quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

1981 ANA FARRAH



[ DEZ POEMAS ]


[ELE ME DISSE]

Ele me disse: – Vc tem cheiro de cadela no cio, cheira a prostíbulo de longe! Bem se vê tua postura de cortesã, qualquer um percebe – Oras, como eu saberia? Nunca cheirei uma cadela, ademais não tenho espelhos convexos. Mas ele sabia, sabia muito bem: eu era essa cachorra, sempre fui! E ele tinha o faro apurado dos perdigueiros, aquele filhadaputa. E me sabia demais, de um jeito constrangedor: manjava minhas dancinhas de manipular, bocejando nas jogadas estratégicas de cabelo. Eu nunca pude com aquele homem! Nunca senti tanto amor e ódio por alguém ao mesmo tempo. Fui embora pra nunca mais. Escondo meu cio de lua cheia enquanto posso, precavida sempre de outros cães. Jurei que ninguém mais iria me cheirar como ele. Por via das dúvidas comprei arnica e cânfora, passo sempre antes de sair de casa.


[NÃO LEMBRO NEM O NOME]

Não lembro nem o nome
lembro que ele usava um
sobretudo bege e morava
num desses apartamentos
de cohab
também não lembro como
fui parar lá e no meio
da noite sentir vontade
de ir no banheiro
mas lembro que o inverno
carcomia grosso
e eu enrolada naquele
sobretudo bege
quentinho
lembro que fiz xixi
ali mesmo
não lembro como saí
só sei que de uma
hora pra outra eu já
estava fora dali
me vi descendo do carro
(meio que empurrada)
nem beijinho...
ele nunca ligou
eu nunca lembrei o nome dele


[TINHA ONZE ANOS QUANDO MORRI PELA PRIMEIRA VEZ]

Tinha onze anos quando morri pela primeira vez, num domingo diabólico.
O choro convulsivo me trouxe de volta, já não mais a mesma.
Tempos depois morri outra vez, súbita como um soluço
e no susto, desprevenida, acordei e vi o dia mais branco de todos

E durante anos fui morrendo, tantas vezes que nem sei
sempre volto sem um pedaço, sem uma cor
só um suspiro raso e oco

an empty shell.


[E EU TE LEVARIA JUNTO NAQUELE CRUZEIRO]

e eu te levaria junto naquele cruzeiro que ganhei num sorteio com passagem pra dois; eu te juraria amor no deck do navio e diria amenidades enquanto te conduzo até o parapeito só pra poder te ver 'escorregar' num tropeço torpe do seu pé torto no meu salto alto; eu te olharia com eterna compaixão enquanto você escorregasse caindo no oceano e até verteria uma lágrima enquanto a água te devorasse, gélida; sua cara sumindo em desespero no Pacífico; eu assistiria tudo, pacificamente.


[E EU SABIA IRRITAR UM HOMEM]

e eu sabia irritar um homem como ninguém eu sabia dizer a coisa certa na hora errada pra ofender de forma sangrada e imperdoável eu sempre soube ter a língua cheia de alfinetes porque um homem duro e impenetrável me parece por demais enfadonho a placidez mórbida dos psiquiatras por exemplo é inadmissível e isso vai além da minha vontade própria é quase involuntário espezinhar por gosto e propósito só pra ouvir o grito obter resposta ver mostrar por dentro ver até onde eles vão e nessas de brincar de 'espete o bonequinho' me lasquei bonito quando eles explodiam geralmente os estilhaços furavam meus olhos por isso fiquei cega toda vez que fui embora.


[ESTIVE A PONTO]

Estive a ponto, muito que por um triz não te matei
teu sexo insosso me fazia querer te esfaquear de quatro
enquanto de costas, porque não me doía nem me rasgava
perdi tantas chances pq não tive culhões
pra limpar toda a bagunça depois: você e seu corpo amorfo
espalhado pelo carpete, seria um desastre
eu não teria forças
nem estômago
Mas estive a ponto, foi por um triz que não te cravei a faca
na jugular saltada desse seu pescoço gordo
Sinta-se feliz por isso


[UMA VIDA TODA BASEADA EM DESTRUIR]

Uma vida toda baseada em destruir
embasada em recomeços e sem fins
embalando sonhos ocos

um passafora atrás do outro,
tantos tropeços
por isso estes joelhos tão fodidos

– disse a ortopedista –


[E TINHA CERTO MAQUIAVELISMO]

E tinha certo maquiavelismo na doçura.
O inverso também se dava.


[VOU RECLAMAR]

Vou reclamar no Sindicato das Strippers!
Te botar no PROCON por não ter pago aquela dança no colo que você pediu.
Quem vai me ressarcir a hora perdida?
A porra que me manchou as meias de seda, que são francesas?
O senhor faça-me o favor! Oras, isso não é coisa que se faça.
Quanta desfaçatez!
Vou te denunciar, estou indo fazer o B.O. agora, que eu sou profissional do SECSO, entendeu?
Eu vivo disso, meus gatos dependem disso, como vou agora comprar ração?
Explique você para os bichinhos, eles estão aqui miando e te maldizendo.
Vou fazer uma macumba para cair seu pinto.
Pague meu dinheiro
Apenas


O CLIENTE

Você daria uma boa mulherzinha para casar, ele disse, enquanto eu abotoava o corpete; te vi limpando aquele chão com tanto esmero, e mesmo o bolo horroroso de mandioca que você fez eu comeria toda manhã com alegria enquanto você passa café para dois. Você é tão risonha! Eu seria capaz de te ver rindo toda noite assim.
Você daria uma boa mulherzinha mesmo, me alcançando a toalha como fez agora, depois do banho. Você é muito atenciosa servindo-se de corpo e boca aberta para mim, daria uma boa mulherzinha!
Minha esposa não faz isso, menos ainda “aquilo”, que você faz com tanto carinho! (sim, ele disse)
Dei de ombros, peguei meu dinheiro e bati a porta com força.
‘esse daí nunca mais’, pensei


[ TRÊS PERGUNTAS ]


FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

AF | Pois vamos lá: o que permeia a arte da escrita senão devaneios, mesmo utilizando-se da auto-ficção?
Por este viés, podemos pensar a poesia e a literatura como formas de onirismo, válvulas pelas quais se faz possível escaparmos da realidade através das palavras.
O conceito em si é de uma riquíssima beleza per se: poemas como sonhos ou viagens, nas quais continuamos sentados no mesmo lugar (ao menos o corpo, supõe-se, está).

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

AF | Sobre as afinidades com os clássicos e/ou contemporâneos da literatura brasileira e internacional, incorporei uma influência quase inconsciente da escrita de Ana Cristina Cesar. Gosto muito também dos contraventores, subversivos, ditos malditos e marginais.
Gosto muito das tragédias em Nelson Rodrigues, a brutalidade e a crueza do Rubem Fonseca, o humor ácido e a ironia do Luiz Fernando Veríssimo, entre outros. Quem me marcou deverasmente foi a Maura Lopes Cançado em Hospício é Deus, ótimo livro para revisitar sempre que posso.
Dos escritores de fora, li muito a Hilda, Anais Nin e o próprio Bukowski, apesar de não usá-los como influência direta, acredito que sempre nos quedam resquícios na estilística da criação literária, de uma forma ou de outra.
Vladimir Nabokov, Walt Whitman, o “pai do verso livre”, grande poeta da Revolução Americana, são escritores que igualmente permeiam quase que de forma involuntária grande parte dos meus exercícios (ou tentativas de) na produção textual.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

AF | Não utilizo recursos contextuais sócio-políticos, históricos, ou movimentos sociais quando escrevo. Geralmente falo muito acerca de tragédias pessoais e histórias relacionadas a minha própria experiência de existir. Há uma ordem cronológica de acordo com os acontecimentos catastróficos recorrentes na minha história, essa linha do tempo permeada de escombros e alegria absurda e incrivelmente efêmera. Viver a vida na plenitude das coisas mundanas me fez criar uma observação arquivística que transponho no papel de forma tanto autobiográfica quanto ficcional, mesclando verdades e mentiras que confundem leitores e, às vezes, até a mim mesma. Sobre catalogar esse tipo de literatura com determinado rótulo geracional (“poetas nascidos a partir de 1980”), realmente não acredito que no meu caso se aplique, pois estaríamos tentando racionalizar a fluência e expressão libertária que é característica da poesia. Apenas sigo escrevendo sem afetações. “E isto avança”.


[ FOLHA DE VIDA ]

Ana Farrah (Rio Grande do Sul, 1981). Teve sua escrita notada nas redes sociais quando seus textos começaram a ser publicados em blogs e revistas eletrônicas de literatura contemporânea no Brasil e em Portugal. Participou da coletânea de contos Sete Pecados, pela editora Scenarium Plural e da antologia Contemporâneas, na revista Vidas Secretas, editada por João Gomes. Publicou poemas também no Livro da Tribo, pela Editora da Tribo. É colaboradora/curadora na Mallarmargens, revista virtual de poesia e arte contemporânea. Escreve sem eira em poesia sarcástica, mas transita entre outros estilos. No momento, Ana trabalha com Estética e escreve nos intervalos entre uma massagem e outra. Publicou o livro Orquídea Trepadeira e outras flores ordinárias, em 2017, pela Editora Benfazeja; em 2018 publicou Os Mortos do Apartamento 21, pela Editora Patuá. Seu próximo livro, Demônio de Pelúcia, tem previsão para lançamento neste 2019.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019




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