murilo Mendes dá pistas, nesse livro, para que possamos ver o Murilo que se vestiu da língua italiana para expressar a angústia existencial perante um mundo que ele não conseguia abarcar totalmente com as palavras – é bom lembrar que Ipotesi foi escrito em 1968, quando a Europa estava atravessada pela agitação estudantil, enquanto a ditadura no Brasil se tornava mais obscura e sangrenta. Através da sua poesia, é possível reconhecer alguns dos nomes que fizeram a história da literatura italiana do século XX. No entanto, como bem escreve Nullo Minissi na introdução ao livro, seria arriscado comparar a obra de Murilo Mendes com a do amigo, tradutor e poeta Giuseppe Ungaretti, embora os dois tenham vivido um percurso parecido, já que o próprio Ungaretti morou entre 1936 e 1942 no Brasil, lecionando Literatura Italiana na Universidade de São Paulo.
Em realidade, uma vez em Roma Murilo aproximou-se primeiro das artes plásticas, por uma afinidade estética que cultivava desde a juventude, ainda no Brasil, quando se tornou amigo do pintor Ismael Nery. Com o passar do tempo, o mesmo olhar poético atento para a plasticidade da pintura foi forjando uma poética em língua italiana cujo gosto pela abstração das imagens e pela tendência ao epigrama o conectou estreitamente com a poesia italiana produzida naquela época, mais especificamente com os autores da chamada “linha lombarda” (cujas características podem ser resumidas em uma tendência epigramática e irônica, na propensão para a análise da condição do homem contemporâneo, numa poética em que o “mal de viver” delineia-se como o incômodo de se viver na sociedade de hoje). Integravam essa “linha estética lombarda”, entre outros, autores como Vittorio Sereni e Eugenio Montale.
No entanto, muito mais do que isso, a angústia que atravessava o poeta em Roma tinha uma origem ontológica, pois levantava questões fundamentais sobre a natureza da vida e, principalmente, da morte: “a morte será oval ou quadrada?”, pergunta-se Murilo no poema Ipotesi. E a resposta é inquietante, se vem da caneta do poeta que “queria ser dono do sistema” que é a língua, conforme explica Stegagno Picchio no Prefácio : “A morte oval ou quadrada / nunca será escrita”(poema Ipotesi). Embora Murilo Mendes não tenha escrito esse livro pensando num diálogo com os seus contemporâneos italianos, já que ele sempre dialogou com a Literatura Brasileira, mesmo desde o “exílio romano”, é possível estabelecer alguns paralelismos “geracionais” entre ele e a poética de Eugenio Montale, autor com o qual nunca teve uma proximidade poética ou afetiva marcante. No entanto, a poética montaliana se aproxima da visão de mundo de Murilo Mendes no que diz respeito è concepção de uma poesia que – como recita Montale, na antologia publicada no Brasil em 1997 pela Editora Record, com traduções de Geraldo H. Cavalcante – quer captar “o falcão que mergulha / como um raio na canícula”, “a terra onde não anoitece” ou, ainda, “a pequena torção de uma alavanca que paralisa a máquina universal”, ou voltando a Murilo, “o mal que nunca fizemos [e que] nos espeta às vezes/ mais do que um remorso obtuso”(poema Epigramma), ou seja, o mal-estar do ser humano vivendo numa sociedade traumatizada: a Europa do pós-guerra e o Brasil da ditadura militar.
Essa semelhança entre as duas poéticas não é estilística, nem sequer temática, mas se define pela maneira como os dois colocam o eu poético diante das inquietações mais profundas do ser humano, Montale descortinando um mundo sem ilusão, e Murilo tentando reinventar um mundo no qual, afirma poeticamente em Proposta, “instalamos / em cada rua / relógios coloridos/ com ponteiros que indiquem / horas diferentes. // O homem será/ retirado do tempo/ cada um escolherá sua hora pessoal / livre invenção/ acelerando a contagem às avessas da história/ e a desagregação do sistema”. É exatamente a procura dessa “desagregação do sistema” que põe Montale e Murilo na mesma trilha poética.
A ironia e a leveza que atravessam o livro Ipotesi estão também, em parte, nos últimos livros de Montale, sejam eles Satura e diário de 71/72. Nessas obras o poeta ameniza a angústia com lances irônicos e humorísticos, mas sem renegar a peculiar visão desiludida e crua da realidade. Nesse sentido, é interessante observarmos que se, por um lado, os dois autores não mantiveram nenhum tipo de relação pessoal, por outro lado eles parecem se encontrar – novamente e casualmente – na homenagem ao poeta Camillo Sbarbaro, o grande poeta italiano da “resignação desesperada”, cuja poesia anti-eloquente marcou, durante as primeiras décadas do século XX, uma virada fundamental na lírica italiana. Montale presta sua homenagem no livro Ossi di seppia (Ossos de siba), enquanto Murilo escreve um poema comovido, na seção titulada Omaggi, para o poeta que “observava o crescer dos liquens / os rabiscos abstratos das nuvens / a guerrilha entre vogal e consoante / entre vírgula e ponto exclamativo” (Camillo Sbarbaro). Através dessa homenagem percebemos a aparição, quase invisível, da figura do “outro Murilo”, o italiano, que também vivia em estado de “guerrilha” entre as vogais, as consoantes, os acentos imprevistos, as duplas maliciosas da língua italiana. E parece que ele saiu inteiro dessa guerra, na qual não há vencedores nem derrotados e, sim, uma poética que soube fortalecer-se com o passar do tempo. Prova disso é que agora nos chega essa reedição, em 2004, quase trinta anos após a morte de Murilo, uma obra na qual, como recita Max Martins, desde Belém, homenageando Murilo Mendes no seu livro O Risco Subscrito, “o poeta se refaz / se lavradiz/ o verso se desfaz / se movediz / a palavra se desdiz / ver-diz/ reverdece Roma”. E junto com Roma, reverdece essa poesia, brasileira na Itália, e um pouco italiana aqui no Brasil.


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Prisca Agustoni (Suíça, 1975). Poeta, ensaísta e tradutora. Autora de livros como Sorelle di fieno (2002) e Días emigrantes (2004). Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
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