às infinitas luas dessas cidades
e suas atmosferas
sempre frágeis
e eu a me debruçar no buraco-negro
entre os ombros as sombras das janelas
passando
como os ventos e seus rumores harmônicos
que deslizam
pelas frestas dos trânsitos demônios
O COMEÇO
Este poema é como estória surgida
na têmpora deserta de um
sonho
estação do instante
herdeira da mão líquida
de sol
desfiladeiros da memória
pele e cristal dos olhos
como girassóis deitados na carne
e na palma do desejo
Inconsolável rouxinol explosante
de lótus e Shiva
flertando a abóboda esquecida em brumas
celestes
nossas vísceras recebendo o batismo da
cidade sonho
o poleiro divino
no ombro
o pássaro mágico
do caos
ÓRFICO DE UM JARDIM
encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como timbre noturno
atraindo meu olhar para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos vestígios do salto
na sombra do jardim onde carvalhos
nos campos estelares por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada de chamas pelos cantos tântricos
e o trago lá onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua não prende mais o transformar
nem as
asas do gavião da mente
nem o olhar atraído pelo ímã
e pela guelra da poesia contínua
ecoando feito aquele sujeito
que disse que não existia
e mesmo assim
foi dormir depois de beber
uns bons tantos tragos de cana
e amar loucamente como selvagem
na mágica noite toda escura
uma voz doce havia anunciado
e ela veio caminhando do sertão
marcando o chão com sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que me dá
e ressoa os cantos e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos brabos
que eclipsam nosso olhar
e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes da
existência
POEMA LEMBRADO – A QUEDA DA
POESIA
um dia
no alaranjado riso de fogo do ar
na varanda da vida
no despenhadeiro das almas
um anjo perdido
contou-me velhos sonhos dos céus
caímos com Lúcifer
nos labirintos de Deus
no murmúrio vertical de Adão
nas promessas e segredos do mistério
nas curvas das sobrancelhas sombrias
nos seios e no sexo de Eva
uma noite
na eterna tensão do Amor
na dose milagrosa do pecado
do pranto do cacto no olho do peito
na pesada e doce essência humana
o uivo e o sino da cumplicidade
circunscreve o mito
no livro e na minha pele
as pegadas do espírito
na empreitada febril
a contradição do olhar
da luz eterna na neblina
PEQUENA FÁBULA
O murmúrio da água
Um pequeno lagarto deitado ao sol
Um barco de vento cruzando o rio
Uma presença diluída se aproxima
É preciso ouvir a voz no abismo de dentro
Um olhar sustenido nasce no ventre oculto
ODE EM CONVULSÃO
I
Louvada seja a mulher
com seios de oceano
com os pés de vapor
e as coxas em chamas
Louvadas sejam suas pupilas e suas veias sutis
correndo despertas na minha alma
seus rios silenciosos seus gemidos seus telhados
abertos
suas veredas internas seus desvarios seus destinos
Louvada a mulher
com a cabeça reencontrada
com a tocha invisível
com a pele da chuva lavada
II
a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
pousam sobre ela borboletas circunscritas
e a rosa rara nasce de uma sinfonia noturna
nossa imaginação é convidada a transmutar a
realidade
nossa esperança é incentivada a alçar voo contínuo
uma chama irradia nossa medula na alta noite do dia
um vestígio de loucura perfura como sopro divino
um dia dilatado destila a vida no anjo de sua
saliva
a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
nascem sobre ela frutos preguiçosos de uma manhã
e eu sonho continuamente com seus olhos dentro de
mim
III
essa mulher com olhos de constelação
com olhos de água da fonte
com lábios entreabertos como a rachadura
na terra
como uma fenda por onde passa a luz da
voz
essa mulher com plumas de anjo noturno
com seu rosto revelando a busca
vertendo o vinho da voz no meu ouvido
com suas mãos de veludo
com seu gesto de dama perdida
no abismo do mundo
IV
Com os teus olhos eu sou a
multidão
Sou o abraçar do feto órfão
Sou a música sem tempo
Sou o laboratório do mundo
Sou o advento do rio de
sangue
Com os teus olhos eu sou um
louco
Sou as sete setas e as sete
vezes setenta mil estrelas do céu negro
Olhadas da janela das minhas
vidas anteriores
Sou a floresta nostálgica da
cidade
Vim aqui antes de nascer
Volvo o nada e o absoluto
Meu espírito é luta contínua
Meu peito eterna mesa de
operação
Medito na tentação e tento na
meditação
Sou dos que dançam luz na
escuridão
POSLÚDIO
há n’alma do cosmo um rio
em vidas muitas, que de vez
em quando, noite ou dia, insiste:
conduz como comboio de navio
em número de mil vezes mil e dez
as estrelas que viste
o abismo entre teus ombros foi
que caminhou teu coração e fez
verter em vinha o triste
*****
RODRIGO BARBOSA (Garanhuns-PE, 1979). Poeta e tradutor. Autor de Flâmulas,
Hidras & Coquetéis (2011) e tradutor de Construcción de la Destrucción (2013), do argentino Aldo pellegrini. Página
ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada
desta edição.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número 113 |
Maio de 2018
editor geral |
FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo &
design | FLORIANO MARTINS
revisão de
textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de
tradução
ALLAN VIDIGAL |
ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos
assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não
se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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