quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE C. RONALD



[COMO DEDOS ENFIADOS NO PÂNTANO]

como dedos enfiados no pântano
que diga agora:
só houve a perda do remorso
mas ele não dirá nunca
pois o centro da alma o sufoca

fantoche num santuário
de pureza saliente
mesmo havendo ali nudez refletida
e pelo ângulo de uma gaivota
em queda passarão as avenidas do mar
o lusco-fusco e as buzinas à noite
que vem introduzir uma eternidade
diferente ou uma melancolia
vítrea de domingo

então estou contente e reconciliado
os demais que refaçam o tempo
tirando os óculos da frente
dos bustos ilustres que torcem pela
morte que é o cair em si mesmos


[SUAS CONFISSÕES E SEUS SAPATOS]

suas confissões e seus sapatos
depois a especulação cruel dos déspotas
vai fazer um buraco na sua carne
BANG
o corpo cai sentado
              oremus no trono papal ou
no aniversário anônimo
entre a nebulosa partida e o anguloso peso
que está no centro
                  consideração biológica
de um grande quisto atômico
nessa mão que escreve por cima
                     da realidade

e depois nossos santos desejos
passam por baixo da beleza
a andorinha eclode no rumo constante
da emoção não aumenta nunca o voo
nessa parte distante
                       que a movimenta


[AGORA CANTA O GALO POIS NUNCA CANTOU]

agora canta o galo pois nunca cantou
sucesso e fama não só produzem efêmeros
a novidade amontoada assim é
mas não dá origem a qualquer vingança

não a nossa
mas a entendíamos por
baixo da máscara
representando algo de novo
como Hamlet representava
um louco diante de Ofélia

e um tlac da altura
atingida ontem e assim quebrada a técnica
já é som bastante para o que sabemos
indo até o fundo para começar hoje
um Shakespeare brincando de boneca


[O PESO DE BUDA]

o peso de Buda
é a sua idade
estás atenta eu sei
terra úmida faz toda uma ciência
e um aposento de seda abala
a atmosfera
toda rosa deveria trazer
uma inscrição de bronze
debaixo da pétala
urgência na palavra coletiva
e nominais os abraços
terra limpa não marca
fiat confuso
flux concreto
encaminhando-me para a
loja vocalmente traduzível:
pela elegância próspera
o dever abstrato
o dever procura pungente
o desenvolvimento
da paixão oculta


[MEXES NA MEDIDA MAS O QUE É]

mexes na medida mas o que é
ideia não diminui nem aumenta

o provedor da raça desenterrado no voo
atrasa a quietude que o tudo deveria ter

14-bis ergue-se da própria fumaça

há razões impossíveis de se entender
e o falso por si é de natural previsão
para espectadores distraídos

qualidade de projeção? besteira
a suposta lembrança de um buraco

e o buraco não é coisa
a se embalar como filhote de animal
nós lhe acrescentamos vontade
mas nunca o conteúdo do final


[TAMBÉM UM RECADO]

também um recado
deixado sobre  mesa: “vou pra sempre”
a quem comoveu pelos meses seguintes
noite de idioma fechado
a largura da ideia (se tem largura)
mas o paraíso desconhecido
de início não é paraíso
se a mistura de catástrofe e esperança
despeja no saguão atravessado de manhã
a confiança
e o que poderá vir
por cima da divindade

do pinheiro ao invés da pinha tiram
o tronco
senhorita o conselho é perdurável
se bem medidas as consequências
da vingança
a exumação do tempo
que não se dá
pois só o prazer dificulta a tristeza
de toda a razão ingênua


[ESTA SEMANA CONTRA A OUTRA]

esta semana contra a outra
disse gritando e não era só anúncio
da inquietude nem ascensão monstruosa
de absurdos mas duvidavam os habitantes

a Pátria sangra

uma caminhada até a nossa praça quando
esses grupelhos sobem das cisternas
os pássaros já perdidos nas árvores evaporam-se

disse gritando: É A GUERRA

e há o que dilata o musgo com
tamanha intensidade que a nossa existência
escurece cobre de preto as casas
com seus grandes furos nas paredes
é a hora em que o labirinto cria portas
tiros ecoam tornam-se urbanos
os animais que não viraram homens aparecem
volta tudo a ser selva
é quando cai o pacato burguês com seu
pacote de compras
então é a droga é a ignorância mãe da
nossa História e ele somente a bola da vez


[E DIZER QUE A CATEDRAL NÃO PODE]

e dizer que a catedral não pode
gotejar pois vejo santos escorrendo
preces de puro linho umedecidas nos altares vê
o gótico transborda
se fica fora o ponto final da beleza
multiplicado ontem na tempestade
sutura todas as goteiras que rodeiam as colunas
(a catedral é vetusta)
desde o zimbório e ele não mais cairá
goteja a fé
ali entra a louca e reza pensando estar
na própria fábrica alucinada de ideias
expande terrível expressão: não é
uma Nossa Senhora não traz a culpa
dos demônios e sensorialmente
inclui nos olhos as cores dos vitrais
e tu náufrago na água benta
olhas os cisnes no batistério passando em branco
também os fiéis desaparecem
prazer do bronze pela pátina refrescante
na inclinada cabeça de Cristo sorridente
(já viste Cristo sorridente?)
meu ser mais ofendido fica ali por nada
se pudesse ser menos infantil que um fantasma


[DO CIRCUNLÓQUIO À RAZÃO MAIS REMOTA]

do circunlóquio à razão mais remota
o século encolhe
entras e remexes tudo
do unicórnio sem vontade
em réplica transcendente como dizer:
o mito esconde-se e nascem dele os
campos onde o sexo pasta
o silêncio da pata não é o mesmo da cabeça
toda mistura é sonhadora
impossível dar tamanho à eternidade
ela também nasce e morre
difícil é ser perfeito
precisar ficar quieto não fazer nada
isto também é chegar ao erro
o que as margens suplicam da água em torno
não é um rio fechado em si mesmo
nem há emoção imprópria nem escuro
que acabe com o medo
tampouco o júbilo flui ao abrirem as torneiras
elétrico jamais me ilumino
apenas sinto a tensão do espírito
presumo vagarosamente e só
pois há expressão que me torna alguém
sem ser visto


[JÁ ENTRE CÉLEBRE NO ROMANCE]

já entre célebre no romance
não obstante o molde é daquela noite
sem som humano mas é possível
sussurro de lua entre um sonho e outro

está em data atrasada o amor perplexo
e a inteligência está junta e toda
a cidade vista de cima é só um nó
iluminado e quieto e não falta gente

sabes que
uníssonos sentimentos
pervertem as variantes
então destaca o remorso dos demais perigos
o terror é sempre diferente
num pátio antigo
a maldade um adorno para o medo
o sentido não perde largura
ao parecer-se infinito


*****

C. RONALD (Florianópolis, 1935). Colaborador do extinto suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo e outros órgãos da imprensa nacional. Tem muitos livros publicados e raríssimos leitores. Vive retirado do convívio social. Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.


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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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