[COMO DEDOS ENFIADOS NO
PÂNTANO]
que diga agora:
só houve a perda do remorso
mas ele não dirá nunca
pois o centro da alma o
sufoca
fantoche num santuário
de pureza saliente
mesmo havendo ali nudez
refletida
e pelo ângulo de uma
gaivota
em queda passarão as
avenidas do mar
o lusco-fusco e as buzinas
à noite
que vem introduzir uma
eternidade
diferente ou uma melancolia
vítrea de domingo
então estou contente e
reconciliado
os demais que refaçam o
tempo
tirando os óculos da frente
dos bustos ilustres que
torcem pela
morte que é o cair em si
mesmos
[SUAS CONFISSÕES E SEUS
SAPATOS]
suas confissões e seus
sapatos
depois a especulação cruel
dos déspotas
vai fazer um buraco na sua
carne
BANG
o corpo cai sentado
oremus no trono papal ou
no aniversário anônimo
entre a nebulosa partida e
o anguloso peso
que está no centro
consideração biológica
de um grande quisto atômico
nessa mão que escreve por
cima
da realidade
e depois nossos santos
desejos
passam por baixo da beleza
a andorinha eclode no rumo
constante
da emoção não aumenta nunca
o voo
nessa parte distante
que a movimenta
[AGORA CANTA O GALO POIS NUNCA
CANTOU]
agora canta o galo pois
nunca cantou
sucesso e fama não só
produzem efêmeros
a novidade amontoada assim
é
mas não dá origem a
qualquer vingança
não a nossa
mas a entendíamos por
baixo da máscara
representando algo de novo
como Hamlet representava
um louco diante de Ofélia
e um tlac da altura
atingida ontem e assim
quebrada a técnica
já é som bastante para o
que sabemos
indo até o fundo para
começar hoje
um Shakespeare brincando de
boneca
[O PESO DE BUDA]
o peso de Buda
é a sua idade
estás atenta eu sei
terra úmida faz toda uma
ciência
e um aposento de seda abala
a atmosfera
toda rosa deveria trazer
uma inscrição de bronze
debaixo da pétala
urgência na palavra
coletiva
e nominais os abraços
terra limpa não marca
fiat confuso
flux concreto
encaminhando-me para a
loja vocalmente traduzível:
pela elegância próspera
o dever abstrato
o dever procura pungente
o desenvolvimento
da paixão oculta
[MEXES NA MEDIDA MAS O QUE É]
mexes na medida mas o que é
ideia não diminui nem
aumenta
o provedor da raça
desenterrado no voo
atrasa a quietude que o
tudo deveria ter
14-bis ergue-se da própria fumaça
há razões impossíveis de se
entender
e o falso por si é de
natural previsão
para espectadores
distraídos
qualidade de projeção?
besteira
a suposta lembrança de um
buraco
e o buraco não é coisa
a se embalar como filhote
de animal
nós lhe acrescentamos
vontade
mas nunca o conteúdo do
final
[TAMBÉM UM RECADO]
também um recado
deixado sobre mesa: “vou pra sempre”
a quem comoveu pelos meses
seguintes
noite de idioma fechado
a largura da ideia (se tem
largura)
mas o paraíso desconhecido
de início não é paraíso
se a mistura de catástrofe
e esperança
despeja no saguão
atravessado de manhã
a confiança
e o que poderá vir
por cima da divindade
do pinheiro ao invés da
pinha tiram
o tronco
senhorita o conselho é
perdurável
se bem medidas as
consequências
da vingança
a exumação do tempo
que não se dá
pois só o prazer dificulta
a tristeza
de toda a razão ingênua
[ESTA SEMANA CONTRA A OUTRA]
esta semana contra a outra
disse gritando e não era só
anúncio
da inquietude nem ascensão
monstruosa
de absurdos mas duvidavam
os habitantes
a Pátria sangra
uma caminhada até a nossa
praça quando
esses grupelhos sobem das
cisternas
os pássaros já perdidos nas
árvores evaporam-se
disse gritando: É A GUERRA
e há o que dilata o musgo
com
tamanha intensidade que a
nossa existência
escurece cobre de preto as
casas
com seus grandes furos nas
paredes
é a hora em que o labirinto
cria portas
tiros ecoam tornam-se
urbanos
os animais que não viraram
homens aparecem
volta tudo a ser selva
é quando cai o pacato
burguês com seu
pacote de compras
então é a droga é a
ignorância mãe da
nossa História e ele
somente a bola da vez
[E DIZER QUE A CATEDRAL NÃO
PODE]
e dizer que a catedral não
pode
gotejar pois vejo santos
escorrendo
preces de puro linho umedecidas
nos altares vê
o gótico transborda
se fica fora o ponto final
da beleza
multiplicado ontem na
tempestade
sutura todas as goteiras
que rodeiam as colunas
(a catedral é vetusta)
desde o zimbório e ele não
mais cairá
goteja a fé
ali entra a louca e reza
pensando estar
na própria fábrica
alucinada de ideias
expande terrível expressão:
não é
uma Nossa Senhora não traz
a culpa
dos demônios e
sensorialmente
inclui nos olhos as cores
dos vitrais
e tu náufrago na água benta
olhas os cisnes no
batistério passando em branco
também os fiéis desaparecem
prazer do bronze pela
pátina refrescante
na inclinada cabeça de
Cristo sorridente
(já viste Cristo
sorridente?)
meu ser mais ofendido fica
ali por nada
se pudesse ser menos
infantil que um fantasma
[DO CIRCUNLÓQUIO À RAZÃO MAIS
REMOTA]
do circunlóquio à razão
mais remota
o século encolhe
entras e remexes tudo
do unicórnio sem vontade
em réplica transcendente
como dizer:
o mito esconde-se e nascem
dele os
campos onde o sexo pasta
o silêncio da pata não é o
mesmo da cabeça
toda mistura é sonhadora
impossível dar tamanho à
eternidade
ela também nasce e morre
difícil é ser perfeito
precisar ficar quieto não
fazer nada
isto também é chegar ao
erro
o que as margens suplicam
da água em torno
não é um rio fechado em si
mesmo
nem há emoção imprópria nem
escuro
que acabe com o medo
tampouco o júbilo flui ao
abrirem as torneiras
elétrico jamais me ilumino
apenas sinto a tensão do
espírito
presumo vagarosamente e só
pois há expressão que me
torna alguém
sem ser visto
[JÁ ENTRE CÉLEBRE NO ROMANCE]
já entre célebre no romance
não obstante o molde é
daquela noite
sem som humano mas é
possível
sussurro de lua entre um
sonho e outro
está em data atrasada o
amor perplexo
e a inteligência está junta
e toda
a cidade vista de cima é só
um nó
iluminado e quieto e não
falta gente
sabes que
uníssonos sentimentos
pervertem as variantes
então destaca o remorso dos
demais perigos
o terror é sempre diferente
num pátio antigo
a maldade um adorno para o
medo
o sentido não perde largura
ao parecer-se infinito
*****
C. RONALD (Florianópolis, 1935). Colaborador do
extinto suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo e outros órgãos da
imprensa nacional. Tem muitos livros publicados e raríssimos leitores. Vive
retirado do convívio social. Página ilustrada com obras de Jasmine
Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
113 | Maio de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN
VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE
MORAES
os
artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os
editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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