Em geral, o Brasil não tem sido muito generoso com poetas que estão à margem
de certo cânone para leigos. De uma antologia escolar. O mesmo que seleciona repertório
para manuais didáticos. Ou o que separa o assunto das teses acadêmicas em departamentos
menos engajados com pesquisa. E se pensarmos no modernismo, por exemplo, isso soa
pontual.
Drummond, Cabral, Bandeira – e, mais recentemente, Murilo
Mendes – têm sido as pedras da vez. E se tem tocado muito nelas. E elas se têm prestado
a vários jogos – e umas poucas partidas de horas extraordinárias. Mas também a algum
desgaste por recorrente repetição de jogadas. Aquele desgaste que o excessivo toque
da mão provoca nas pedras de damas.
O certo é que houve um envolvimento fatal com esse núcleo
mínimo, até o ponto em que nos desacostumamos a olhar para outros lances em curiosidade.
E, então, algumas leituras caducaram por má repetição de comentário. Nesse sentido,
o caso de Cabral e sua poética da pedra é emblemático. Hoje em dia, um gasto exemplo
de vulgarização. Um clichê escolar. Quer dizer, não a força da imagem em si, mas
a maneira como foi relida à exaustão, até ser acomodada ou amortecida. Atraída para
uma inofensiva domesticidade.
Mas fato é também que, a partir dessa redução, desse
olhar em linha reta, quase se desconhece por completo a obra dos demais poetas modernistas.
E, claro, em algumas delas se pode surpreender um empenho formal tão lapidar quanto
o dos selecionados para essa espécie de excesso de jogo.
Autores como Rui Ribeiro Couto ou Dante Milano, por
exemplo, têm sido votados a um empedernido ostracismo. Ou, no mínimo, sub-investigados
em prol dessa visada linear. E, dentre esses, há Joaquim Cardozo, que é mais conhecido
como o amigo erudito de João Cabral. Ou então, como o engenheiro de cálculos, que
traduziu para o concreto, mediante justas equações, a sensual sinuosidade dos palácios
de Niemeyer.
Em 1997, o centenário de nascimento desse importante
poeta, morto em 1978, passou praticamente em brancas nuvens. Não houve qualquer
gesto mais largo de aprofundamento, pesquisa, divulgação. Ou mesmo de simples homenagem
– à parte ser lembrado, em avulso, por um ou outro suplemento literário país afora.
Não houve reedições críticas de suas obras. E hoje seus livros só são encontráveis
nas prateleiras dos sebos e disputados, com acrimônia, por colecionadores bem informados.
E há muito a lamentar nesse esquecimento, pois Cardozo
possui um lirismo justo, pensamenteado, capaz de surpreender pelo que nele há de
invenção sob a veste do tradicional. E, em especial, exigente o bastante para variar
só em sinceridade – e o quanto há de perícia neste só. “Enganadora simplicidade”
em “balanços rítmicos tradicionais”, é como Drummond se refere a essa perícia de
Cardozo para expressar-se por antigas fórmulas fixas. Para renová-las em alto grau
mediante procedimentos mínimos.
O modernismo de Cardozo é a verdade. Uma instância consequente
por oposição a rótulos de ocasião ou modas descartáveis. A verdade em vez da vanguarda.
Uma busca pela coerência que, inclusive, o fará publicar seu primeiro livro, Poemas
(1947), tão-só aos cinquenta anos. Ou no dizer de Drummond, “um aparelho severo
de pudor, timidez e autocrítica salvou-o das demasias próprias de todo período de
renovação literária”. Um lirismo que se quer um tanto distanciado da concepção lírica
convencionalmente barroca da tradição brasileira. Mas que não a nega. Senão a desloca.
Numa primeira leitura, quase nada desse jogo é aparente. Sua poesia soa mesmo bastante
tradicional e até pré-moderna. Simples não quer dizer fácil. Quase nunca quer. E,
assim, seus olhos cortam fundo, e bem mais esteados no pensamento do que se pode
supor em pressa. E convoca os olhos do leitor a fazer o mesmo: assumir esse olhar
solar – mas também elegíaco, que parece abraçar a paisagem da Zona da Mata, onde
Cardozo viveu quando jovem e se deslocou por, como engenheiro de campo.
Chuvas e ventos, estios e luzes, sombras e árvores,
praias e rios, Recife e pequenas vilas pesqueiras, Mosteiros de Olinda e mocambos
de Tramataia, velhas alvarengas e mulheres com nomes simples e plásticos, gamboas
e várzeas, corais e correntezas – um inequívoco senso de veraneio, ar livre – repõem,
no entanto, um Nordeste impressivamente complexo, histórico, digno: relíquia de
velhas chuvas. Um Nordeste inventariado para a alma. Uma “terra crescida, plantada/
de muita recordação”.
Um sentimento apurado, quase metereológico da paisagem
é composto por uma límpida modelagem de palavras, chegando – como quase tudo em
Cardozo – a criar galerias ou uma série de vãos subterrâneos. É por esses túneis
que se pode adivinhar uma sorte de passagem comum, através da qual se dá o enredo,
a correspondência de toda uma realidade mais estranha e extrema do que a que estamos
habituados a ver em superfície: "as coisas se estão reunindo/ por detrás da
realidade”. Uma mina em que se relacionam os elementos mínimos desse lirismo da
contenção. Um raro inventário de dados concretos. E Cardozo sabe avalizar esse inventário
como ninguém. Em profundidade quase mística. Trata-o com intimidade e cromatismos.
“Visões de alto poder plástico” é como Drummond refere-se a essa exuberância visual
dos poemas cardozianos.
Mas para todos os efeitos, esse Cardozo de que falamos
é o de seus dois primeiros livros, Poemas e Signo Estrelado bem como
o d’O Coronel de Macambira – que estranhamente não se faz presente na edição
de sua poesia completa.
Propor Cardozo como leitura é propor integridade e alternativa.
Especialmente num momento em que jovens poetas brasileiros escrevem excessivamente
próximos uns dos outros e de um certo registro de ocasião. Decalcando-se. Fundindo-se
mais do que diferençando-se. Reverenciando uma vanguarda suspeita. Algo que assoma
mesmo como uma modalidade de neoparnasianismo.
Há algum entusiasmo em torno de um Paul Celan ou de
um Francis Ponge recém-descobertos em tardividade. Mas a bossa do momento são apressadas
releituras de Creeley, Palmer e de poetas experimentalistas americanos ligados ao
grupo L=A=N=G=U=A=G=E e depois, quase sempre coercivamente monitoradas. Uma produção
que escoa predominantemente por quatro editoras: Sette Letras (Rio); Ateliê Editorial
e, mais atenuadamente, Iluminuras e 34 Letras (São Paulo). Além de pelas revistas
Cult, Sibila (São Paulo) e, em menor grau, Inimigo Rumor (Rio).
Editoras e periódicos que, de resto, têm exercido um papel seminal na divulgação
de novas tendências em poesia. Mas que, de outro modo, também têm se prestado à
divulgação dessa bossa em que há mais diluição festiva relacionada a um fenômeno
de moda – como à sua vez a poesia marginal era a contraleitura nacional rala e tardia
para os beats – que pesquisa empenhada ou real entendimento das somas. E
há uma excessiva e condescendente necessidade de se dissociar do modernismo brasileiro
– à exceção de Cabral, Murilo e, menos estavelmente, Drummond – quando a maioria
sequer teve informação suficiente para saber fazer diferente desse modernismo. De
suas amplitudes, ressonâncias. Das alternativas, para além desse excesso de jogo
que fixou os nomes dos que são lidos em recorrência. Eis um resumo do agora.
Mas, como diz, em lucidez, um dos mais filosóficos poetas
do século passado, o norte-americano George Oppen (1908-1984), “é equívoco pensar
que poetas contemporâneos são os principais vetores na consolidação da obra de um
jovem poeta. Isso quase sempre não é verdade”.
Dentro desse panorama, autores como Couto, Milano e
Cardozo, poderiam contribuir para diversidade e enriquecimento de soluções. Especialmente
no impulso de implodir com essa uniformização de momento. Também marcado pelo excesso
de belo-marketing e autopromoção. E tudo isso em prejuízo do que realmente importa:
pesquisa, expressão com real marca de dígitos. Vestígio de mão humana pairando sobre
objetos. Uma artesania ameaçada.
A verdade em vez da vanguarda.
RUY VASCONCELOS (Brasil). Poeta, ensaísta e tradutor.
Página ilustrada com obras de Vicente do Rego Monteiro (Brasil), artista convidado
desta edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 106 | Janeiro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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