quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR



LUME

o nome sob a pele da noite
o difícil anoitecer
diante do abandono

com paciência e silêncio
ensina-se às crianças
o amor ao fogo


MENSAGEM

ouçam: luz com que a terra se queima
preciosamente num sorriso

digo: campos inundados na penumbra

sei: não se pode arder de maneira tão iluminada
quando a noite interroga o corpo


O CORAÇÃO EM SI

escrevo ainda esta paisagem
de corpos que escorrem
e se debruçam pela boca

enumero janelas
de lugares destruídos
quando me despeço

reconheço o sangue
no violento adeus
dos pássaros que despertam


FACE DO SOL

a sombra se abre
e vejo de onde
surgem seus lábios

os mesmos lábios
que dobram o vinho
lábios habituados
ao sabor do sonho
lábios em que caminho

lábios que sopram
alegremente
a própria vida


TODOS PODEMOS VER ESSE CLARÃO

É necessário abrir a água para ver o silêncio das catedrais
anjo feito de música pairando sobre as flores
com sua harpa escorrendo levemente sobre as pétalas
só assim nos consagramos
entendemos o mistério de estarmos deitados
sob os lençóis do tempo
esvoaçando livres
sem varais nem pregadores que suportem
            essa real liberdade de oscilações
só assim nós somos uma coisa e outra
e lembramos da época em que o escuro
            era a verdade que nos consumia
é necessário buscar o coração de nossa morada
a borboleta que compõe a névoa
que prevalece antes da aurora


RITUAIS, IV

Desabo sem desespero
nos frascos do crepúsculo
O que é fissura
jorra nos jardins do sonho
Iluminação
e apavoramento dos violões
Eu me desprendo e morro
desenlaço os planetas
e os reorganizo no seu corpo


CORRESPONDÊNCIA COM A AURORA, III

Meu mar conjurava um sonho. Com o sangue da aurora sobre os olhos, assistia os pinheiros cobertos de melancolia. Com uma faca no perímetro do cérebro onde adormecem os melhores túmulos, cantava no mausoléu do vento. Uma legião de branco carregava os frutos da Lua. Você usou as vestes da noite nos átrios do inferno - era uma bailarina nas unhas do incêndio. Um emaranhado de flores adorna a madrugada. Houvesse um momento em que a dança das feridas congelasse, eu me embriagaria com os anjos da sarjeta, pois a salvação está com eles. Mas não. Só é possível trazer as mãos postas assim, uma sobre a outra: Um berço para todos os relâmpagos.


SELOS, IV

Obtemos o conhecimento
quando seguimos a água.

Vozes sobre a luz,
noite de bocas fechadas:
sob a lâmpada
de todas as horas
me confidenciarão um dia
o motivo da ferida.

Espelhos põem-se
um à frente do outro.

Nada se sabe da memória
que se esvai
na sombra de um arpejo.

*

as flutuações do seu corpo tatuado de aves
            halos de flores
                        e túmulos sobre o mar

o poente abre as primeiras portas
            da alucinação

as asas dão o caminho
            para atravessar a pele da sombra
                        o fogo em profundidade

*

Te fundo de beleza em beleza: os pés margeiam a casa em que o tempo há de abrir-se ao coração.

Ao meio de seu vestido se revela a morte e quanto mais deslizo meus dedos na textura, mais eu me queimo, mais eu a entendo como um rio, repreendendo os pulmões para que não se escape um som sequer.

Olho pausadamente e te sinto como se sentisse a terra inteira com a altivez de um movimento brusco e perfeito.

O corpo arqueja como um vegetal cooptado pelas águas.


PROCISSÃO

Há uma pequena árvore
da qual surgem os mortos,
carregada como religião
com o entrelaçar de dedos.

Carregam-na sempre
por todos os caminhos,
com a força dos braços,
para cima e para baixo.

Até o último soar da maré.
Então se sobe a custo
os degraus do templo.
E as mãos se descerram.


VÉSPER

A estrela da manhã desaparece
ao desaguar em sua carne,
abandona-se ao definhamento
das gotas e dos signos.

Viva demais para ceder
por toda a visão do granito,
repassa aos girassóis a mudança,
a fúria, o espasmo e a vida.

Permanece aberta, embora
não haja piedade no transe.
Abandona-se à dispersão
das águas que se completam.


*****

ELVIO FERNANDES GONÇALVES JÚNIOR (São Paulo, 1992). Poeta. Autor de O coração em si (2017) e Chave menor (2018). Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
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