Quem matou o Rei
não foi a Rainha.
Disse a pura
verdade o enxadrista
quando o matador
ainda há pouco veio
sem arma alguma
ao nosso encontro.
E na Torre um
corpo colorido não vê
se quem mata é
tão veloz quanto Ele,
jogador de
armadilhas que as desfaz
pelo raro prazer
de a própria pedra ser.
Poderia girar o
Cavalo e por suas patas
sobre as mãos ou
na cabeça do morto
antes de o
vencido todos os jogos jogar.
Mas é o vencedor
quem na vida joga
se a morte não
recua o tempo todo
como a faca
cigana na cinta do inimigo.
AS VISITADORAS
Com
asas de bronze doze almas ciganas retornaram ao campo, pousando sobre arados de
colonos em festa. As visitadoras recolhem sobras de ouro e trigo. E sem olhos
compõem uma sonata, as peles rubras voltadas para o Egito, jarras trincadas
rumo ao cadafalso. Não choram. Um sábio manco devolve aos céus Bizâncio ao som
de águas desiguais. Perto do poço todas rezam em volta do fuzil divino,
respirando aos poucos. Sobre onze almas ciganas. A que fia gira como um pião,
assobiando Beethoven entre os dentes quase brancos.
SEM FORTUNA
À esquerda o
divisor marinho
e os cipós,
adagas retorcidas.
À direita o
cartaz de alfombra
e os gamos
marrons deslizando
sobre as faces
de Ramsés II.
Nas cestas de seda
impura
não há chumbo ou
porcelana
quando a sorte
se esgota.
No sótão as uvas
de Damasco,
no porão o lábio
de alabastro
colorindo os pés
do noivo louco.
As larvas de
cera vigiam
o barro. O
chumbo e a porcelana
nas cestas de
seda impura
quando a sorte
se esgota.
PIRANDELLO DE
COSTAS
Sem flor
na
boca pagã,
prendeu-se no
sótão
após o câncer
nascer.
À meia-noite
fugiu.
Na selva
procurou
amantes de
lábios leporinos
para ressentir o
fogo
de seus ventre
capitosos.
Despiu-se da
veste estelar,
ao lado do
Missal,
quando um poeta
medíocre
estrangulou seu
duplo.
No encalço do
escritor
foi caçador de
fêmeas
e do ódio que se
esvai
pelo ralo da
aventura.
CONTEMPLAÇÃO
Cortadas
as vísceras em fatias iguais, ninguém se atreve a conta-las. É discreto o olhar
sobre o insólito mosaico. Com a navalha inquieta na mão, o autista embriagado
contempla a própria obra, resignando-se. Um corvo jovem mata seu irmão caçula
entre os espaços adultos limitados pelo corte perfeito.
CONSPIRAÇÃO
Geradores
perpétuos do Caos,
ajudai-me a
benzer
o coração dos
que pedem
a forca,
o
exílio,
o fracasso,
a perda de tudo
rumo à
hierárquica fogueira.
O segredo
é o vigilante da
resposta
onde o assassino
de virgens
é surdo de
nascença.
Os arquitetos se
foram,
maravilhosos
adeptos
da Conspiração
Renovada,
aliados no
passado,
presente
e futuro.
Somente agora
sei
que a Távola não
é redonda.
ESBOÇO DE UM
ROMANCE PARA O PRÓXIMO VERÃO
Cap. I
O Príncipe tem o
mesmo sinal
de Satã, o
corrupto condutor
dos desenganos,
órfão ancestral
a serviço de
todas decadências.
Cap. II
Plantará
ciprestes onde os pecadores
urinam, os
descritos pelo monge
com soberba
minúcia
nos alfarrábios
do convento.
Cap. III
No trono portátil
de ossos sem capela
finalmente
sentará, máquina oracular
de sangue
difuso, tecida com ruídos,
vulnerável como
máscara de borracha.
MIRANTE
Longe destas
ruínas
o mar cresce
em suposto
repouso.
Um
martim-pescador
dá voos rasantes
precipitando a
aurora.
Peixes espertos
desovam
nos corais e
gemas de ouro
fascinam o
mergulhador.
Gaivotas
grávidas
não encontram as
mães
que nas nuvens
se perderam.
Longe destas
ruínas
o mar cresce
em suposto
repouso.
INIMIGA
No bosque
rasteja
a sombra
à procura do
corpo.
O vingador
vira a faca
contra o sol
antes de cortar
a dupla cabeça
inimiga.
O prazer
é maior
quando a vítima
é a esposa do
demônio.
CADEIRA
Foi no Nepal,
ano passado,
que a mais bela
cadeira
do universo eu
vi.
Na lojinha,
entre os tesouros,
girava como um
pião.
Distraído,
nela caí,
e sobre o
Himalaia voamos
conduzidos pela
neve da estação.
Tentei voltar.
O pensamento
agora só
funciona
quando o dono
dela quiser.
*****
PÉRICLES PRADE (Santa Catarina, 1942). Poeta, narrador e
ensaísta. Obra vasta, cujos títulos mais recentes, na poesia, são Memória grega e outros poemas viajantes
(2014), Gaiola de açúcar (2017) e O retorno das serpentes (2017). Página
ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada
desta edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA
FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem
necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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