quarta-feira, 21 de novembro de 2018

HOMERO SENNA CONVERSA COM MURILO MENDES


Antiburguês por excelência, nem mesmo o cartório que não há muito lhe arranjaram (e que por sinal não é dos mais rendosos) conseguiu fazer com que Murilo Mendes perdesse aquele seu ar entre infantil e lunático, que levou outro grande poeta, dos que prescindem até do verso para exprimir-se - Rubem Braga - a dizer dele que é “de Juiz de Fora e do mundo da lua”.
Sua biografia está pontilhada de anedotas saborosíssimas, reveladoras do seu espírito absolutamente avesso a deixar-se prender em fôrmas e moldes. Desde os seus tempos de mocidade, quando praticava o poema-piada e, batendo com amigos à porta das casas burguesas de Botafogo, censurava asperamente, à pessoa que vinha abrir, o mau gosto do proprietário, até àquela deliciosa sentença que está n’O Discípulo de Emaús: “Prefiro a nuvem ao ônibus”, Murilo Mendes não saberia nunca deixar-se requentar nessa temperatura de banho-maria em que transcorrem tantas vidas. Embora tenha caído de todo o comprimento no chão do Municipal, no intervalo de um concerto, diante do comentário de uma amiga, e haja, ainda recentemente, em Belo Horizonte, deixado a mesa de onde deveria pronunciar uma conferência, para ir iniciá-la do outro extremo da sala, fugindo assim à fumaça do magnésio dos fotógrafos - não se pense que o poeta é incapaz de tomar pé neste mundo. Ao contrário, poucos serão os amigos mais dedicados e constantes, e nem apenas a música e a poesia constituem suas preocupações, vivendo ele também, como uma vez já se acentuou, “em estreita comunhão com as variações sociais, políticas e morais do tempo”.
Tendo morado em vários bairros, neste Rio de Janeiro que conheceu ainda com seus bons hábitos de cidade provinciana e pacata, tão subitamente desaparecidos, algumas das casas em que residiu ficaram célebres - como a da Rua Marquês de Abrantes, posta abaixo para que em seu lugar se levantasse um horrendo arranha-céu. E em todas elas Murilo sabia trazer o seu quarto de solteirão arrumado sempre com notável ordem e bom gosto, e tornar poético o ambiente em que, com suas lentas passadas, se movia.
Volvidos os anos, é mesmo o clima que vou encontrar na casa da Rua Ibituruna nde foi residir depois do seu casamento (para o qual não houve convites) com a escritora portuguesa Maria da Saudade Cortesão, filha do historiador Jaime Cortesão e ela própria poetisa e jornalista. Lá estão os mesmos livros escolhidos e bem cuidados, os mesmos álbuns de discos, a mesma vitrola coberta com um pano de altar bordado a ouro, os mesmos quadros (além de outros, novos) de Maria Helena Vieira da Silva, Pancetti, Portinari, Ismael Néri, Cícero Dias, Marcier, as mesmas imagens de santos e, na parede, o mesmo anjo com o gládio (será mesmo um gládio?) - elemento decisivo na composição do ambiente.
Passando a responder ao questionário que lhe apresentei, do qual a primeira pergunta dizia respeito aos motivos que o levaram a tornar-se escritor declara-me:

A questão da vocação do escritor está ligada ao mistério da própria vida e da criação. Quanto ao meu caso particular, posso dizer que encontrei na literatura um modo de exteriorizar a revolta diante do convencionalismo, do superficialismo e do farisaísmo do ambiente social que me cercava.

- Quais as pessoas que maior influência exerceram em sua formação intelectual?

Não tive, na infância nem na adolescência contato com o que penso deva ser o Mestre, no conceito antigo, grego, medieval da palavra. Esses mestres talvez ainda existam na Europa. No Brasil, em Minas ou aqui no Rio, não tive a felicidade e os encontrar. Pelo contrário, vi foram os professores burocratas, escravos dos programas e sem o menor entusiasmo pela obra que realizavam. Assim, pessoa que marcasse influência em minha formação só vim a conhecer depois dos vinte anos: meu grande amigo Ismael Néri, que me trouxe ao catolicismo. Ismael era um espírito verdadeiramente original, profundo e elevado, do qual os escritores e artistas, via de regra, se afastavam por não poderem tolerar a sua força.

- Mas o ambiente que você, teve em casa não era favorável à arte?

Absolutamente. O ambiente em casa não era literário nem propício a qualquer manifestação artística. Meu pai era um homem prático e por isso ficou horrorizado quando, certo dia, perguntando-me o que queria ser, eu lhe respondi muito candidamente que queria ser poeta. Aliás, ensaiei várias profissões, fui prático de dentista, aprendiz de guarda-livros, auxiliar de telegrafista, estudante de Farmácia e de Direito e de fato não me sentia com vocação para nada, tinha e tenho uma irremediável falta de jeito para a vida prática.

- E dos autores, houve algum que o impressionasse mais fundamente?

Na adolescência, os que li com maior sofreguidão e marcaram mais minha formação foram Victor Hugo, Baudelaire e Apollinaire. Mais tarde os super-realistas vieram a ter sobre mim grande influência. Depois da minha conversão ao catolicismo, passei a me interessar sobretudo pela obra dos filósofos e pensadores, e, destes, principalmente Platão, Pascal, Kierkegaard e Novalis hão de ter influído em meu espírito. Sem falar no Novo Testamento, que é a minha leitura predileta. Mas não estaria sendo exato se neste capítulo falasse apenas de pessoas e livros, quando houve muitos outros fatores que tiveram sobre minha formação uma influência poderosíssima e decisiva. Estão neste caso a música, para a qual desde criança me senti extraordinariamente atraído, o cinema, de que sou contemporâneo e que em determinada época muito me apaixonou, e a pintura, que também sempre me seduziu. Infelizmente não temos ainda instrumentos críticos poderosos para precisar até que ponto as outras artes exercem influência sobre a formação de um poeta. Mas a verdade é que me sinto em grande escala devedor da música, do cinema e da pintura. Dos músicos, devo destacar Mozart, de quem descubro sinais até mesmo no aperfeiçoamento do meu caráter, e que poliu certas arestas do meu temperamento. Pelo cinema me apaixonei de tal maneira que o estudei a sério durante longo tempo, chegando, mesmo, a escrever um livro sobre o assunto, livro que queimei logo depois de terminado. E sou o primeiro a reconhecer que o meu volume de estreia, Poemas, foi feito em grande parte sob o signo da pintura. Além das artes, há outros fatores que os poetas em geral não destacam quando falam de sua formação, relegando-os a segundo plano, mas que às vezes são da maior importância. Foi o que se deu comigo, por exemplo, com o cometa de Halley, cuja aparição, no princípio do século, me deslumbrou quase até ao delírio. Eu tinha então nove anos, e morava em Juiz de Fora. Mas ainda hoje a visão do cometa de Halley é uma das impressões mais fortes que guardo. Nunca vi coisa mais
bela do que aquele corpo luminoso, com a sua enorme cauda resplandecente de estrelas, passeando pelo céu de minha cidade natal. Durante as três noites em que apareceu não dormi um minuto sequer e talvez tenha sido esse o primeiro instante em que me senti tocado pela Poesia … Propriamente sobre minha formação como católico, não posso deixar de citar dois beneditinos: Dom Martinho Michler e Dom Tomás Keller, dos mais ilustres teólogos da Igreja atual, que conheci no mosteiro de São Bento.

- Onde foi publicada sua primeira produção literária?

Num jornal de Juiz de Fora intitulado “A Tarde”. Era uma espécie de poema em prosa, mas confesso que não experimentei a menor sensação ao vê-lo impresso. Deixou-me absolutamente frio.

- Na sua opinião, quais serão as características da poesia de amanhã?

Em geral não gosto de fazer prognósticos, mas a julgar pelo rumo que vai tomando o mundo, creio que a poesia do futuro terá um caráter místico e também social, coletivo, comunitário. Deverá trazer aos homens uma palavra de esperança, de consolo, e deverá ser educativa no mais alto sentido do termo, celebrando os sofrimentos, as misérias e grandezas do Homem e a perenidade de Deus. Revestirá, sem dúvida, como hoje ocorre, um duplo caráter, erudito e popular, não sendo impossível que apareçam novas formas de intercomunicação poética.

- Não acha acadêmico o debate em torno do individual e do social em arte?

Quando esse debate é travado entre escritores, acho. Mas em jornal, para esclarecer o povo, admito que se volte a essa discussão que tem sido continuada pelos novíssimos esnobes da Economia Política. De qualquer maneira, o problema me parece mal colocado. E isto porque o artista, em si, é sempre individualista, o que não o impede de compreender e interpretar os anseios da coletividade. A finalidade da literatura não é política, em si; consiste em aumentar, aperfeiçoar e elevar o patrimônio espiritual da humanidade. Todo homem que cria beleza, seja por um verso sobre uma rosa ou uma borboleta, aumenta o bem-estar da comunidade. Os representantes da corrente espiritualista falam nisso em nome do Espírito com E grande. Por sua vez, os representantes da corrente materialista atacam o espírito. Ambas as facções têm razão em parte. É preciso, de fato, defender os valores do espírito, mas sem esquecer que esta posição de defesa implica altos deveres, dos quais não é o menor o de ajudar a promoção de uma cultura verdadeiramente humanística e popular. A torre de marfim só existe no papel. Mas o homem de pensamento não tem apenas deveres. Tem também direitos, o mais importante dos quais é, sem dúvida, o de ser independente na sua criação.

- Que destino prevê para a Poesia? Pensa que ela se tornará cada vez mais livre, ou a tendência será para voltarmos aos moldes antigos?

Condeno o recurso sistemático aos velhos clichês de expressão. Está claro que com isso não quero decretar, por exemplo, a morte do soneto, gênero a que ainda agora meu amigo Jorge de Lima acaba de dar expressão inteiramente nova. Acho que o motivo convencional, a expressão obsoleta e morta é que é preciso combater.

- Já não se nota hoje certa reação antimoderna, partida sobretudo dos moços que anualmente deixam as nossas Faculdades de Filosofia?

Atribuo a reação de alguns moços à ausência de informação da maioria dos mestres sobre o estado atual da literatura e da arte moderna. Os mestres, em geral, ou têm parti pris, ou não estão suficientemente informados. Atribuo-a, também, em parte, à estrutura antiquada do regime capitalista em que vivemos e em parte à displicência e ao desinteresse da maioria dos artistas em iniciarem o leitor comum na compreensão da arte moderna. A esse respeito, penso que a ação pessoal, doutrinária, de explicação de cada um é muito necessária. E a verdade é que os artistas modernos - poetas, músicos, pintores, arquitetos - de um modo geral se têm descuidado disso.

- Nascido em 1901, tinha Murilo Mendes, por ocasião da Semana de Arte Moderna, mais ou menos vinte anos de idade. É sabido que sua obra poética de certa maneira se desenvolveu à margem do movimento irrompido em São Paulo por volta de 1922. Por isso mesmo seria interessante apurar que atitude tomou em face do Modernismo. A resposta não se faz esperar:

Em 1922 eu estava no Rio, olhando de longe e com simpatia o movimento, mas sem aderir oficialmente, porque nunca tive instinto gregário, o que sempre me impediu de fazer parte de qualquer grupo. Publiquei alguns poemas em “Terra Roxa e Outras Terras” e em “Antropofagia”, as revistas que o Oswald de Andrade dirigiu em São Paulo, mas não tive ação mais saliente na revolução literária e artística liderada por Mário de Andrade. Acho, porém, que o movimento, que representou ação paralela ao desenvolvimento das ideias de transformação política que nos conduziram à Revolução de 30, mas que deve ser visto, também, como conseqüência do surto de renovação por que passou todo o mundo ocidental depois da guerra de 1914, foi muito útil à nossa literatura. É verdade que não criou grandes coisas, mas policiou o ambiente literário, dando possibilidades aos novos poetas e escritores de exprimirem os anseios da era nova que se aproximava. [1]

- Do Modernismo passamos a falar do caráter hermético de certas obras - músicas, poemas, quadros - de alguns artistas contemporâneos, e a propósito assim se expressou o meu entrevistado:

Em primeiro lugar, de uma maneira geral, nego que tenha caráter hermético a obra de arte moderna. Nego, por exemplo, que haja caráter hermético na poesia do meu caro amigo Carlos Drummond de Andrade, na pintura de Portinari e na música de Vila-Lobos. Evidentemente, é preciso uma certa iniciação para a compreensão dessas obras. Mas para tudo na vida é preciso iniciação, inclusive para ler a cartilha… O escritor não pode, em absoluto, sob pena de trair sua missão, modificar suas obras, sob pretexto de agradar a quem quer que seja. Compete aos educadores, aos grupos culturais, às autoridades de educação e cultura e também aos próprios escritores, promover debates, conferências, irradiações, exposições, audições, para levar o homem do povo até à compreensão e à fruição de todas as obras de arte, mesmo as pretendidas herméticas. É preciso, por exemplo, no caso da pintura, explicar, aos que não entendem, que a deformação existe em primeiro lugar na natureza, não sendo, por conseguinte, invenção dos artistas modernos. E que os pintores mais acusados disso, como Picasso e, entre nós, Portinari, não deformam sistematicamente, existindo também neles, e até em alto grau, o senso da proporção e da harmonia, segundo a medida clássica. De resto, se a natureza produz deformações plásticas, convém notar que os monstruosos regimes políticos modernos como que se especializaram na criação de aleijões, no sentido não só moral, mas também físico, o que fez com que Picasso respondesse lepidamente ao embaixador nazista em Paris: “Quem pintou Guernica foram vocês.” Ademais, a arte comporta um aspecto de transposição e transfiguração da realidade objetiva que podemos ver em muitos exemplos clássicos. Na pintura posso citar, de momento, Bosch, Grünewald, Leonardo e Greco, além de inúmeros outros, que também deformaram. No que diz respeito ao hermetismo poético, na literatura clássica, entre mil exemplos, temos Góngora e Sceve, que aos olhos de muitos parecem ininteligíveis. E na música não falta quem ache herméticos os Quartetos de Beethoven.

- O poeta deixa a cadeira preguiçosa em que estava recostado, vai até uma pequena estante e, apanhando uma revista, continua:

Um grande escritor, que não é absolutamente hermético – André Gide - escreveu há pouco, nesta revista, um artigo em que comenta a definição de Poesia dada por Théodore de Banville (outro escritor nada obscuro), artigo que elucida bem a questão. A definição de Banville é a seguinte: “A Poesia é um sortilégio que consiste em despertar sensações com a ajuda de uma combinação de sons; essa feitiçaria, graças à qual certas ideias nos são necessariamente comunicadas, de uma determinada maneira, por palavras que, entretanto, não as exprimem.” A propósito, Gide cita uns versos de Éluard, que ele confessa lhe produzirem o maior prazer e encantamento devido somente à sonoridade e à combinação mágica dos vocábulos, acrescentando que tal poesia escapa à compreensão da inteligência, à crítica e ao bom senso comum.6 Eu, pessoalmente - observa - devo frisar que não adoto de modo integral essa concepção da poesia como simples combinação encantatória de sons, embora a compreenda e admita. Acho, por conseguinte, absurdo que o poeta deixe de publicar uma poesia apenas por não ser facilmente inteligível. No caso particular da poesia super-realista, que é a mais visada, reconheço que a fórmula inicial, de espontaneidade, automatismo e abandono, de fato transformou-se no fim num clichê intolerável de exploração do subconsciente e do irracional, que entra em choque com uma concepção humanística da vida. Entretanto, não considero esgotada a missão do super-realismo.

- Mas não conta a poesia moderna com poucas possibilidades de descer às camadas populares, correndo o risco de pairar sempre numa esfera muito limitada?

A causa do divórcio existente entre os poetas modernos e o grande público reside principalmente no abandono da métrica de sílabas contadas no dedo e da rima. A poesia era, até à renovação moderna, uma coisa essencialmente mnemônica. O leitor gostava daquela cadência embaladora e das palavras rimando no fim ou no meio dos versos. Ora, isso se deu durante séculos, ao passo que a reação moderna é de ontem. A diferença é muito grande e o público não está ainda acostumado. E preciso que os responsáveis, a começar pelos próprios escritores, iniciem os leitores e os críticos nos mistérios e nas belezas desta nova Arte Poética, mostrando-lhes que, como na música prevaleceu durante anos e anos o sistema tonal grego, depois substituído pelo da
monodia cristã do canto gregoriano e, a seguir, pelo da atonalidade moderna, assim também pode existir um sistema poético grande e belo sem o recurso à rima. Quanto a mim, não condeno nem adoto, a priori, qualquer sistema de metrificação. O que condeno - como acima já disse - é a tentativa de voltar aos cânones acadêmicos, às formas peremptas de expressão. E gostaria, também, que não se esquecesse de que o poema pode valer independentemente dos resultados de interpretação lógica ou pragmática dos vocábulos que o compõem.

- Há, no Brasil, muitos poetas herméticos?

Não conheço nenhum. Como esta é uma crença mais ou menos generalizada, pelo menos no que respeita a certos autores modernos, seria o caso de se escreverem, sob o patrocínio das instituições literárias e das autoridades de educação e cultura, estudos interpretativos dos livros desses poetas pretendidamente herméticos, como em relação à obra de Góngora fez Dámaso Alonso e à de Mallarmé (que muitos consideram obscuríssimo), E. Noulet.

- O poema-piada, que certos poetas modernistas praticaram, não concorreu para o desprestígio da Poesia?

Meu amigo, o poema anedótico, que há tempos também me seduziu, é hoje coisa inteiramente ultrapassada, superada e dever ser entendido como uma reação dos poetas ao espírito burguês e à superstição da sagrada forma, que o Parnasianismo nos legou.

- Outra crítica que se faz comumente à poesia moderna é de que não há ninguém que saiba de cor um desses poemas sem métrica nem rima, o que dá aos mais apressados a impressão de que, assim como não se gravam na memória dos leitores, também não se gravarão na história literária, sendo, por conseguinte, eminentemente perecíveis. Nesta ordem de ideias, é fatal o confronto com a poesia romântica de fácil memorização, que se recitava antigamente nas festinhas familiares, ao som da Dalila. Apresento a questão a Murilo Mendes, que não se impressiona com ela e sem pestanejar responde:

A facilidade de memorização do poema é independente do seu valor literário. Dante tem sete séculos. Que é que se sabe de Dante? Nel mezzo dei cammin di nostra vita e Per me si va nella città dolente, isto é, o começo da Divina Comédia e a passagem célebre do Inferno. Nada mais. O povo guardou a Divina Comédia? Em absoluto. E essa história de que ninguém se recorda dos poemas modernos não é verdadeira. A pedra no meio do caminho, de Carlos Drummond, ficou tanto quanto o I-Juca-Pirama. O argumento da popularidade também não procede como demonstração da superioridade dos poetas românticos sobre os modernos. Porque precisamos não nos esquecer de que no século XIX a poesia virou um jogo de salão como outro qualquer, ótimo para uma época sonolenta, ociosa, como a que então se vivia. Ora, a poesia é uma coisa muito alta, profundamente ligada ao destino transcendente do homem, é uma chave do conhecimento do universo, como a religião e a ciência, e não pode, portanto, ser relegada à condição de um passatempo frívolo. [2] Aliás, de modo geral. acho os nossos poetas românticos muito cacetes, e tirando de suas obras as peças de antologia, que são, de fato, obras-primas, o resto é de uma banalidade desanimadora. Quem os leu e decorou não tinha educação artística. Logo, sua popularidade não prova nada contra a minha tese. E apenas a estima de que gozou e ainda goza Castro Alves me parece justa porque o poeta baiano soube ligar a sorte da sua poesia a uma grande causa humana, que foi a abolição da escravatura.

NOTAS

1. Na mesma carta, datada de 9-5-1965, pediu-me Murilo Mendes: “Gostaria que você retificasse a frase de pág. 299 (da I.” edição de República das Letras): ‘É verdade que não criou grandes coisas.’ (Sobre o movimento modernista: acho o contrário.)”
2. Em depoimento sobre A poesia e o nosso tempo, publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 25/07/1959, Murilo voltou a afirmar: “Desde muitos anos insisto em que a poesia é uma chave do conhecimento, como a ciência, a arte ou a religião”. Nesse texto, aliás, são aprofundadas várias questões debatidas nesta entrevista. Pode ele ser lido na in Presença da literatura brasileira, de Antonio Cândido e José Aderaldo Castelo. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel, 1975, vol. III, pp 176-181.


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Entrevista realizada por Homero Senna e publicada originalmente nas revistas de O Jornal, de 09/12/1945, e do Globo, de 01/04/1950, e republicada no livro Republica das letras (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 3ed. 1996). Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994), artista convidado da presente edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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