quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE LEONTINO FILHO



TRAVO

que longo espanto
– a noite escura
  a solidão reverbera
  janelas
  portas
  cadeiras
o quarto tudo tão vazio


a lua   fogueira repartida
no peito do sol
que se avizinha


que curta vida
pisoteia nas ondas do sangue
 às vezes prece
  lábios
  bocas
  ilusões
o coração emudece
abre-se em lágrimas
verdes ao vento


travo amargo
no encalço das vontades
querer a vida espetada
em flor
larga
voz do espanto
adormecida na terra

nuvens carregadas de tristeza
para tão pouco chão
uma manhã    penumbra de insônias
em desatino se desgarra

noutro canto
pequenino
apenas um gesto passa

vaga, anônima
junto à multidão
a febre serenada
em prantos
de segredo longo


ESTIO

a asa comprida das horas
fossiliza
o espanto inútil das coisas

o tempo incendiado pelo despudor
enferruja
o estio cativo da agonia

o olho das horas
há-de cravar suas garras
na boca lisa do tempo

esse olho tempo
(único deus
verbo imprevisto)
converte a asa desnuda da morte
maldosamente
na balada infecunda
do vazio

todo resto
é susto de deus
(chave perdida)
túnica branca
suspensa
no nunca que canta
todos os senões

entre brechas
o sermão do sim
além da porta
o sono espera


RASURA

às escâncaras
a orfandade decadente
da consciência
alonga-se
amanhecida encardida consentida
a infausta súplica
carne viva da memória

ao redor
o desconsolo submerso
do choro
esfacela-se
exasperado concentrado inalterado
o estéril remédio
pátina paralisada da loucura

(o tédio que qualifica
não é o que difere
tampouco o que iguala
mas o que devassa
o purgatório das palavras)

já cingida
a diáspora da vontade
multiplica a rede de sensações

duma só vez
existe somente
o ser órfão
que a cada deslembrança
chora
na poeira incontida da queda
o raso abismo
sem resposta

eu, cântaro amargoso
apesar
do outro
aqui


ASSOMBRO
                                               
o que assombra nas margens
corta enormes cordilheiras de afogado

o que amorna nos remansos
apodrece imundas riquezas de cais

com sua gramática, assim, entre cordilheiras e riqueza
o rio volta a ser, por um dia, na matriz fora do cais
o outro possível rio que em volta de si mesmo
reacende colinas de ontem

qual campo onde a chuva pára
o rio não é última nem primeira morada

qual flor aonde águas impacientam-se
o rio sem amarras desamarra suas febres dementes

o que o rio assombra
(donde enganos produz)
de certo ele mesmo amorna

o que o rio corta
(por onde e aonde passa)
surpreende, por lados, afogados fôlegos

ele, já quase esgotado
do que tudo, até faz
na tarde, mais forte
fez-se lábio das horas
no avesso da infância


barba envelhecida, não
lição que as coisas findas
ganham para a vida

hoje, o rio do amanhã
feito rei, concha idêntica
a lei que é libertinagem, volta


MURMÚRIO

habitante das distâncias
o homem preconiza
o amanhecer de outras margens
lento, caminha além dos oceanos
saboreia histórias, salmos e reza
em novas manhãs

senhor de sua sina
vai, com o deus inscrito na pedra
de todas as esperas

este homem cumpre a insana
profecia do destino:
cozinhar sonhos numa caverna
onde as páginas de luz
(uma a uma borradas pela solidão)
são lágrimas de abandono
expelidas pela sacra penumbra
do anjo delirante

ele mesmo


PARTIDA INTEIRA

Minha alma cega
enxerga o teu corpo
rasgando
os sóis nus da madrugada

Minha alma louca
persegue os teus olhos
incendiando
as luas tortas da noite

Minha alma vã
colhe o teu cheiro
mergulhando
nos ventos doídos da tarde

Minha alma vai
sem pressa
ao encontro
da perdição:
um corpo só corpo
sem alma
a minha


ARDOR

Só, arrancas a flor
na tarde cinza,

sobrevive
a melancolia, lenço esquecido

cresce

a febre do pranto, sopro
envergonhado
cala
em mim.

Só, enches a pele
na rotina da voz

atira
a sombra do alto, relógio

atiça

a distância furtiva do gesto
desgovernado
preso
em ti.

Sós, os corações
embebedam-se
cegos pelos beijos
não trocados
olhos rodeiam
a boca da palavra
em torno da mesa

mutação bissexta
a mão fechada
mal remenda o tempo.

Sós, dormem os nomes
tardios das promessas.
Sílabas apalpam o vazio
uma hora irrompe
a haste rútila da matéria
quase evoca
a pele–flor
já nada mais será

Só.


MIRANTE INCLINADO

dormir
no claro abismo da madrugada

volta
céu tão pouco azul
visto do quarto
de uma janela talvez

algumas tempestades
pelejam
com hedionda
fúria
para esvaziar
por inteiro o silêncio

acordar
no meio impossível da espera

guarda
sentido bem mais diverso
parado na sala
de um canto qualquer
tantas vertigens
retornam
sem sua sufocante
saudade
para alisar
pela metade
a ilusão
do que em mim
é lembrança


NEBLINA

Na natureza
a chuva faz
sua letra devagar. 

A palavra
aciona no chão
suas origens:
um mar de planta
a hibernar
nomes no caule
das árvores ao vento

a haste além
da aparência mineral
flor espremida
a desdobrar no rio
a plácida vertigem
do dia.

A voz geme
nos caminhos
da imagem a sussurrar
os ossos do encanto
nos longes
da linguagem
a dissolver venenos
nos confins
                      do tempo.

A noite acende
o anoitecer
no olhar das estrelas
a adivinhar o decapitar
do cacto prematuro
na esfinge do sol.

A luz ignora
o vazio
nas sombras
da nuvem
a estampar o azul
das estrelas
nos olhos
no firmamento.


SELO

a mesma casa
casca nascida de distâncias
restauração ausente
do lugar

a mesma mulher
vestido antigo de mistérios
respiração intensa
da forma

a mesma força
cortejo alinhado de sinais
floração insensata
da morte

a mesma amargura
lei agreste de semelhanças
dimensão imaginária
do vício

a mesma sorte
peso pesado de vestes
crime fáustico
da palavra

só uma coisa não se vexa: repetir
a mesma casa a mesma mulher
a mesma força
a mesma amargura a mesma sorte

só uma amostra não se perde: percorrer
distâncias mistérios
sinais semelhanças
vestes

tudo com a mesma palavra pontuada
no lugar da forma
no vício do perdão

na morte
esse arremedo de lei
(fé abarcante)
que sufoca
mesmo


*****

R. LEONTINO FILHO (Aracati-CE, 1961). Poeta e Ensaísta. Publicou os livros de poemas: Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999), Semeadura (1988), Sagrações ao Meio (1993), A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008) e Anatomia do ócio (2018). Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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