quarta-feira, 21 de novembro de 2018

SILVEIRA PEIXOTO CONVERSA COM DINAH SILVEIRA DE QUEIROZ


O ano de 1939, todos ainda estamos lembrados, foi particularmente farto em estreias literárias. Bem grande, na verdade, foi o número de novos escritores que, no decorrer de seus doze meses, deram a público os seus romances, os seus contos, os seus poemas, os seus ensaios: E o que se tornou sobremodo auspicioso para as letras brasileiras não foram poucos os que já se apresentaram com predicados e qualidades que, certo, ainda lhes darão postos de vanguarda no panorama de nossa intelectualidade. Creio não exagerar, entretanto, ao dizer que, entre todos, raros foram os que tiveram suas estreias marca das por um êxito igual. ao que conquistou Diná Silveira de Queiroz com Floradas na serra.
Convém observar que, até bem pouco tempo, Diná era inteiramente desconhecida do público ledor. Nem mesmo os que vivemos às voltas com as coisas do pensamento conhecíamos o seu nome e as suas possibilidades como escritora. Ela ainda não evidenciara, até algum tempo atrás, o de quanto poderia ser capaz o seu talento: jamais colaborara, continuadamente, em jornal ou em revista; jamais dera uma prova de suas forças; enfim, jamais aparecera.
Mas publicado o seu romance, posto o volume nas vitrinas das livrarias, o sucesso não se fez esperar. E foi completo. A crítica teceu-lhe os melhores elogios. Nas rodinhas literárias fizeram comentários, uns a favor, outros contra. Travaram-se polêmicas em torno de questões debatidas em Floradas na serra ou de aspectos aí fixados. Aqui em São Paulo, dois médicos chegaram quase a engalfinhar-se por causa da tuberculose de alguns personagens de Diná… A seu turno, o público não demorou a arrebatar os exemplares que constituíram as três primeiras edições.
Afinal, como poderia ser explicada a razão de triunfo assim tão rápido e tão decisivo? O tema, do romance é novo - dizem uns. Mas a verdade é que têm fracassado inteiramente romances que exploram temas novos… Curiosidade de conhecer um romance de mulher - afirmam outros. Não obstante, muitos livros de mulheres permanecem nas estantes das livrarias… É filha de intelectual, sobrinha de intelectuais, prima de intelectuais… - acrescentam, maliciosos, aqueles. Tantos parentes de intelectuais, filiados a meia dúzia de igrejinhas de elogio mútuo, já têm sido mal sucedidos…
Não tenho a pretensão de desvendar o segredo do sucesso de Floradas na serra, mesmo porque essa questão é muito mais complexa do que parece. É tão complexa que até os editores se enganam, publicando livros que encalham e rejeitando originais que seriam bem aceitos. Há casos de trabalhos rejeitados por um editor e que, posteriormente, dados à publicidade por outro, alcançam a melhor das acolhidas, atingem várias edições. Acredito, porém, que o fator principal do triunfo de Diná reside no próprio romance: Floradas na serra é interessante, prende, por isso, a atenção do leitor, agrada, satisfaz; tem suas lacunas, é incontestável; mas, dado um balanço, verifica-se que as qualidades superam em muito os seus defeitos. Além disso, é muito humano, tem vida, tem bastante sinceridade. Por isso venceu. Tinha mesmo de vencer.
Diná Silveira de Queiroz está à minha frente, no escritório de sua residência - uma vivenda pitoresca localizada numa rua de Ipanema, nas proximidades da Lagoa Rodrigo de Freitas. Já tínhamos conversada em São Paulo, quando ela aqui esteve, há uns meses. Faltavam, entretanto, alguns dados, para completar a entrevista… Quase todos os dados, aliás, pois que não pudéramos dispor de muito tempo. A boca rasgada está aberta num sorriso de dentes alvos e fortes. E há qualquer coisa de semita em seu rosto…

- Nasceu em São Paulo…

É verdade…

E fica aí, na reticência. Não acrescenta mais coisa alguma. Tenho de conformar-me. Tiragem de livro e idade de mulher - já o disse Orígenes Lessa em entrevista que me deu - são duas coisas que não se perguntam porque o autor aumenta a tiragem e a mulher… Diná volta a falar:

Nasci em São Paulo, sim. E pertenço a uma família de intelectuais. Sou filha de Alarico Silveira, e Agenor Silveira e Valdomiro Silveira são meu tios. Muito pequena, ainda, perdi minha mãe e fui criada por uma tia, cujo nome - Zelinda - dei à minha filha.

O juiz Narcélio de Queiroz entra no escritório e vem cumprimentar-me com aqueles modos afáveis que lhe são peculiares. Tinha saído a fazer um passeio. Aparece, também, Raquel de Queiroz, a escritora consagrada e que é cunhada de Diná Silveira de Queiroz. Tagarelamos um pouco. E a entrevista continua:

Passei os dias de minha infância em peregrinações pelos colégios de São Paulo. Recebi, assim, uma educação que teve as orientações mais variadas… Nas férias ia com meus tios passar uns dias na fazenda de São José do Rio Pardo - Um quê de saudade nos olhos, um sorriso nos lábios, acrescenta - Fui uma menina distraída, magrinha e com o “complexo da altura”…

- “Complexo da altura”?!

É que aos quatorze anos tinha atingido o meu completo crescimento. Era tão alta quanta hoje. Minhas companheiras de colégio brilhavam pela inteligência, pela graça. Mas quem poderia imaginar que aquela criatura tão comprida, que eu era, tivesse a mesma idade que elas?…

- Faz uma pausa, responde a uma pergunta de Zelinda, uma garota vivaz tal qual ela mesma, Agora, prossegue:

Quando entrei na adolescência estava no “Colégio Des Oiseaux”, em São Paulo, onde passei bem obscuramente. A “tara literária” da família começava a manifestar-se, porém, e com certa exuberância. Do “Livro de Ouro” - coletânea das melhores contribuições das alunas - quase todas as composições traziam o meu nome ou o de minha irmã. Fiquei contentíssima, é claro.

- Depois?

Casei-me bem cedo. Tenho uma filhinha… Zelinda… Que, como vê, é uma personagem original e… “fictícia”.

- Quando começou a escrever:

Coisa que pudesse ser publicada. há apenas três anos. Mas como lhe disse há pouco, desde que era menina se manifestara em mim o gosto literário. Vale a pena acentuar, a propósito, que, entre as “relíquias” da família, se encontram uns versos que fiz quando tinha sete anos… Também, vale a pena frisar que nunca mais perpetrei outros versos… Meu primeiro trabalho, portanto, foi Pecado.

- Pecado? !

Sim. É um conto. Resolvi-me a escreve-lo, de repente, dentro de um domingo silencioso e vazio. Lembrei-me de coisas de minha infância, de cenas da fazenda. Do fundo dessas reminiscências surgiu a visão de um tipo inesquecível: um médico vizinho, que possuía uma bela inteligência, uma grande cultura musical, e ali vivia obscuramente. Recordei-me da eterna surpresa de criança quando ouvia aqueles discos… Aquelas harmonias, que nem pareciam deste mundo. Livros e revistas famosos não faltavam ali, com a pobreza e a simplicidade em torno. Juntei a isso tudo a minha fantasia e escrevi o conto. Li-o, depois, sem saber muito bem o que aquilo representava. Meu pai, que deveria ser meu grande animador, envaideceu-se. Levou Pecado para o Correio Paulistano. E daí a poucos dias lá estava ele, em letra de fôrma.

- A sensação que experimentou?

A sensação… Poderia acaso descrevê-la?…

- Floradas na serra como nasceu?

Comecei querendo fazer um conto. Comecei exatamente com a subida de Elza para Campos do Jordão. Parei nas três primeiras páginas. Vinham-me, aos borbotões, coisas da serra… Lá estivera, antes de meu casamento. Em Abernéssia, vivera uns meses, com os olhos bem abertos. Aquilo era um mundo, um mundo novo, com uma paisagem única e inesquecível - cenário poderoso de uma série infinita de dramas e tragédias. Voltara depois. Revira tudo e mais ainda. Visitara os sanatórios, conhecera o cemitério que, antes, avistará só de longe.

- E então?

A narrativa já estava esboçada. Lembro-me de que “vi” o lugar onde Belinha deveria ser enterrada e a cascata cujas águas geladas conheceriam Elza e Olivinha … Falo de meus personagens com carinho. Creio que entre as meus defeitos de escritora está incluída a minha parcialidade, a minha crença obstinada, teimosa, em relação a eles. Em meio àquela sociedade que está em Floradas, viveu e creio mesmo que se hipertrofiou, até com prejuízo para outros personagens, a minha Lucília - devoradora e complexa. Aconteceu com ela o que se dá freqüentemente nos filmes. Destinada a um papel secundário, conseguiu, tal o fascínio
de sua personalidade, roubar uma grande parte do sucesso. Quando estava escrevendo Floradas, destruí varias páginas, todas escritas sobre Lucília. Para o equilíbrio da narrativa foi preciso sacrificar muito depoimento sincero de uma infeliz pensionista de dona Sofia… Com isso, quero salientar que, não raro, os personagens ganham autonomia, no correr do romance, tornando-se, alguns, de uma curiosa exigência. Como exemplo ainda dessa autonomia, e sem querer sair de minhas considerações em torno de Lucília, lembro que a ela tive de conceder até o direito de batizar um outro vulto do romance Bruno - que assim lhe fica pertencendo mais do que a mim.

Diná Silveira de Queiroz deixa-me, alguns instantes, conversando com Narcélio de Queiroz, Raquel de Queiroz e Lúcio Cardoso, que chegara há pouco e que há pouco me fora apresentado. Volta, uns minuto's mais, com uns refrescos. A palestra generaliza-se, e só mais tarde é que consigo reatar a entrevista.
- Estávamos falando sobre Floradas na serra. Quais as impressões que lhe ficaram da publicação desse livro? Diná reflete um pouco. A cabeleira loira, meio à vontade, escorre-lhe para a nuca…

Minhas impressões… Estávamos num jantar em que se comemorava Floradas na serra. A um canto da mesa dois amigos conversavam sobre o livro. A conversa transformou-se em discussão. Um afirmou que o romance tinha determinado sentido. O outro contestou; “Está enganada. É muito diferente … “ Fiquei ali, completamente apagada, totalmente esquecida. E enquanto os observava, refletia sobre as palavras de Madelon Lulofs. no prefácio de seu romance Gumi; “Alguém escreve um livro e logo a crítica pergunta - “Qual foi a sua intenção?” Aparecem, aí, focalizadas por vários intérpretes, muitas “intenções diferentes” e o autor, apanhado de surpresa, se debruça sobre a obra. como um crítico qualquer.”

- A crítica, então?…

Embora tenha experimentado esse “empréstimo de intenções”, nada tenho a dizer contra a crítica, pois quando publiquei Floradas na serra nem poderia supor que uma estreante viesse a merecer tantas atenções. Ainda que. por vezes. emprestem ao meu livro características desconhecidas para mim. não posso me queixar. Estão fazendo publicidade… E tenho tido surpresas agradáveis. Leitores que se integram com o romance e com os personagens, e que depois apontam trechos que também são de minha preferência.

- A que atribui o sucesso alcançado?

- Sabe que a primeira edição se esgotou em dois meses e que o romance já está na terceira edição, não é?

- Sim. E a razão disso?

- Creio que só pode ser a novidade do assunto. Campos do Jordão ainda não aparecera em obra de ficção. Tive diante de mim um território inexplorado… Sua revelação ao público despertou geral interesse. Eis por que o volume teve repercussão.

- Então, a seu ver, quais os elementos que podem fazer o sucesso de um livro?

Os editores poderiam responder-lhe melhor… Mas até eles mesmos sabem que os livros têm a sua sorte. Há uns que parecem possuir tudo para um grande sucesso e afinal acabam passando despercebidos. Outras, em que não se depositam grandes esperanças, caem na simpatia do público e fazem carreira gloriosa. Depois do triunfo é fácil dizer: Foi por isto.

- Os autores de sua predileção?

Tenho em Alphonse Daudet o mais comovido, o mais sentido, o mais penetrante autor. Que linda e inesquecível obra é Jack! E que atormentada e pungente visão há em Fromont Jeune et Risler Ainé! Por outro lado, o Flaubert de Madame Bovary ficou comigo eternamente. Não posso lembrar-me desse livro sem sobressaltos. Toda a beleza da linguagem, todo o encanto da cena tão humana e universalmente familiar… Lembrando Madame Bovary eu me assusto, como alguém diante de um milagre. E Emily Bronte e a força de ódio dos seus personagens! E Rosamond Lehmann, que teve a coragem de rasgar a sua alma tão feminina, para expor-nos todos os seus segredos! E a magia e a apavorante verdade de Lenormand em O homem e os seus fantasmas! E Wells e o seu espantoso Jogador de croquet!

- Dentre os nossos?…

Cada vez que, falando dos nossos, falo em Alencar, vejo, sempre, um sorriso escarninho… É triste, isso. O nosso velho Alencar passou de moda e não há outro remédio, para um seu admirador, senão perder o respeito humano, para manifestar, publicamente, sua admiração. Gosto - e, se quiserem, ingenuamente, sadiamente - daquela força, daquele poder romanesco único. Releio, sempre com a mesma emoção, O Guarani e As minas de prata. Enterneço-me diante da poesia de O tronco do ipê.

- Machado de Assis …

As memórias póstumas de Brás Cubas… Prefiro resistir à tentação de falar numa obra, cujas reminiscências estão sempre borbulhando dentro de mim. Mas quero lembrar Taunay, com a sua Inocência … E as Memórias de um sargento de milícias, de Manoel Antônio de Almeida; e O Ateneu, de Pompéia; e O mulato, de Aluísio de Azevedo; e Lúcia Homem, de Domingos Olímpio … Aí estão as minhas predileções. Agora a literatura vai se rejuvenescendo …

- Então, dos novos?…
E ela, com um sorriso intencional:

Prefiro não falar. Poderia incorrer em omissões e isso não deixa de ser perigoso… Gasto muito de escrever fora de casa. E a fazenda de São José do Rio Pardo - aquela de que já lhe falei: está particularmente ligada às minhas atividades literárias. Foi lá que escrevi uma boa parte de Floradas na serra. O ambiente proporcionava-me tanta facilidade que, muitas vezes, escrevia em meio à conversa, à sombra de umas mangueiras, nas folhas de um bloco.

- Que acha da mulher escritora?…

Todos sabemos que a contribuição feminina tem sido considerável na literatura universal. Por todos os países verifica-se a mesma coisa. Escritoras, poetisas, jornalistas, pouco a pouco, vão invadindo o campo que, até bem pouco tempo, quase só aos homens pertencia. Isso já está mesmo assumindo aspecto alarmante e já surgem na imprensa uns comentários maliciosos … Mas a verdade é que há muita confidência, muita maneira de encarar a vida, muita queixa sensacional, que futuros livros de mulheres irão revelando.

- Superstições, tem algumas?

Não. Mas há pessoas cuja companhia me dá bem-estar e calma. Perto delas sinto-me capaz de trabalhar e de produzir.

- E outras há …

Há outras cuja presença é suficiente para afugentar-me as ideias e deixar-me em estado de completa inibição.

- Livros em projeto ?

Como todo escritor, tenho “o livro que quisera escrever ver” … É bem possível, no entanto, que nunca chegue a fazê-lo …

- Por quê?

O assunto que escolhi é demasiado complexo. Exigiria, também, um estudo prévio do ambiente em que o romance se desenrolaria. A aproximação desse meio… É dificílima, para mim.

- Além desse romance?

Tenho alguns contos e uma pequena novela. Pretendo reuni-los, breve, em volume.

Estou me despedindo de Diná Silveira de Queiroz, de Narcélio de Queiroz, de Raquel de Queiroz, de Lúcio Cardoso, junto ao portão daquela vivenda pitoresca de Ipanema. Zelinda, a personagem original e “fictícia” do romance da vida de Diná, vem ziguezagueando pela calçada, trepada numa bicicleta. É aí que Diná acrescenta:
Esquecia-me de dizer-lhe que todo o meu desenvolvimento intelectual foi feito depois do casamento. É por isso que quando alguém me pergunta por que não me assino apenas Diná Silveira costumo responder: Mas eu nasci casada!


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Entrevista conduzida por Silveira Peixoto em data não especificada (anos 1940) e publicada em seu livro Falam os escritores (2º vol. 2ed. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971). Edição preparada por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994), artista convidado da presente edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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