quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE LEILA FERRAZ



AO PÉ DA LETRA

Uma letra pode ser a alma da vida de um ser humano.
Ou as fases de todas as luas do universo.
Uma letra é um signo vocalizado preso no pé de um círculo.
A cada evocação assopramos algo encerrado, numerado e verdadeiramente sutil.
Como o corpo de seres em amor ou imagens oníricas multiplicando-se ao infinito.
Uma letra se move graciosamente do céu da boca aos confins do universo circular.
É um raio de luz espalhado entre as colunas do espaço.
Uma pequena letra desamarra as teorias quânticas.
Sem angústias ou redenção.
Uma letra se deita esquecida ao pé de uma mesa.
Como se possível fosse revelar os mistérios do ser.


PAVOR NOTURNO

Touro galos e vinagres, touros cambraias me cercam por todos os lados.
Touros estanques, em urzes me lambem com suas línguas de terra.
A oeste de seus significados, eles mugem e cruzam vaus cegos.
E seus chifres me cortam com navalhas aparando meus cabelos e babados.
Arrebatam minhas forças, as que eu carrego como insígnia portátil vida afora.
Couros destilados me tolhem os braços e me travam os dentes.
E revoltam meus sentimentos de sacrifício em sacrifício.
Década atrás de décadas em furtivas teias cosmológicas,
pelas avenidas e ruas em procissão e sortilégios.
Extraio de minha íntima substância a tatuagem de nome algum.
Touros marcados em meus desejos como garras de caranguejos.
Identificam riquezas infinitas, pegadas deixadas ao chão.
De quatro os touros encostam suas cabeças em minhas anáguas de serenatas.
Cravo-lhes meu espadim em suas corcovas.
Mal sabendo da arena os acenos.
A dança sonda os pés de meu amado.
Envolve seus braços afeiçoados, enlaçam suas pernas solfejadas.
Sou a sombra no espelho do aprendizado de nossas feições transportadas.


IMAGENS DERRETIDAS

Dentro de uma sala onde as paredes eram revestidas de bonecas mutiladas agonizando em cruzes, madeiras esculpidas na testa dos homens e dos centauros revelavam uma Era arcaica. Danças sobre colunas e pórticos desmantelavam qualquer razão. Abóbodas e escadarias levavam aos infernos do pensamento. Os pés dos bodes demoníacos eram alados em chifres como vulvas triangulares. Dentro de cada centro fora cravada uma espada de brilhos. Lampadários em poliedros de vidro agonizavam todas as possíveis conclusões. Por obra do mais hábil escultor as luzes revelavam o Inferno de cada um. Os demônios que adormeciam seus pés de ébano e marfim possuíam sexos masculinos e femininos na figura de mulheres em êxtases. Dentro de cada lágrima de sentimento, quem sabe, tecia-se a tapeçaria cravejada do veludo. Mórbido rosa e roxo, exposto e tatuado pelas línguas das canetas de nanquim. Da ferida sangrenta evaporavam perfumes de miosótis e odores de sândalo. Um membro ergueu seu órgão azul marinho e foi abraçado pelas asas de lábios em fogo. Sons sibilares evocavam todas as preces e uma voz rouca devorou sua amante perfeita. Nesse mundo de orgias, as estrelas serpentearam na ausência total da consciência humana. A névoa das taras escondeu-se nas palmas das mãos que se fecharam proibindo um olhar mais lascivo. Os amantes desceram as máscaras, abriram as fantasias e mergulharam um no outro sem ao menos saber que eu era você e que você em mim se transformara.



O HÁLITO DO VENDAVAL

Há folhas espalhadas por todo o jardim, e venta
como se não houvera vento antes desta manhã.
Leva para o mar todas as memórias da luxúria.
E eu me abro para mais um dia, outro dia, novo dia.
Para quem perdi meus dedos nesta noite.
Acordei com estrelas e bambus.
Odores sensuais cozeram meu corpo à cama
e as lembranças de sedas, rendas, cadeiras tombadas
e ilógicas derramaram um esquecimento lilás.
Meu leque roxo se fechou de medo
e o vento grita seu nome através do canal.
Procuro a terceira lua de Júpiter em pleno dia
e minhas virtudes já se confundem em confissões.
Taras me perseguem por todos os lados
e me viram do avesso enquanto rezo o café da manhã.


EXTENSÕES DESCALÇAS

Há um véu vindo de não sei onde,
nublando a imagem esmaecida
e pronta para caminhar.
O sonho brinda a manhã
e as lembranças permanecem.
Um outro dia pronto para acontecer
entre o limite possível e o deslumbramento.
O que será? Quem virá?
Enquanto não vêm as respostas
 ⎼ e não virão ⎼ eu construo
o dia sem arrimo, sem cal e sem saberes.


OLHARES TROCADOS

Não sei mais o que é olhar para dentro de um homem através de seus olhos.
Não consigo imaginar um homem procurando o meu olhar
- que foge de pudor - ao sentir seu coração despido
e a nudez do desejo revelando suas formas.
Meu rosto desfigurado pelo tempo e sem máscaras ou pinturas
é cego como as estátuas gregas.
A velhice e suas dores agonizam todos os pecados,
banindo a culpa e os remorsos gravados a ferro e fogo sem piedade da pele que abriga minha alma.
Solitária em minha frágil taça de cristal
posso apenas sorver o vestígio azul do teu licor.
E uma lágrima eterna desce a face pelos caminhos já tão percorridos pelo tempo.
Dedos mímicos ainda moldam um ritual de sombras
que se entregam à vertigem do teu olhar olhando o meu.


OFERTÓRIO

Dou-te esta manhã fria e molhada,
por uma réstia ensurdecedora de almas.
Minha mãe geme de dores,
e nada posso fazer, a não ser distraí-la
em seu catre de persistentes eternidades.
Ela fala sozinha e se esquece do que disse.
Confunde o amanhã com o ontem.
E eu ainda me assusto com o futuro.
O dia de hoje é quase uma lágrima fugidia.
Minha mãe soletra uma repetição de mil vidas.
Vou colocá-la em meu cavalo branco,
quem sabe a galope enganemos a dor.


ANTES QUE O SOL SE PONHA

A aparição misteriosa desta deusa universal
- grande mãe terra - surge de relance
insinuando sortilégios e mistérios das profundezas
que deverão se revelar. Algo mudou. Um estado de ânimo.
A premonição de um tremor desconhecido, assustado.
Uma pausa solene invade esta caverna
de transparentes águas azuis… Passos cautelosos,
sobre o que não pode ser controlado,
deixam suas pegadas repletas de silêncio.
Pisam sem saber ao certo aonde querem chegar.
São a pausa solene para o descanso dos desejos
que se desconhecem das máscaras usadas
em seus inumeráveis atos de loucura.
Um arrepio delicado sopra um berrante
de sigilosas mensagens, por enquanto inaudíveis.
Os pares descansam de abruptas tempestades.
E tateiam murmúrios delicados e inquietos,
enquanto o sono se esvai sem deixar o menor vestígio.


LÁGRIMAS INSUSPEITAS

Algumas mulheres de minha geração sofreram muito
com a usurpação do tempo que devia ser delas.
Não há ouvidos para meus apelos.
É como se eu tivesse enraizado meus pés em uma terra devoluta
e meus braços se agitassem unicamente com a força dos ventos em fúria.
Doem-me as feridas de um tempo que passa levando consigo
meu corpo e flagelos da alma para a cova rasa do esquecimento.
Mais do que nunca hoje eu fui embora.
Para bem longe, onde a liberdade me escolta presa à arquitetura da satisfação solitária.
Sou uma civilização perdida e isolada do mundo.
Presa em um retângulo de sacrifícios.
Meu desgosto é trágico como uma ópera de cavernas.
Só me resta pouco tempo neste corpo cativeiro de almas.


A OUTRA ESCRITA DA PELE

Das palavras apanhamos, de seus músculos esquivos,
com elas nos confundimos e nos acertamos.
Sofremos e nos flagelamos pelos pensamentos
que se vertem em poemas.
Um gesto louco e dominador nos joga sobre telas e papéis,
onde tatuamos nossas almas com tintas dolorosas e arrebatadoras
e nos expomos em roupagens orgásticas.
Esculturas arrancadas de seus conceitos
e colagens infinitas de sonhos revelados.
Meu corpo é o corvo que me devora o fígado.
Meu corpo é a cereja que escorre pelas tuas pernas.
Meu corpo é o livro que defloras página por página,
apesar das minhas súplicas.
Queres arrancar minha alma custe o que custar,
de seus temores e pudores, e da inquietude que a ilumina.
Queres me expor sem que eu exposta esteja.
Meu corpo de solfejos e pérolas é escravo de sua história.
É o laço. Um ponto. Uma linha. Um plano.


*****

LEILA FERRAZ (São Paulo, 1944). Poeta, artista plástica, tradutora. Foi uma das organizadoras da Exposição Internacional do Surrealismo, em São Paulo, nos anos 1960. Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
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