Evito rimas,
recuso acrobacias
apenas do frugal
me ocupo inteira:
tomo como medida
o arame do varal
e entremeio nele
(sensual, promíscua)
toalha de mesa
com lençol.
A casa deságua
no quintal,
alta se amolda
aos ramos das mangueiras.
De quando em vez
faz rumo, sai pra rua
(sem pelo) presa
pela lua cheia
ou terna atrás
de longe realejo.
Fica tudo
quarando enquanto
cozinho ou
vasculho a cumeeira
(esteio onde é
mais vivo o espírito do meu pai)
e escapa das
molduras uma aura, um certo enleio
com que apanho
luz para as candeias,
com que canto
funcionando este tear.
HERANÇA
Para Zeba e Acê Dal Farra
Ouço ao longe o
chocalho da burra-madrinha:
é o nono que se
avizinha,
cometa que chega
do confim das terras,
de encurvadas
léguas que o retiveram.
Já se fez (como
de hábito) a visita ao cemitério.
Pulou (há pouco)
o muro das almas.
Saltou na noite
(capote colonial ao vento)
para dentro das
lendas que o povo conta
sobre secreta aparição
local.
Foi tomar bênção
à mãe
levar-lhe as
flores que colhe
pelas picadas
afora
– solta móvel
onde cultiva
Rebentos íntimos
da memória.
Beijo as mãos
geladas da pedra em que demorou.
Não tenho medo
nem frio, na ampla capa me aninhou.
Devolvo-lhe sua
sanfona (saudade a mais amargada)
repara nos
botões gastos – esquece que papai a herdou.
Ouço do fole
remoto da noite um acorde!
É o nono-cometa
que se apeia do tempo
e vem partilhar
com a neta (que não conheceu)
velhas
tarantelas de legadas gestas.
ABÓBORA
Despojo-me de
tudo quanto tenho
para a tua boca
salgada ou doce:
cambuquira,
massa, semente, fruto.
Até outro acolho
em mim,
ramo duplo das
artes.
Bandolim?
Violão?
Para meu
desconcerto,
abelhas
afinam-se no fundo diapasão da minha flor,
na zona mais
erógena;
e então, ah, com
que cócegas me torço em vivos contornos,
e cresço,
esculpindo curvas,
a cor exalando
túrgida a úmida temperatura
do meu mistério
gozoso:
íntimo encontro
do delgado pescoço com quadris –
coito.
Concórdia de
contrários,
senhora das duas
naturezas
(andrógina)
Ainda assim
rastejo
– menina que
sou! –
a entregar-me ao
gosto da lagarta-rosca
e das brocas.
A MÚSICA
Flexível como a
corda que a tange
ela vibra. O
leão aprofundado no instrumento
espera o momento
certo para saltar –
que é quando se
casa o sopro
com as cordas.
Tudo lhe á de
lembrar a floresta
o som do vento
o riacho
quebrando-se
a flecha que o
espera para segui-lo
sem, contudo,
nunca o alcançar.
A música é para
ouvir e lembrar
(sobretudo)
o jamais vivido,
o que não teve
memória.
Mesmo o
monocorde das cores
não impede a
passagem do que silva e se alça
– como por
encanto.
Daí seu
fascínio,
a mágica a
perscrutar
(nas nossas
fibras)
a ressonância
que a funda
– apenas a ela.
LOUCURA
A órbita da
loucura é imensa.
Aviso às
incautas criaturas
tanto quanto
aos navegantes
sem rumo.
Nela se movem
constelações superiores
ilimitadas águas
e as mãos com
que Deus nos acena
(segundo a
segundo)
com a sua graça.
Consolos prontos
a redimir o mundo
palavras
ausentes de escrita
ali se asilam
e mais
o risco do
iminente abissal.
É tão amplo o
rosto da loucura
que podem caber
nele
quaisquer
das nossas
muitas faces
– inclusive esta
com que agora me empenho
em apreendê-lo.
NATUREZA-MORTA
VIVENTE
Culpa do
delicado voo da andorinha,
o desequilíbrio
da mesa
mete tremor nas
fruteiras
arremessa maçãs
para o Éden
faz cometa das
cerejas.
Flutua o
brócolis em regime de nave-mãe
enquanto põe
embaraço
no impecável da
toalha de almoço
– já um tanto
alvoroçada e picotada
pela iminente
imaginação
da faca.
É verdade que
nesse terraço
(onde se
perscruta o limite entre mortos e vivos)
nada perturba o
mar que flui à deriva.
Tudo está
plácido à tona d’água
– e o mesmo se
diz daquilo que
(como o céu)
não sofre ranhuras
– ainda que
abalado pela alada imagem inicial.
Há uma pera no
ar.
E duas azeitonas
que colho ao léu
mas com as quais
mal posso preparar o drique:
álcool
volatizado na direção
do arremesso.
LA DAME À LA
LICORNE
A Vanessa Droz
A dama se faz acompanhar
do unicórnio
em todas as
telas
– ele passeia
pelos sentidos dela.
Faz gosto vê-lo
assim,
doméstico,
mimoso animal de
estimação
indeciso entre
cão e gato.
Dela,
a vista se
espraia
pelo corno
branco de lua
enquanto tateia
na pluma que o recobre
a ave de cascos
suspensa
sobre o espírito
da tapeçaria.
Dele,
o focinho
inspira flores ao derredor,
ramagens, maçã,
perfumes:
o meigo bichinho
ensina à dama o regime do sol.
Sua voz indivisa
é guia
e a dama apanha
as cifras:
são raízes,
fósseis que se desprendem das pedras,
ocultas
nascentes reclamando o ouvido.
Ele passa-lhe
tudo o que sabe.
Mas é o amor
dela que lhe dá sentido.
DESABITAÇÃO
Penso que a
gente morre
tal qual o
frango no prato que destrinçamos
(alheadamente)
em prosa com os
convivas.
Às vezes sem
ruído, outras esmagados
sob o pecado, a
falta não redimida –
como um trem que
atravessasse as vísceras.
Levantamos a
cabeça por cima dos talheres
e fisgamos no ar
a ideia
com que debicar
o vinho –
mas o odor da
marmita
faz quase
vomitar.
Somos os
habitantes e os visitantes
dessa casa que
dá para o caos.
A VIOLINITA
O silêncio
enxuga
a arcada do
violino
quando o rosto
dela ao instrumento se arqueja.
Ruído que age
nas veias
na boca
cujos dentes
vibram
na contorção das
cordas.
Um braço
arrebata a madeira
pelo dorso mais
oculto
(suas tripas de
animal)
enquanto o outro
(pernas de gafanhoto)
fricciona o
metal subjugado à candura
das unhas.
Só então a
música se torna audível:
quando o corpo a
sanciona.
SYLVIA PLATH
Com o planeta da
minha mente
vejo negras as
árvores. Frias e cinzas
erguidas num sonho mau.
erguidas num sonho mau.
Há vapor do dia
em vias de nascer
que (em barreira
transparente)
me separa de pra
onde quero ir.
Branca de
cartilagem (esparadrapo
a cobrir-lhe a
ferida)
a lua ainda goza
seu pleno direito –
vem chupando o
mar, a última de suas tarefas noturnas.
Fundo de panela,
alumínio machucado ao alto.
Melhor: tampa
redonda de forno a gás.
No quintal as
roupas do varal se encontram
em desconforto.
Repõem
suas manchas, o
sangue menstrual.
Expõem o uso, o
amassado do afeto
o invisível
gesto que ali se busca
enxugar.
Há manejos de
armas brancas
por baixo da
planura das palavras.
*****
MARIA LÚCIA DAL FARRA (São Paulo, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista,
autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa
lírica. Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961),
artista convidada desta edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA
FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem
necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela
devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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CNPJ 02.081.443/0001-80
Hoje tive a honra de ler alguns de seus poemas na revista do Sesc,da minha cidade de Araraquara.confesso que fazia tempo que eu não lia poemas de arrepiar de um poeta ainda vivo.abraços de Rita Rosário.
ResponderExcluirMaravilhosas páginas. O teor nós leva às profundidades do real e mesmo do enlevo a meditar.
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