quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE MÁRCIO SIMÕES



O ACENO DAS POSSESSÕES

uma coluna cinza clara de perfume festeja seu silêncio
no horizonte
no momento em que lástimas soltas alimentam um pranto
de papel e sou um urro
em desalinho
as percepções ativas ferem o olho nu
crises escutam sentadas os
desatinos do
porto
            cães atravessados por automóveis
                        bailam
entre um extremo e outro jovens espancam
um oceano de lamentos
uma febre de néon suspira uma agonia de luz
            uma cólera de possibilidades enforca os fetos
do destino
vermicidas oxigenam
pulmões
mentes florescem como chagas
no intestino grosso das
metrópoles


LUGAR – 1999

foi na Ribeira que tive minha última obsessão arcaica perseguido por policiais como um cão
o esqueleto arquitetônico da rodoviária velha era um imenso abrigo de sombras
nas esquinas velhos assistiam desiludidos crianças com olhos fundos de pedra
festejos ruidosos despertavam as almas dos casarões abandonados
para andar novamente nas calçadas de mãos dadas
quanto tempo caminharão sem que um de seus becos lhes confisque o abrigo
sem que devaneiem em atrativos devassos
antes que o cais afogue mais um suicida
antes que cesse o alarido da multidão
antes que paguem o preço do dia
quanto tempo de noites mal-dormidas onde
ruas estreitas eram o palco imundo de festejos rítmicos
em que paredes e prédios aos pedaços sugeriam segredos nos ouvidos atentos
que fazem essas sombras com confidências antigas?
ah como deve ter sido diferente quando aqui tinham vida esse batalhão de casas
e agitavam-se suas praças sob
o encanto da novidade
suas ruas urravam cheias de lixo pessoas carros carroças marujos putas políticos
artistas anônimos e indiferentes
o barulho ensurdecedor do porto
como um discurso constante
a gritaria dos bêbados
o sufocante pudor feminino
os bares como pequenos infernos
correria de bondes equilíbrio de guindastes baforadas de navios anjos de remos
tudo isso hoje está esquecido em olhos brancos
sua alma sufocada pelo bafo oficial
seus ossos abertos em fraturas
seus dias deixados
à caridade das chuvas
torcidos pelo sol quente
sua tarde acabada por perseguições noturnas
seus amores desconfortáveis como os mendigos de suas fachadas
sua voz apenas o ronronar escuro de suas águas profundas ensinando que a distância impõe o
silêncio
agora que estou longe de ti impelido por imensidões abruptas me pergunto quando
esquecerei tua face escura índia velha e quando poderei pôr fim às lembranças de seus
demônios e criaturas noturnas destilando espetáculos narcotizados para minha presença
descontrolada – e por mais quanto tempo ainda lhes serei grato


É BLOOMSDAY EM NATAL...

é Bloomsday em Natal
                                               e as flores somem
                                   nos botões não postos
                           levarão dois meses
                                                           ainda
                                               para o primeiro dia quente
                                        após as águas
                                   induzir as orquídeas
                                                           aos primitivos rebentos
                                                     abrindo veredas nos caminhos
                                                 e dezembro queime definitivamente as hastes
                                                           e faça luzir as faces ausentes
                                                     que os ventos de agosto
                                                                       cobriram antes de terra
                                                                 e poeira                caiada da pele


O BUDDHA DA BELEZA AFOGADO...

                        O Buddha da beleza afogado na cabeceira do rio Pitimbu
                                         ouro-aúreo escorrido
                                                                        esgoto & merda
                                                               no Villaggio Verità
                                                        medusa encantatória. usurária
                                                 funcionários enclausurados. meninos-milicos. vigilantes
                                        viris amantes
                                                           das madames. vidro negro & espelho
                                                   arame & grade
                                                                       insígnias
                                                               insignificantes
                                                        & pavorosas ilusões
                                                 de nenhuma eternidade


CABEÇAS DE PRÉDIOS DECEPADAS...

cabeças de prédios decepadas
          no largo
espaço azul
de manhã é um rasgo claro
para o olho aberto
eu preciso ouvir a criança
órfã regenerada
por Orfeu
sua vingança


QUANDO ANJOS ALEIJADOS...

quando anjos aleijados decapitarem a boca aberta das trombetas
quando clarins incendiarem a nudez numa vegetação
quando a campânula estrebuchar num arco de chuva
as caravelas se abrirão num largo
e as amantes se enforcarão em claras flores de lótus

estampidos e paradas se baterão pela planície
o orvalho virá fecundando a tormenta ou a terra
a ruína do mar e o arrebentar-se das pedras
louvarão essas vacilações do espírito
minhas anarquias, meus demônios


ESTOU FARTO DE VIVENCIAR A DESAGREGAÇÃO DO MUNDO...

     estou farto de vivenciar a desagregação do mundo
nem uma sombra da intercomunicabilidade das coisas
     uma mulher de seios fascinantes
     repousa ao meu lado
e no entanto não posso tocá-la
     estou identificado ao réprobo, ao carregador das chagas
     ao que sofreu os anátemas
nada tenho com os capatazes do tempo
     entretanto seus agentes invisíveis
     não me deixam ter um instante de paz
apenas tu, Musa, não me abandonaste nem na loucura
     escuto no pássaro o suspiro solitário de quinhentas nuvens
     amanheço estrangeiro e mais distante
nenhuma parte de mim deseja pedir perdão, levantar uma súplica
     crer na ressurreição dos mortos e na vida eterna


AURORAS DE BRAÇOS ESPARRAMADOS...

auroras de braços esparramados
sobre os pescoços dos montes

nuvens de brancos
nos olhos do azul

árvores em disparada
     atravessando
as vestes dos vendavais

rios de duas cabeças
servindo a ceia
terrena das raízes

quem duvidaria
que a escuridão
na sombra

sabe onde
a luz esplende?


DONA DAS DELONGAS...

dona das delongas
a musa muda suas faces

pega emprestado o sorriso da manhã

contorna os olhos com rastros de noites estreladas
e trança ramos de entardecer nos cachos de meio-dia –

depois reluz de passagem nos cabelos da neblina
demora um segundo numa porta que se abre ao mar

pára um instante
num corpo de mulher

e se esvai novamente

como se revelasse
em toda epiderme da paisagem

o instante em seu interior de sóis
incendiando os dias


DURANTE UMA SESSÃO DE MÚSICA ETÍOPE

para Sopa, sufi-sadhu d’Osso

i.

a mente desmantela
a redoma de ar
o trombone bale
o sopro divino
atravessando o deserto
os caravanas pisam
     os tambores graves
ao entardecer

ii.

vermelhos audíveis
     rodopiam
num redemoinho

iii.

sax dos infernos
     nascendo das tripas
de petróleo expelidas
     no céu deserto motorizado –
flor violácea
          espargindo a derradeira
                        malemolência das raças
                pelas manhãs
          ainda amando
                o âmago renitente


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MÁRCIO SIMÕES (Caicó, 1979). Poeta, tradutor e editor. Autor de O Pastoreio do Boi: XII poemas sobre uma parábola Zen (2008) e Fúrias de Orfeu (2016). Diretor da Sol Negro Edições (www.solnegroeditora.blogspot.com.br). Como tradutor publicou Gregory Corso: Antologia Poética, Postais do Peru, de Thomas Rain Crowe, O Fruto de Saturno, de Yvan Goll, entre outros. Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
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