quarta-feira, 21 de novembro de 2018

SILVEIRA PEIXOTO CONVERSA COM CORNÉLIO PIRES


Todos os que, num país como o nosso, insistimos em realizar o milagre de viver com o produto de uma atividade intelectual, sabemos, muito bem, que não existe a menor relação de equidade, entre o miolo de cérebro que damos e a insignificância do miolo de pão que recebemos.
Por que, então, insistimos? Porque, embora reconhecendo e identificando o fato, não lhe ligamos a importância que os outros lhe atribuem. O homem de pensamento compreende e sente, em toda a sua amplitude, a grande verdade que se consubstancia no preceito bíblico: “nem só de pão vive o homem”.
O pão, no sentido que o burguês empresta ao vocábulo, nós o relegamos a plano bem secundário. Nossas aspirações pairam bem mais alto: as coisas sublimes do espírito são as que principalmente nos preocupam. Somos animados pela força indomável e incoercível de um ideal de estética e de arte.
Por que, então, estou assinalando o fato? Por que estou dizendo que a inteligência é moeda que, na generalidade dos casos, não tem cotação no mercado? A resposta é simples. Devo aludir à regra, para dar maior realce à exceção que vou referir: Cornélio Pires.
É curioso e chega, mesmo, a ser estranho que, a esse respeito, as coisas, com ele, tenham acontecido de maneira justamente inversa, ou, melhor, que, no seu caso, a exceção é que tenha sido a regra. Com efeito, a sua verve de humorista consumado e irresistível tem-lhe dado verdadeiras fortunas.
Tivesse Cornélio reunido o que tem ganho com suas conferências e com seus livros e, certamente, não faltaria muito para ser nababo. Poderia viver confortavelmente instalado em um palácio, dispor de automóveis de classe, conhecer todas as facilidades que a opulência oferece.
Mas, nenhuma dessas coisas ele possui e nada disso lhe é possível gozar. Reside numa casa pequenina e modesta, numa rua descalça de um bairro longínquo - a Rua Amélia, na Lapa. É obrigado a suportar, diariamente, a caturrice burocrática e os sacolejões impertinentes de um bonde plebeu. É com o suor do próprio rosto, que tem de amassar, laboriosamente, o pão de cada dia.
 E as dezenas de contos de réis que lhe renderam as palestras e os volumes de anedotas, para onde teriam ido? Aí, justamente, é que está o aspecto paradoxal do caso Cornélio Pires. Tudo o que a literatura lhe deu, a indústria e o comércio lhe tiraram.
Conseguiu, de uma feita, reunir um capital apreciável. Quis, então, aburguesar-se; alimentou o sonho de ficar rico… Decidiu-se, por isso, a abandonar suas atividades intelectuais e a instalar uma olaria. Não demorou muito, porém, tudo deu para trás e não lhe foi possível evitar o fracasso.
Outra vez, com os “cobres” que lhe resultaram de uma série de conferências, abriu uma loja de curiosidades, em que as bolsas de casca de tatu se misturavam às paisagens feitas com asas de borboletas e aos cintos de couro de cobra. Logo mais, o estabelecimento foi por água abaixo…
O Destino, como veem, é sobremodo caprichoso para com ele e faz que lhe ocorra precisamente o contrário do que aos outros acontece. Ganha dinheiro com as suas anedotas, para perdê-lo em atividades que, regra geral, proporcionam lucros fabulosos aos que a elas se dedicam.
Assim relatada a incoerência da sorte de Cornélio, deixem-me examinar uma faceta de sua personalidade.
Todos os que tiveram oportunidade de ouvir uma de suas palestras, ou assistir a um dos espetáculos que, de tempos a tempos, ele promove, sabem de quanto é capaz a sua veia de humorista. Quando está em um palco, ou quando sobe ao estrado de um salão, Cornélio não admite que alguém, na assistência, não escancare os maxilares, em gargalhadas intermináveis.
A coisa muda, inteiramente, no entanto, se, entre os ouvintes, há alguém de sua família: trava-se-lhe a língua, perde a graça, fica impossibilitado de emprestar à narrativa a vivacidade necessária. Para que tudo corra bem, é preciso que os seus se abstenham de ouvi-lo.
Certa ocasião, uma parenta insistiu: esperou que ele iniciasse a palestra e entrou, muito sorrateiramente, no teatro. A plateia ria continuamente, sem parar, e o sucesso já estava assegurado, quando os olhos de Cornélio, a dado momento, descobriram a cunhada, numa das últimas filas…
Foi o bastante para que ficasse totalmente inibido. Prosseguiu, é verdade, mas a muito custo, hesitando e gaguejando, sem conseguir dar, ao que dizia, o colorido indispensável a produzir o efeito desejado. Foi um insucesso completo.
Acrescente-se: na intimidade ou entre amigos, Cornélio Pires, o homem que mais tem feito rir o Brasil, fica todo sisudo, todo compenetrado, todo soturno e é incapaz de dizer uma piada que preste. E anote-se, ainda: nasceu em Tietê, uma pequena cidade do interior paulista e “não se lembra”, muito ao certo, quantos anos já tem, sinal evidente de que esses anos já devem ser contados por várias dezenas…
Faz muitos dias que ando à procura de Cornélio Pires, a ver se dele obtenho uma entrevista, quando, afinal, o acaso vem em meu auxílio e encontro-o à porta de um café, em plena Rua Líbero Badaró. Gordalhudo, o chapeirão enorme à cabeça, o cigarrão de palha espetado entre os dentes, está muito pacatamente conversando com dois amigos.
Não perco a oportunidade. Agarro-o pelo braço e, apesar de todas as suas banhas, acho forças para rebocá-lo até uma das mesas. Obrigo-o a sentar-se e, antes mesmo que ele se refaça da surpresa, intimo-o: Você vai me dar uma entrevista.

Eu?!

- Você mesmo, sim. E deixe de olhar-me com esses olhos arregalados.

Mas… É que eu… Não sei explicar-me por que você vem pedir-me uma entrevista… Sou uma espécie de “corpo estranho”, no mundo literário e intelectual de São Paulo. Vivo muito quieto, no meu cantinho, recolhido à minha insignificância… Sinceramente, isso até me comove…

- Não é preciso. Quero é a entrevista.

Mas, deixe ao menos que me refaça da surpresa. Quando você me agarrou, à porta, até pensei que ia ser sequestrado. Com perdão da palavra, julguei que estava sendo vítima de um “gangster”. E agora você me fulmina, à queima-roupa, com o pedido de uma entrevista. É emoção muito forte… Fiquei assustado…

O garçom aproxima-se. Pedimos café. E enquanto saboreamos a rubiácea, formulo a primeira interrogação: Quando você começou?

Quando comecei o quê?

- Quando começou a escrever?

Muito criança. Deixe dizer a coisa desde o princípio. Como sabe, nasci na roça. Ainda garoto, amanhecia nos fandangos, assistindo a “cururus” e “cateretês”. Gostava imenso dessas danças e atribuo isso a uma questão de atavismo.

- Atavismo?!

Ou coisa parecida. O “cururu” e o “cateretê” são de origem indígena e é bem possível que já fossem dançados Pelos meus décimo terceiro e décimo quarto avós, isto é, por Piquerobi e Tibiriçá.

Tira um pedaço de fumo do bolso, escolhe uma palha e va preparar outro cigarro, quando surpreende uma certa incredulidade nos meus olhos.

Você está duvidando, hein? Pois embora isso pareça uma boa mentira, a verdade é que descendo daqueles dois caciques. Já estudei muito bem o caso e cheguei a essa conclusão. Ainda lhe mostrarei a minha árvore genealógica que, aliás, é uma verdadeira complicação internacional.

Enrola o cigarro, acende-o, tira uma baforada e continua:

Uma complicação tremenda, que eu mesmo ainda não pude entender. Engraçado é que o sangue português que tenho nas veias, pois descendo de Antônio Rodrigues e João Ramalho que, dizem por aí, naufragaram em 1502 e deram à costa de São Vicente - sempre me atraiu, também, para os “viras” e os fados. Por seu turno, o galho castelhano me deixou inclinação especial para os trocadilhos. Do holandês, me ficou uma tendência para o fumo, a cerveja e a genebra…

- Mas, você não bebe…

- Já bebi. Faz uns vinte e dois anos que me descartei da “água que passarinho não bebe”… E não me aparteie muito, que senão eu perco o fio da meada. Do lado escocês - os Drumond - não cheguei a herdar nem mesmo a sovinice. Dos meus antepassados belgas, fiquei com a bonacheironice moleirona. Dos franceses - Gurgel e Missel - recebi uma parcelazinha de espírito e uma sombra insignificantíssima de cortesia…

- E em razão de tudo isso?

Você bem vê que eu poderia ser um escritor internacional. Mas, resolvi fazer-me exclusivamente brasileiro, como rabiscador de folhas impressas, a que, com muito boa vontade, há quem dê o nome de livro.

- Ainda não disse quando começou.

Eu ainda era um rapazola, quase um fedelho. E foi levado por uma paixonite, que comecei. Assim, comecei como todos começam, nessas circunstâncias: “poetando”. Depois de muito ensaiar, consegui que, num domingo, “O Tietê”, semanáriozinho de minha terra natal, estampasse, em meio a um quadradinho de vinhetas, a minha “obra-prima”.

- A obra-prima?

Iniciava-se com esta quadra:
“Por que será, querida minha Alice,
que quanto mais procuro te deixar,
mais, no teu rosto, estampa-se a meiguice,
para melhor, assim, me cativar?”
Faz uma pausa e acrescenta:

Fiquei acordado, até madrugada, à espera de que pusessem o jornal por baixo da porta. Ao topar com o soneto na primeira página, senti alguma coisa que nem pode ser descrita. Mas, pouco durou a minha satisfação. Logo à noite, encontrei, dentro de um envelope que atiraram na sala de visita, um soneto que começava assim:

Por que será, Cornélio, amigo meu, que quanto
mais procuro te querer, mais te afiguras tipo de
sandeu, para melhor, assim, me aborrecer?

E em mais uma quadra e dois tercetos, um pedagogo despeitado alinhou coisas que me amarguraram as horas de alguns dias.

- Mas, você continuou.

Claríssimo. Não me escarmentei e acabei criando o “meu gênero”, os sonetos caipiras, que tanto revoltaram, mais tarde. esse meu grande amigo e imortal puritano do verso, que foi Vicente de Carvalho. Ele achava que eu estava cometendo um crime de lesa-nobreza, contra a soneto… A propósito, devo acrescentar que foi ainda em Tietê que escrevi os primeiros desses sonetos. Um “amigo” conseguiu furtar alguns deles e remeteu-os para “O Malho”, visando surpreender-me com uma daquelas troças da “caixa” dessa revista.

- O resultado?

O feitiço virou contra o feiticeiro. Eu, inocente, nem sabia da surpresa que ia ter. Foi isso num dezembro. Um dia, vieram perguntar-me se já vira o “Almanaque do Malho”. Respondi que não. “Traz quatro sonetos de você, em página especial! - disseram-me. Saí correndo, fui à livraria da cidade, pedi o tal almanaque… Lá estavam os meus versos! Foi um deslumbramento! E, dessa vez, não recebi qualquer paródia…

- O seu primeiro livro, como nasceu?

Certa vez, minha tia, dona Belisária Ribeiro, viúva do grande filólogo Júlio Ribeiro, resolveu trazer-me para S. Paulo, a ver se conseguia fazer-me estudar. Mas, a veia poética não me deixava… Tia Belisária tinha uma casa de pensão, à Rua da Quitanda, nº 11 e aí sustentava uma ninhada de sobrinhos, pobres como ela e que queriam estudar. E como os quartos fossem ocupados pelos pensionistas que pagavam, nós, a bem dizer, morávamos no corredor, onde, todas as noites, enfileirávamos nossas camas. Para escrever - temendo ser ridicularizado - fechava-me no banheiro.

- No banheiro?!

Exatamente. E foi ali que, um dia, compus um soneto caipira, ao qual deve ser atribuída a culpa de ter me torado escritor. É aquele que tem o nome de Ideal do caboclo:

Ai, seu moço, eu só quiria, prá minha filicidade,
um bão fandango por dia
e um pala de qualidade.
Pórva, espingarda e cutia,
um facão fala-verdade,
e na viola de harmunia,
pra matá minha sodade.
Um rancho na bêra dágua,
vara de anzó, pôca mágua,
pinga boa e bão café.
Fumo forte de sobejo;
pra cumpretá meu desejo,
cavalo bão e muié… “

Mais uma baforada do cigarrão de palha, e Comélio prossegue:

Mostrei o soneto ao Simões Pinto que, então, dirigia a “Farpa”, uma revista do tipo da “Kosmos”. Ele pediu-me os versos e, dias depois, publicou-os em página especial. Foi então que, num encontro casual com meu primo, o boníssimo e grande Amadeu Amaral, dele recebi, com um abraço, felicitações que muito me lisonjearam: “Muito bem! Você descobriu um filão a explorar e que está inteiramente abandonado. Continue: escreva um livro… “

- Veio, então, o livro?

Tomei conta do banheiro e, dez dias depois, entreguei à Livraria Magalhães os originais de meu primeiro livro - Musa caipira - dedicado a meus pais e ao Amadeu. A verdade é que a coisa saiu muito aquém de meus desejos: a capa era um borrão de tintas, à guisa de tricromia, com um caipira barbado empunhando uma viola; no alto das páginas, puseram vinhetas com mulheres nuas, em desacordo com a proverbial pudicícia do caboclo. Apesar de tudo isso e mesmo assim…

- Mesmo assim?

Fiquei encantado! Ao te-lo em mãos o primeiro exemplar, fiquei a namorá-lo, uma porção de tempo… Sim senhor! O caipirinha de Tietê que, seis meses antes, escrevia “cuando”, estava com um livro publicado! No alvoroço daqueles dias, ingenuamente audacioso, mandei exemplares do livreco a Sílvio Romero, a João Ribeiro, a Leite Vasconcelos, a Carolina Michaelis, aos jornais e às revistas. Uma noite, metido na roupa dos grandes dias, fui à redação do Correio Paulistano, levar um volume ao Amadeu…

- Ele, então?…

Quando viu o livreco, não pode disfarçar a surpresa. Olhou-me, paternalmente. E com aquele jeitão que lhe era tão característico, não se fez de rogado para passar-me uma descompostura: “Você está maluco! Não vê que livro não se faz assim, do pé para a mão?” Encabulado, muito timidamente, arrisquei: “Mas, você me disse que escrevesse um livro… “ A resposta não se fez esperar: “Mas, um livro, para ser publicado, tem de ser trabalhado, polido, durante meses, durante anos, com paciência e cuidado!… Enfim, vamos ver “isso” aí… “ Leu o primeiro soneto e sorriu. Leu o segundo e aprovou-o, com gestos de cabeça. Leu o terceiro e não pode conter o seu aplauso: “Muito bem! Mas, podia ser melhor, se você não fosse desleixado como é… “

- E os outros?

Que outros?

- Sílvio Romero…

Recebi, pouco depois, uma carta do grande mestre. Vibrei intensamente ao ler aquelas palavras, que ainda hoje não me saem da cabeça: “Vossa Senhoria saiu-se admiravelmente bem, pois o gênero que cultiva, muito ao contrário do que geralmente se pensa, é cheio de grandes dificuldades.” João Ribeiro, a seguir, manifestava sua opinião, sobremodo lisonjeira para mim. Vieram as citações na revista da Academia Brasileira de Letras. Vieram cartas de Portugal, vieram as opiniões de nossos acadêmicos… Comecei, assim, a minha carreira.

Estaca. Fica meio indeciso. É ainda hesitante que continua:

Tenho uma confissão a fazer… Não sei se devo dizer…

- Que confissão é essa?

É o diabo a gente botar os podres na rua… Em todo o caso, como quero penitenciar-me, devo dizer, aqui, num parêntesis, que sou culpado de todos os erros, sobre brasileirismos, que existem no dicionário de Cândido de Figueiredo.

- Como é isso?

É que o velho filólogo me escreveu umas dez cartas, juntando listas de vocábulos, pedindo definições e rogando que eu perdoasse “as impertinências de um velho ignorante das coisas do Brasil”.

- Você respondeu errado…

Não é bem assim. Por desleixo e por preguiça, não respondi a nem uma dessas cartas.

- Qual a tiragem alcançada pela Musa caipira?

O livreiro disse que a edição foi de mil exemplares. Mas, francamente, até hoje tenho a impressão de que eles se multiplicaram, como os pães de Jesus. Os editores, às vezes, também são milagrosos… Mais tarde juntei outros trabalhos com os que figuravam na Musa e saíram cinco mil Cenas e paisagens de minha terra.

- Que é que você acha, atualmente, de Musa caipira?

A pergunta é difícil… Deixe pensar um pouco. Quer saber de uma coisa? O que acho desse livro é que foi o primeiro no gênero.

- Que achou das primeiras críticas?

Tive a impressão de que os críticos todos, inclusive o Duque Estrada e o Medeiros e Albuquerque, estavam protegendo, com muita generosidade, um caipirinha ignorante. De todas as críticas, a que mais me impressionou, pela sua sinceridade, foi a que se continha numa observação que me fez o sáhib dinamarquês professor Alexandre Humel. Sob a ação do “in vino veritas”, disse-me ele, um dia: “Corrrnélio Pirres. Você é muito inteligente, mas você é muito ignorrante!…”

Sobre O monturo?

Devo confessar que meu espírito estava bastante influenciado por Guerra Junqueiro, quando escrevi esse poemeto, em que dei voz a objetos atirados ao lixo: a pena de um juiz, o tinteiro de um poeta, o sapato do rico, o chinelo do operário, o travesseiro da barregã, um caco de espelho… Para o desfecho, fiz que um velho cão endeusasse o monturo, por transformar-se em chuva de água puríssima, em flor e em fruto e, ainda, por ser o “monte santo que procuro, para saciar minha fome”… A fome dele, cão, é evidente.

- Você trabalhou na imprensa…

João Lúcio Brandão, ótimo romancista, modesto como todos os mineiros, inexplicàvelmente pouco conhecido em nosso país, foi que me lançou no jornalismo, como repórter de “O Comércio de São Paulo”. Eu ensaiava, então, os meus primeiros passos… Amadeu Amaral foi o meu anjo tutelar…

- Foi quem fez que você escrevesse o seu primeiro livro…

E foi quem me fez escrever alguns outros. A propósito, é bom referir que foi graças aos seus estímulos que escrevi meu primeiro volume de contos regionais - Quem conta um conto… Eu estava nessa pinturesca cidade do interior paulista, que é Itapira, quando, uma vez, li no “Estadinho” - edição vespertina que então publicava “O Estado de S. Paulo” - uma página intitulada “Entre um café e um cigarro”. Tratava-se de coisa regionalista, assinada por “Antônio Branco” e dedicada a mim. Não me foi difícil perceber, aí, o dedo de Amadeu e comecei a escrever contos regionais.

- Nasceu, então, Quem conta um conto

É verdade. Vieram, depois, as Conversas ao pé do fogo. Depois, dei a ler a Amadeu os originais de Joaquim Bentinho, O queima-campo. Ele gostou e crismou o livro, isto é, mudou-lhe o nome para Estrambóticas aventuras de Joaquim Bentinho. Não deixa de ser interessante o que aconteceu com esse volume. Boêmio e sempre precisando de dinheiro - justamente por não ligar ao tal - ofereci-o à Companhia Melhoramentos por quatro contos de réis. Foi recusado. Ofereci-o por dois contos de réis e baixei para um… Não quiseram. Fui à Imprensa Metodista e consegui que imprimissem, fiado, uma primeira edição de três mil exemplares. Isso queria dizer que, dentro de noventa dias, eu deveria pagar quatro contos e duzentos mil réis à empresa. Pois o livreco saiu numa sexta-feira e na terça da semana seguinte eu pagava a dívida e vendia os direitos por dez contos de réis. Atualmente, sua tiragem anda aí pelos quarenta mil exemplares.

Faz quase uma hora que estamos conversando, em frente ao quadrilátero da mesinha. O garçom já nos olha um tanto significativamente, de vez em vez… Já chegou a perguntar se quereríamos mais café; esbarrou, porém, com a recusa de Cornélio.

Acho que já é tempo de a gente ir levantando o acampamento. O homem já está olhando de esguelha para o nosso lado… - adverte o Cornélio.

Deixamos o café e tomamos pela Rua Libero Badaró.

Você não ignora que eu sempre fui muito preguiçoso… - diz Cornélio, que vem andando, muito lerdamente, ao meu lado. - Foi por isso que achei cacete dizer em dez páginas o que poderia dizer em algumas frases. Aí o motivo por que comecei a escrever livros de anedotas e, ultimamente, fiz adaptações ao “meu feitio”. Era tão “pau” ter de escrever um conto inteirinho!.

- Quantos livros você já publicou?

Dezenove.

- Qual você acha o melhor?

Nenhum.

- A tiragem total?

Os editores, nós sabemos muito bem, são mestres em milagres de multiplicação… Creio não errar, porém, calculando em mais ou menos um milhão de exemplares. Daí para fora.

- Ao que atribui o sucesso que tem alcançado?

É muito fácil de explicar: ao fato de não escrever para letrados, num país de iletrados. Escrevo para o povo e o povo sabe apreciar os meus trabalhos. Também sei que muita gente começou lendo as minhas borracheiras e evoluiu para melhores livros. Ao menos essa utilidade tem os meus trabalhos.

- Sofreu influência de algum autor?

Influência acentuada, creio que não. Sou, no Brasil, o escritor que menos tem lido…

- Como prefere escrever?

Não tenho caligrafia, isto é, tenho uma letra horrível Para evitar possíveis greves de linotipistas, quando me resolvo a escrever um livro, trato, logo, de comprar uma máquina de escrever. Assim que se esgota o dinheiro do livro, vendo a máquina. Como vê, a máquina, dessa forma, presta-me dois serviços: um quando estou fazendo o livro; outro, quando os “cobres” encurtam… Posso acrescentar que, além dessa, levo outra grande vantagem sobre os datilógrafos: eles escrevem com dez dedos e eu com um só.

- A que horas sente melhor disposição para escrever?

Deixei o álcool há vinte e dois anos. No tempo em que bebia, era sempre à noite e com umas quatro ou cinco garrafas de vinho nas proximidades, que eu escrevia. Hoje, prefiro escrever durante a manhã, fumando uma porção de cigarros de palha. Quando começam a chamar-me para o almoço, é que sinto melhor disposição para produzir.

- Faz rascunho…

Não. Nunca fiz. Creio que é por isso que sinto acanhamento de tudo que escrevo…

- Precisa de ambiente, para escrever?

Qualquer ambiente me serve.

- Que é que você acha que um livro deve reunir, para alcançar êxito?

Para alcançar êxito comercial, bem entendido, deve ser escrito em linguagem simples, sem rebuscamentos de vocábulos, sem ostentações eruditas e em períodos e capítulos bem curtos.

- Estamos já na Praça do Patriarca, quando pergunto: Quais os autores que você prefere?

Os que mais me impressionaram, dos poucos que tenho lido, foram Júlio Ribeiro, Zola, Antônio Nobre, Mark Twain, Alberto Costa e Bastos Tigre. Agora e conquanto isso nada tenha com a pergunta que você acaba de fazer, quero dizer uma coisa. Você perguntou, quando íamos passando em frente ao Clube Comercial, qual de meus livros acho melhor. Respondi secamente: nenhum. Mas, não dei as razões… Quer saber? Meus livros não prestam, porque nunca releio o que escrevo e a todos eu os fiz, no máximo, em quinze dias cada um…

- Os livros que tem em projeto?

Estou começando a escrever um volume de anedotas, que terá o título de Prosa fiada, mas será vendido à vista. Completando um total de vinte livros, promoverei a minha auto-consagração, oferecendo-me um banquete. Os amigos e admiradores serão convidados, para me verem comer.

Faz uma pausa. É com um brilho estranho no olhar que me diz:

Peixoto, a minha melhor obra eu nunca poderei publicá-la! É produzida durante o sono, em sonhos maravilhosos. Se eu pudesse escrever, quando estou dormindo!…

- Você tem ganho muito dinheiro com livros?

Alguma coisa. A verdade é que tenho vivido do meu cérebro, com os meus livros e com as minhas conferências. É preciso acrescentar que, apesar de humorísticas, essas conferências são verdadeiros estudos de nosso folclore.

- Já foi tipógrafo…

Já fui tanta coisa! Tipógrafo, caixeiro de sírio, oleiro, plantador de algodão, comerciante, industrial, revisor de jornais, repórter. Fui feitor da Limpeza Pública, a acompanhar varredores desde as quatro da manhã até as seis da tarde, por cinco mil réis diários… Fui mestre-escola, fui professor de ginástica…

- Professor de ginástica?!

Não precisa admirar-se tanto. Fui professor de ginástica, sim. Houve uma ocasião em que eu estava desempregado. Pedi uma colocação a um amigo. Ele estava de cima, na política… E como eu tivesse urgência em colocar-me e como não houvesse outra coisa, assim de momento, para dar-me, fui nomeado professor de ginástica de uma escola do interior.

- Como você se arranjou? Você sabe ginástica?

Não era preciso saber. Era preciso ensinar.

- E você ensinou?

Não tenho muita certeza, não. Em todo caso, posso dizer-lhe que tive as melhores intenções…

- Que mais você foi?

Cinematografista. Fiz dois filmes sobre o Brasil e perdi dinheiro nessa brincadeira. Agora, sou inventor…

- Você é inventor?!

Exatamente. Inventor, sim. Haverá alguma coisa demais nisso?

- Que é que você inventou?

Um cantil, a que dei o nome de “Decantil C. P.”. É de formato anatômico e provido de um filtro que torna potável qualquer água, mesmo que seja de enxurrada. Já tenho a patente nacional e já requeri patente em outros países.

- Você é o tipo do sujeito engraçado!…
Ele olha-me de frente. E é sério - é paradoxalmente sério que diz:

Tenho vivido do humorismo, é real. Mas, francamente, acho que sou o tipo do sujeito sem graça!…


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Entrevista conduzida por José Benedito Silveira Peixoto em data não indicada (antes de 1950) e publicada em seu livro Falam os escritores (vol. 1, 2ed. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971). Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994), artista convidado da presente edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
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