quinta-feira, 3 de maio de 2018

DEZ POEMAS DE RODRIGO BARBOSA



PRELÚDIO

às infinitas luas dessas cidades
e suas atmosferas
sempre frágeis
e eu a me debruçar no buraco-negro
entre os ombros as sombras das janelas
passando
como os ventos e seus rumores harmônicos
que deslizam
pelas frestas dos trânsitos demônios  


O COMEÇO

Este poema é como estória surgida
na têmpora deserta de um sonho
estação do instante
herdeira da mão líquida
de sol
desfiladeiros da memória
pele e cristal dos olhos
como girassóis deitados na carne
e na palma do desejo

Inconsolável rouxinol explosante
de lótus e Shiva
flertando a abóboda esquecida em brumas celestes
nossas vísceras recebendo o batismo da cidade sonho

o poleiro divino
no ombro
o pássaro mágico
do caos


ÓRFICO DE UM JARDIM

encontrei Rosa
entre vetustos sonhos
vestida e despida
pelas estradas errantes
transpirando como timbre noturno
atraindo meu olhar para as vielas
labirínticas e sincrônicas
dos mais lúcidos vestígios do salto
na sombra do jardim onde carvalhos
nos campos estelares por onde passamos
louco cálice transfigurando
como numa revoada
rajada de chamas                 pelos cantos tântricos
e o trago lá                 onde se deixa brilhar quanto quiser
e a língua       não prende mais o transformar
nem    as asas do gavião da mente
nem o olhar atraído pelo ímã
e pela guelra da poesia contínua
ecoando feito aquele sujeito
que disse que não existia
e mesmo assim
foi dormir depois de beber
uns bons tantos tragos de cana
e amar loucamente como selvagem
na mágica noite toda escura

uma voz doce                        havia anunciado
e ela veio caminhando         do sertão
marcando o chão com sua sapatilha
de mira-celi ascendente
por ser aquela que me dá
e ressoa os cantos e os gritos de todos
de séculos sem fins
de pálpebras e pensamentos
expulsando os troncos brabos
que eclipsam nosso olhar

e assim com as sombras
de algumas filosofias
os lívidos lábios da amante
me plantam e me lançam
pelos lençóis misteriosos
da vibração e galopes da
existência


POEMA LEMBRADO – A QUEDA DA POESIA

um dia
no alaranjado riso de fogo do ar
na varanda da vida
no despenhadeiro das almas
um anjo perdido
contou-me velhos sonhos dos céus

caímos com Lúcifer
nos labirintos de Deus 
no murmúrio vertical de Adão
nas promessas e segredos do mistério
nas curvas das sobrancelhas sombrias
nos seios e no sexo de Eva

uma noite
na eterna tensão do Amor
na dose milagrosa do pecado
do pranto do cacto no olho do peito
na pesada e doce essência humana
o uivo e o sino da cumplicidade

circunscreve o mito
no livro e na minha pele
as pegadas do espírito
na empreitada febril
a contradição do olhar
da luz eterna na neblina


PEQUENA FÁBULA

O murmúrio da água
Um pequeno lagarto deitado ao sol
Um barco de vento cruzando o rio
Uma presença diluída se aproxima
É preciso ouvir a voz no abismo de dentro
Um olhar sustenido nasce no ventre oculto


ODE EM CONVULSÃO

I

Louvada seja a mulher
com seios de oceano
com os pés de vapor
e as coxas em chamas

Louvadas sejam suas pupilas e suas veias sutis
correndo despertas na minha alma
seus rios silenciosos seus gemidos seus telhados abertos
suas veredas internas seus desvarios seus destinos

Louvada a mulher
com a cabeça reencontrada
com a tocha invisível
com a pele da chuva lavada

II

a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
pousam sobre ela borboletas circunscritas
e a rosa rara nasce de uma sinfonia noturna

nossa imaginação é convidada a transmutar a realidade
nossa esperança é incentivada a alçar voo contínuo
uma chama irradia nossa medula na alta noite do dia
um vestígio de loucura perfura como sopro divino
um dia dilatado destila a vida no anjo de sua saliva

a mulher suave oscila entre o desejo e o incêndio
nascem sobre ela frutos preguiçosos de uma manhã
e eu sonho continuamente com seus olhos dentro de mim

III

essa mulher com olhos de constelação
com olhos de água da fonte
com lábios entreabertos como a rachadura na terra
como uma fenda por onde passa a luz da voz
essa mulher com plumas de anjo noturno
com seu rosto revelando a busca
vertendo o vinho da voz no meu ouvido
com suas mãos de veludo
com seu gesto de dama perdida
no abismo do mundo

IV

Com os teus olhos eu sou a multidão
Sou o abraçar do feto órfão
Sou a música sem tempo
Sou o laboratório do mundo
Sou o advento do rio de sangue
Com os teus olhos eu sou um louco
Sou as sete setas e as sete vezes setenta mil estrelas do céu negro
Olhadas da janela das minhas vidas anteriores
Sou a floresta nostálgica da cidade
Vim aqui antes de nascer
Volvo o nada e o absoluto
Meu espírito é luta contínua
Meu peito eterna mesa de operação
Medito na tentação e tento na meditação
Sou dos que dançam luz na escuridão



POSLÚDIO

há n’alma do cosmo um rio
em vidas muitas, que de vez
em quando, noite ou dia, insiste:

conduz como comboio de navio
em número de mil vezes mil e dez
as estrelas que viste

o abismo entre teus ombros foi
que caminhou teu coração e fez
verter em vinha o triste


*****

RODRIGO BARBOSA (Garanhuns-PE, 1979). Poeta e tradutor. Autor de Flâmulas, Hidras & Coquetéis (2011) e tradutor de Construcción de la Destrucción (2013), do argentino Aldo pellegrini. Página ilustrada com obras de Jasmine Thomas-Girvan (Jamaica, 1961), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 113 | Maio de 2018
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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