quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE PÉRICLES PRADE



O ENXADRISTA

Quem matou o Rei não foi a Rainha.
Disse a pura verdade o enxadrista
quando o matador ainda há pouco veio
sem arma alguma ao nosso encontro.

E na Torre um corpo colorido não vê
se quem mata é tão veloz quanto Ele,
jogador de armadilhas que as desfaz
pelo raro prazer de a própria pedra ser.

Poderia girar o Cavalo e por suas patas
sobre as mãos ou na cabeça do morto
antes de o vencido todos os jogos jogar.

Mas é o vencedor quem na vida joga
se a morte não recua o tempo todo
como a faca cigana na cinta do inimigo.


AS VISITADORAS

Com asas de bronze doze almas ciganas retornaram ao campo, pousando sobre arados de colonos em festa. As visitadoras recolhem sobras de ouro e trigo. E sem olhos compõem uma sonata, as peles rubras voltadas para o Egito, jarras trincadas rumo ao cadafalso. Não choram. Um sábio manco devolve aos céus Bizâncio ao som de águas desiguais. Perto do poço todas rezam em volta do fuzil divino, respirando aos poucos. Sobre onze almas ciganas. A que fia gira como um pião, assobiando Beethoven entre os dentes quase brancos.


SEM FORTUNA

À esquerda o divisor marinho
e os cipós, adagas retorcidas.

À direita o cartaz de alfombra
e os gamos marrons deslizando
sobre as faces de Ramsés II.

Nas cestas de seda impura
não há chumbo ou porcelana
quando a sorte se esgota.

No sótão as uvas de Damasco,
no porão o lábio de alabastro
colorindo os pés do noivo louco.

As larvas de cera vigiam
o barro. O chumbo e a porcelana
nas cestas de seda impura
quando a sorte se esgota.


PIRANDELLO DE COSTAS

Sem flor
na boca pagã,
prendeu-se no sótão
após o câncer nascer.

À meia-noite fugiu.

Na selva procurou
amantes de lábios leporinos
para ressentir o fogo
de seus ventre capitosos.

Despiu-se da veste estelar,
ao lado do Missal,
quando um poeta medíocre
estrangulou seu duplo.

No encalço do escritor
foi caçador de fêmeas
e do ódio que se esvai
pelo ralo da aventura.


CONTEMPLAÇÃO

Cortadas as vísceras em fatias iguais, ninguém se atreve a conta-las. É discreto o olhar sobre o insólito mosaico. Com a navalha inquieta na mão, o autista embriagado contempla a própria obra, resignando-se. Um corvo jovem mata seu irmão caçula entre os espaços adultos limitados pelo corte perfeito.


CONSPIRAÇÃO

Geradores perpétuos do Caos,
ajudai-me a benzer
o coração dos que pedem
a forca,
o exílio,
o fracasso,
a perda de tudo
rumo à hierárquica fogueira.

O segredo
é o vigilante da resposta
onde o assassino de virgens
é surdo de nascença.

Os arquitetos se foram,
maravilhosos adeptos
da Conspiração Renovada,
aliados no passado,
presente
e futuro.

Somente agora sei
que a Távola não é redonda.


ESBOÇO DE UM ROMANCE PARA O PRÓXIMO VERÃO

Cap. I

O Príncipe tem o mesmo sinal
de Satã, o corrupto condutor
dos desenganos, órfão ancestral
a serviço de todas decadências.

Cap. II

Plantará ciprestes onde os pecadores
urinam, os descritos pelo monge
com soberba minúcia
nos alfarrábios do convento.

Cap. III

No trono portátil de ossos sem capela
finalmente sentará, máquina oracular
de sangue difuso, tecida com ruídos,
vulnerável como máscara de borracha.


MIRANTE

Longe destas ruínas
o mar cresce
em suposto repouso.

Um martim-pescador
dá voos rasantes
precipitando a aurora.

Peixes espertos desovam
nos corais e gemas de ouro
fascinam o mergulhador.

Gaivotas grávidas
não encontram as mães
que nas nuvens se perderam.

Longe destas ruínas
o mar cresce
em suposto repouso.


INIMIGA

No bosque
rasteja
a sombra
à procura do corpo.

O vingador
vira a faca
contra o sol
antes de cortar
a dupla cabeça inimiga.

O prazer
é maior
quando a vítima
é a esposa do demônio.


CADEIRA

Foi no Nepal,
ano passado,
que a mais bela cadeira
do universo eu vi.

Na lojinha,
entre os tesouros,
girava como um pião.

Distraído,
nela caí,
e sobre o Himalaia voamos
conduzidos pela neve da estação.

Tentei voltar.
O pensamento
agora só funciona
quando o dono dela quiser.


*****

PÉRICLES PRADE (Santa Catarina, 1942). Poeta, narrador e ensaísta. Obra vasta, cujos títulos mais recentes, na poesia, são Memória grega e outros poemas viajantes (2014), Gaiola de açúcar (2017) e O retorno das serpentes (2017). Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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