que longo espanto
– a noite escura
a solidão reverbera
janelas
portas
cadeiras
o quarto tudo tão vazio
a lua fogueira repartida
no peito do sol
que se avizinha
que curta vida
pisoteia nas ondas do
sangue
às vezes prece
lábios
bocas
ilusões
o coração emudece
abre-se em lágrimas
verdes ao vento
travo amargo
no encalço das vontades
querer a vida espetada
em flor
larga
voz do espanto
adormecida na terra
nuvens carregadas de
tristeza
para tão pouco chão
uma manhã penumbra de insônias
em desatino se desgarra
noutro canto
pequenino
apenas um gesto passa
vaga, anônima
junto à multidão
a febre serenada
em prantos
de segredo longo
ESTIO
a asa comprida das horas
fossiliza
o espanto inútil das coisas
o tempo incendiado pelo
despudor
enferruja
o estio cativo da agonia
o olho das horas
há-de cravar suas garras
na boca lisa do tempo
esse olho tempo
(único deus
verbo imprevisto)
converte a asa desnuda da
morte
maldosamente
na balada infecunda
do vazio
todo resto
é susto de deus
(chave perdida)
túnica branca
suspensa
no nunca que canta
todos os senões
entre brechas
o sermão do sim
além da porta
o sono espera
RASURA
às escâncaras
a orfandade decadente
da consciência
alonga-se
amanhecida encardida
consentida
a infausta súplica
carne viva da memória
ao redor
o desconsolo submerso
do choro
esfacela-se
exasperado concentrado
inalterado
o estéril remédio
pátina paralisada da
loucura
(o tédio que qualifica
não é o que difere
tampouco o que iguala
mas o que devassa
o purgatório das palavras)
já cingida
a diáspora da vontade
multiplica a rede de
sensações
duma só vez
existe somente
o ser órfão
que a cada deslembrança
chora
na poeira incontida da
queda
o raso abismo
sem resposta
eu, cântaro amargoso
apesar
do outro
aqui
ASSOMBRO
o que assombra nas margens
corta enormes cordilheiras
de afogado
o que amorna nos remansos
apodrece imundas riquezas
de cais
com sua gramática, assim,
entre cordilheiras e riqueza
o rio volta a ser, por um
dia, na matriz fora do cais
o outro possível rio que em
volta de si mesmo
reacende colinas de ontem
qual campo onde a chuva
pára
o rio não é última nem
primeira morada
qual flor aonde águas
impacientam-se
o rio sem amarras desamarra
suas febres dementes
o que o rio assombra
(donde enganos produz)
de certo ele mesmo amorna
o que o rio corta
(por onde e aonde passa)
surpreende, por lados,
afogados fôlegos
ele, já quase esgotado
do que tudo, até faz
na tarde, mais forte
fez-se lábio das horas
no avesso da infância
barba envelhecida, não
lição que as coisas findas
ganham para a vida
hoje, o rio do amanhã
feito rei, concha idêntica
a lei que é libertinagem,
volta
MURMÚRIO
habitante das
distâncias
o homem
preconiza
o amanhecer de
outras margens
lento, caminha
além dos oceanos
saboreia
histórias, salmos e reza
em novas manhãs
senhor de sua
sina
vai, com o deus
inscrito na pedra
de todas as
esperas
este homem
cumpre a insana
profecia do
destino:
cozinhar sonhos
numa caverna
onde as páginas
de luz
(uma a uma
borradas pela solidão)
são lágrimas de
abandono
expelidas pela
sacra penumbra
do anjo
delirante
ele mesmo
PARTIDA INTEIRA
Minha alma cega
enxerga o teu corpo
rasgando
os sóis nus da madrugada
Minha alma louca
persegue os teus olhos
incendiando
as luas tortas da noite
Minha alma vã
colhe o teu cheiro
mergulhando
nos ventos doídos da tarde
Minha alma vai
sem pressa
ao encontro
da perdição:
um corpo só corpo
sem alma
a minha
ARDOR
Só, arrancas a flor
na tarde cinza,
sobrevive
a melancolia, lenço
esquecido
cresce
a febre do pranto, sopro
envergonhado
cala
em mim.
Só, enches a pele
na rotina da voz
atira
a sombra do alto, relógio
atiça
a distância furtiva do
gesto
desgovernado
preso
em ti.
Sós, os corações
embebedam-se
cegos pelos beijos
não trocados
olhos rodeiam
a boca da palavra
em torno da mesa
mutação bissexta
a mão fechada
mal remenda o tempo.
Sós, dormem os nomes
tardios das promessas.
Sílabas apalpam o vazio
uma hora irrompe
a haste rútila da matéria
quase evoca
a pele–flor
já nada mais será
Só.
MIRANTE INCLINADO
dormir
no claro abismo da
madrugada
volta
céu tão pouco azul
visto do quarto
de uma janela talvez
algumas tempestades
pelejam
com hedionda
fúria
para esvaziar
por inteiro o silêncio
acordar
no meio impossível da
espera
guarda
sentido bem mais diverso
parado na sala
de um canto qualquer
tantas vertigens
retornam
sem sua sufocante
saudade
para alisar
pela metade
a ilusão
do que em mim
é lembrança
NEBLINA
Na natureza
a chuva faz
sua letra devagar.
A palavra
aciona no chão
suas origens:
um mar de planta
a hibernar
nomes no caule
das árvores ao vento
a haste além
da aparência mineral
flor espremida
a desdobrar no rio
a plácida vertigem
do dia.
A voz geme
nos caminhos
da imagem a sussurrar
os ossos do encanto
nos longes
da linguagem
a dissolver venenos
nos confins
do tempo.
A noite acende
o anoitecer
no olhar das estrelas
a adivinhar o decapitar
do cacto prematuro
na esfinge do sol.
A luz ignora
o vazio
nas sombras
da nuvem
a estampar o azul
das estrelas
nos olhos
no firmamento.
SELO
a mesma casa
casca nascida
de distâncias
restauração
ausente
do lugar
a mesma mulher
vestido antigo
de mistérios
respiração
intensa
da forma
a mesma força
cortejo
alinhado de sinais
floração
insensata
da morte
a mesma
amargura
lei agreste de
semelhanças
dimensão
imaginária
do vício
a mesma sorte
peso pesado de
vestes
crime fáustico
da palavra
só uma coisa
não se vexa: repetir
a mesma casa a
mesma mulher
a mesma força
a mesma
amargura a mesma sorte
só uma amostra
não se perde: percorrer
distâncias
mistérios
sinais
semelhanças
vestes
tudo com a
mesma palavra pontuada
no lugar da
forma
no vício do
perdão
na morte
esse arremedo
de lei
(fé abarcante)
que sufoca
mesmo
*****
R. LEONTINO FILHO (Aracati-CE, 1961). Poeta e
Ensaísta. Publicou os livros de poemas: Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999),
Semeadura (1988), Sagrações ao Meio (1993), A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008) e Anatomia do ócio (2018). Página ilustrada com obras de
Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN
VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE
MORAES
os
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os
editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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