Eu
não sabia se abria mais a blusa
ou
se fechava até o último botão.
Estava
meio confusa;
eu
só queria a sua aprovação.
Eu
não sabia se me sentava comportadamente,
joelhos
bem juntinhos,
mãos
cruzadas no colo,
como
ensinavam as freiras no colégio,
e
aceitava uma xícara de chá,
ou
se cometia o sacrilégio
de
arriscar um vôo solo:
me
atirava, felina, no sofá,
pés
descalços sobre o braço do estofado
e
olhava para o lado,
para
o bar,
com
um olhar cheio de interrogações irônicas.
Eu
não sabia se encarnava a personagem
das
HQ que você tem na estante,
a
heroína urbana nervosa e agitada
que
está sempre a mil por hora e não tem tempo para nada
ou
se vestia uma imagem
de
mulher rasa, chã,
perfeitamente
plana,
que
se deita às dez da noite,
levanta
às seis da manhã
e
sai de casa sem nem ler o jornal
porque
afinal
é
tudo sempre igual,
como
nas tiras cômicas.
Eu
estava mesmo bem desnorteada,
nem
um pouco preocupada em ser autêntica.
Queria
tudo e não queria nada.
Queria
ser a sua musa excêntrica,
a
moça do calendário
e
a faxineira invisível
que
procura uma vassoura no armário
debaixo
da escada
para
deixar a sua casa um brinco.
Eu
queria ser uma única mulher,
una,
indivisível, coerente
–
e também ser cinco
ou
talvez dez,
encenar
todos os papéis,
ser
a sua irmãzinha confidente,
a
mãe doce, carinhosa e necessária,
a
professora loura do primário,
a
amante que conhece você profundamente
e
você leva ao delírio quando quer,
a
esposa submissa
e
também a vizinha assexuada
que
te diz para ir à Missa.
E
enquanto estava ali, parada
no
hall de entrada,
olhando
a sua sala iluminada
como
quem do limbo observa o paraíso,
achei
que era melhor criar juízo
e
nem entrar.
Eu
só queria a sua aprovação;
te
impressionar.
SEDUÇÃO
Você me pega de frente,
me convence, me alicia,
me finge que é transparente,
claro como um meio dia;
conta uma estória bonita
com um final que arrepia,
me pisca o olho de longe
– e quem te resistiria?
Você brinca com meus dedos,
me duela e desafia,
diz que vai se apaixonar,
diz que é pura fantasia,
me encanta com a sua voz,
me dá um show de energia;
você, que sempre ri tanto,
e até do que não devia,
resolve falar a sério
justo quando eu não queria.
Mas aí eu me interesso:
– que é que você dizia?
SUMIÇO
Vou desaparecer
da tua vida,
e ela vai
ficar tão aborrecida!
Vou deixar
a tua vida lisa e plana,
sem graça
como um início de semana,
uma semana
dessas bem compridas,
sem expectativa
de alegrias.
Uma sucessão
de dias desbotados,
tardes frias,
noites descoloridas,
madrugadas
pálidas e
mal dormidas.
Vou sumir
até mesmo dos teus sonhos,
não vou aparecer
nem em delírios;
tenho planos
detalhados e perfeitos
e quando os
descobrires
será tarde
demais,
não vai ter
jeito:
tudo parecerá
tão desenxabido,
tão tristonho,
tão desprovido
de finalidade...
E quando não
houver mais nada que te agrade,
te interesse,
todos dirão
que é depressão, estresse,
mas nós dois saberemos que é saudade.
VESTIDO
O que escondo no bolso do vestido
não é para ser
visto por qualquer
um que ambicione
compreender
ou que às vezes
cobice esta mulher.
O que guardo
no bolso do vestido
e que escondo
assim, ciumentamente,
é como um terço
de vidro
de contas incandescentes
que se toca com
as pontas dos dedos
nos momentos
de perigo,
para afastar
o medo;
é como um rosário
antigo
que o fiel fecha
na palma da mão
para fazer fugir
a tentação
quando um terremoto
lhe ameaça a fé:
Jesus, Maria,
José!
Que meu microvestido
esvoaçante
não vos ofenda
em vão os olhos castos;
que minhas sandálias
de prata
não me falhem
nos instantes de cansaço;
que a tiara de
princesa que não uso
não se perca
entre os dedos dos incautos,
os sonhos dos
reclusos.
Que eu nunca
quebre um salto!
Que não me falta
jamais um parafuso
(não que se note);
que com sorte,
cautela e canja
eu algum dia
me transforme numa anja
e lá do alto
repique os sinos
para congregar
os loucos, os aflitos,
os que vos chamam
aos gritos,
os que nunca
têm respostas.
Mas que mantenha
no bolso,
mas que mantenha
nos olhos
um breve contra
os olhados
bons e maus;
que continuem
assim os meus vestidos:
precipitados
nas costas,
bem curtos, desaforados,
malcomportados,
bonitos.
O que inda escondo
nos bolsos
e murmuro nos
instantes adversos
é um verso medieval
escrito às pressas
em dialeto provençal, é claro,
por um bardo
meio analfabeto
com caracteres
rabiscados, inseguros;
é uma bola de
cristal
que não deixa
prever o futuro;
é uma invocação,
um cântico,
escapulário,
um patuá romântico
cheio de pétalas
azuis,
– para me proteger
das bruxas que não fui;
dos passes
que jamais permiti
que me encantassem;
da maldição
que não veio
dos meus sins, mas sim de um não
– de um único
não,
uma bobagem,
que não daria
jamais
um furo de reportagem.
DE NOME E SEDE: O MANTRA
Teu nome, que repito como um mantra
porque conduz às sensações
mais doidas,
toma-me de surpresa em
meio ao trânsito,
acorda-me de espanto toda
noite,
assalta-me em cada esquina
e no entanto
tem qualquer coisa de
reconfortante
que faz com que em seu
som toda me envolva.
O nome que repito como
um mantra
também é som que acalma,
tranquiliza,
e assim tão singular que
nem precisa
de rosto ou corpo que
o acompanhe.
Nem me faz falta pêndulo,
moeda
ou uma voz suave de comando
para re-induzir-me a entrar
em transe:
o próprio som do nome
hipnotiza.
Mas
o nome, simplesmente,
repetido
como um mantra, esse som
obsessivo,
talvez invoque um universo
tântrico,
talvez provoque o transe
que persigo
mas não aplaca a sede
nem consigo
que o ópio desse som por
um instante
sufoque a sensação imperativa
que o tempo todo fecha-me
a garganta.
(Porque, de sede, o que sabia Tântalo?)
OBSESSÃO
Tudo que desejo
me obceca
e não quero
querer pela metade.
Por desejar
com tanta intensidade,
só desejo
uma coisa a cada século.
Para o século
vindouro,
o que me atiça,
que me desperta
a cobiça,
tem um rosto
de asceta e mãos de artista
e uns acessos
de fúria nunca vista,
da qual, em
meu desvelo,
quisera protegê-lo
para que jamais
se fira
em sua própria ira.
GOLE
Toma um gole de mim que te sustente
por mais uma semana, um mês talvez.
Um hausto de palavras transparentes,
tela translúcida através da qual me vês
como uma silhueta, simplesmente.
Uma mulher que pensas conhecer?
Me deixa bêbada de ti. Por um momento,
quando te afastas, sei que vou morrer
de uma ressaca dessas violentas,
que fazem viciados renitentes
jurarem a si mesmos nunca mais beber.
Mas sei e sabes que estou sempre aqui,
e que sou e serei reincidente.
QUE SEJA
Está bem: que termine,
que termine!
Se tem de ser assim...
Enfim: que seja!
Que não mais o meu verso
te ilumine
e nem tua magia me proteja
das coisas que não temo
e em que não creio.
E os beijos de hortelã
e de cereja
que trocaríamos noutra
realidade,
que fiquem para sempre
relegados
ao território das impossibilidades.
Não sou de ter saudades
do passado,
mas do futuro, sim, terei
saudade.
SAIA PLISSADA
Pois é – o que supunhas?
Às
vezes fico assim, bem-comportada,
saia
plissada, um pouco abaixo dos joelhos,
e
nas unhas,
em
vez dos tons vermelhos,
uso
estas cores claras, nacaradas.
Às
vezes fico assim: penteada, maquiada,
mas
– ah! – discretamente...
Limito
o rosto com brincos de madame
–
e brinco que inda assim há quem me ame,
mesmo
contida, formal, séria, reservada.
E
quando estou assim nem se pressente
sob
o verniz dos gestos controlados,
meus
precipícios, o espanto adolescente
com
cada pôr-de-lua em madrugada,
cada
renovação do sol nascente,
com
tudo, quase tudo. E com pequenos nadas,
com
ínfimos detalhes comoventes.
Então:
o que pensavas, afinal?
Às
vezes passo assim dias inteiros:
tailleurs
de tafetá,
blusas
de linho
–
e a alma e o coração, meu companheiro,
descabelados,
em
permanente e completo desalinho.
PUNHAL
Deixa meu
sorriso entrar feito um punhal
nesse teu
coração, pedra de sal
onde nada
frutifica nem floresce.
Deixa assim:
um sorriso permanece
depois que
todo o resto, por igual
se aplaina
sob os ventos da memória.
O vendaval
que passou
por sobre a tua, a nossa história
transformando
em planície, em areal
deserto e
árido aquilo que afinal
tinha um relevo
definido, sensual,
contorno original,
topografia
própria.
Sei que não
devo, que não deveria,
mas cravo
inda mais fundo este punhal
e giro a lâmina
à medida que a retiro:
não por mal
e nem por
covardia.
É um movimento
natural
do pulso,
essa torção.
Aguardo em
sobressalto alguma reação:
em vão.
Nenhum sinal
vital se manifesta.
Já não há
nada (ou nunca houve) nesse coração.
Mas não:
no fio do
punhal,
um minúsculo
cristal ainda resta.
Toco-o com
a ponta da língua, com cuidado,
por curiosidade.
Sem saudade,
sem ódio.
(É verdade:
é mesmo puro
sal
de sódio.)
*****
BETTY VIDIGAL (São Paulo, 1948). Poeta,
narradora e tradutora. Autora de livros como Eu e a vela (1965), Tempo de mensagem
(1968) e Os súbitos cristais (2008). Página
ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada
desta edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS
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editor assistente | MÁRCIO
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CNPJ 02.081.443/0001-80
Uma das minhas poetas preferidas.
ResponderExcluirLer Betty Vidigal é uma verdadeira purificação. Uma cartase. Amo cada palavra, letrinha, pontos, vírgulas e tudo que paira no ar depois da leitura. Levito na beleza de seus poemas e textos.
ResponderExcluirRaramente li um conjunto de dez poemas de um mesmo autor ou autora e gostei de todos com a mesma intensidade com que gostei destes poemas da Betty. Eu já havia lido muitos poemas dela, mas agora resolvi deixar-lhe os meus aplausos. E os dez poemas me pegam naquilo que eu mais gosto: a intimidade (e tantas vezes a impossibilidade) do relacionamento, do amor, do querer, da entrega, da admiração. Muito bom! Quisera escrever tão bem assim.
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