quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

2001 ROGE WESLEN



[ DEZ POEMAS ]

[O CORPO-FUMAÇA ATRAVESSA]

O corpo-fumaça atravessa
   a faixa de pedestres da
            rua Rui Barbosa
seu rosto é lonjura – Enigma
não o vejo além da condensação
            do café esdrúxulo que bebo nesta calçada
do cigarro que findo na manhã raivosa
sua costa some entre os raios & as sombras da Cidade
            minha vista cambaleia
            sou & não sou – o rosto derrapa
                        o dente se parte
            a Realidade é uma brincadeira
                 que a infância extraviou

me desfaço assim também
            como a fumaça deste café & o corpo dissolvido
                        das grandes Cidades
querendo imitar a fogueira sagrada das Velhas Tribos.
 

[PERDIDO NESSA BIBLIOTECA]

Perdido nessa biblioteca
             Perdido em todos os lugares
Só que agora longe das ruas entupidas com
            suas multidões de desesperados
            seus imigrantes carregando entre as mãos
              pequenos potes com notas de dois reais            
                                                seus olhares de garça na maré poluída

Os estudantes & seus livros didáticos
            cheios de saberes robóticos
            preenchem as praças públicas
                        de TODO O MUNDO
                          nesse momento

Eu prefiro o silêncio dos viciados
            O silêncio das prostitutas
            O silêncio dos que nunca aprenderam     
                 o artifício da palavra
Eu prefiro o silêncio
            a palidez concreta do pedregulho
            ao invés de sua metafísica gasta

Eu prefiro a noite & seus meteoros-madrepérola
            o garoto andrógino que quantos sonhos desbravou
            nas madrugadas que nossas mães não viram

Sinto meu estômago ruir
            minhas vísceras que os urubus aguardam
            enquanto no céu qualquer deus desconhecido
            cria fábulas & mundos tão ridículos quanto este
            tenho vontade de gritar de dor mas         
                                     não posso demonstrar fraqueza

Há olhos em todos os lugares — me disse o professor da
            escola dominical naquela manhã
                        em que até os pássaros choravam
            & ele destilava a sagrada lição

Eu tinha dez ou onze anos
            (naquele tempo
                        o que era Sagrado pra mim?)

& aquela igreja aquela gente querendo parecer correta
            os cultos de quarta e domingo foram
            a minha aprendizagem definitiva da solidão
             depois veio Chet Baker e os poetas expressionistas alemães
com suas tramas escatológicas
            seus suicidas             seus vícios destrutivos
                 sua linguagem da desolação
            que nenhuma professora de gramática me ensinou

Escondo-me aqui entre os manuais de ética & os imensos      
             volumes das tragédias gregas
             da violência das manhãs chuvosas
daquele quarto azul anil que quantos choros meu enterrou
             quando havia ainda possibilidades
                                                           de Restauração
             quando eu ainda acreditava num amor
                 que não fosse sublime desespero

Certa vez sonhei com um pajé chorando
    na visão de uma floresta em chamas
                        & essa foi a primeira vez que tive medo
                        dos arranha-céus das grandes corporações
                        dos que fabricam nossos sonhos de consumo

            & tento não pensar tanto assim
            não pesar tanto o peito de ferrugem
                                    da visagem do futuro

            & por um instante sei que me basta:

                                               Trakl, Baker & Dionísio.


[ME DIGA O QUE SANGRA TUA BOCA]

me diga o que sangra tua boca
            o signo da derrota
por que o primeiro trago é
   sempre mais profundo
por que Rimbaud largou tudo
      & foi simbora pr’África
            destilar o amor / se deserdar
                                        da poesia
me diga das aparições da noite
            do rock fuleiro nas esquinas
            escondidas da cidade velha
por que os jovens não acreditam
                        mais no amor dos incêndios
            & não mais subvertem as instituições
            nem vandalizam a vida a rotina estabelecida
                                   dos nobres senhores
me diga o roteiro desesperado
                        do nosso país
                        com a voz lacrimosa dos que sentem
me diga as palavras de ruína
            que não estão nos dicionários
            & leremos juntos os poetas latino-americanos
            que morreram lutando
            a loucura das revoluções

me diga esse silêncio
antes que amanheça.


[EIS QUE O VENTO ESTANCA]

eis que o vento estanca
            quando sento-me neste banco de madeira
            marrom aprofundado pelo brilho da cera
            o pátio aberto — a vista da  
                        sacada dos prédios
nestas arcadas de cimento em que          
            nenhum homem é sagrado
afasto-me disso com um desânimo estratosférico         
            adentro pois a alegria convexa
                        dos camelôs do comércio
            meus amigos astronautas da vida 
                        que entre as Nuvens devaneiam Deus
acendem cigarros indiferentes ao Tempo
            ao relógio à ficção das horas
            meus amigos                       
                        deuses deslumbrantes do Infinito.


[O FERRO DAS CIDADES INCANDESCENDO TEUS DIAS]

o ferro das cidades incandescendo teus dias
    não há amor nas catedrais em que oras
                        & sabes disto em silêncio

            (lembras então os martírios de janeiro)

o mesmo silêncio sob a lamparina do quarto
            quando acaricias o cabelo de M.
            & os cabelos entre teus dedos / metáforas
                                               de um caminho tão findo

quando caminhares na rodoviária
            em que teus sonhos se despedem
                        esqueça as metáforas esbaforidas
            daqueles mesmos amores
            que cultivaste em noites turvas
            Sob a invocação de Dionísio

& então acordas / pensas estar morto
            num sonho de animais sagrados
            a onça pintada o lobo-guará o gavião de rapina
                                                           sobrevoando teu céu
& Roberto Piva uiva horrorizando os
            menininhos bem comportados em
                         qualquer lugar longe daqui
com Ian Viana clamando poemas no dorso da
                        loucura sagrada que Piva propagou

& é a noite que nunca mais chega
            que nunca mais vai
                                   &
            o mundo morre ali mesmo
                        na eternidade venal que escorre.


[MOLOTOVS NA GARGANTA]

molotovs na garganta
seca
explodem
a palavra dilacerada
pela vida
não canta mais nada
nem aconchego

apenas cacos estilhaçados
nos meus olhos tristes.


[NÃO POSSO ESPERAR, MEU AMOR]

não posso esperar, meu amor,
eu sou uma pistola automática de solidão
o céu violeta pré-crepuscular
nos teus olhos
um vírus singrando teus orifícios
eu definitivamente não posso esperar
o fim do mundo está demorando demais
& malwares se espalham
por tua vida desconhecida
tua boca diz o silêncio ornamentado
dos leões-marinhos
na rua em que andamos distantes
um do outro
como estranhos que jamais
se tocaram
nos escusos sótãos da madrugada
no delírio pós-festa adocicado
do tesão lunar

se queres segredos, os contarei
se queres prazer, minha língua umedecida
percorrerá teu corpo kármico-espiritual
beijarei teus lábios maiores & menores
à luz das lamparinas diáfanas

mas se queres amor de mim, só
terás engano, serei sincero.


[AGORA ME PROCURAM OS SERÁFICOS TROVADORES]

agora me procuram os seráficos trovadores
                        que tocaram a aurora
             os pagãos que adoraram
             flores              ervas  animais
                                     extintos do subúrbio
os heréticos de todas as espécies
                        me falarão esta noite
meus amigos tristemente dopados se confessando
            a putas de corações sensibilíssimo

por fim santifiquemos as putas as bruxas
            & as mulheres todas
            que nos amaram
                        santifiquemos o pecado
            o desejo a sedução
           
            & Deus talvez nos perdoe quando
            pela primeira vez adormecer ébrio
            nos seios de uma mulher.


[VEJO FOTOGRAFIAS NOS CALOS]

vejo fotografias nos calos
  agudos do teu peito
            imagens de desolação
uma criança no capô de um carro
            acenando aos teus olhos tristes     
                        a poeira é tanta aqui
            nossos sonhos morreram
            nessas finitudes, meu amigo,
                        morreram sim / as fotografias
            calam-se nesse teu mundo
                        de visões perdidas
& no barranco que desfibrila o nosso medo
                                   hastes erguem-se
            centelhas rugem da tua voz
                        do alto desse barranco o céu
                                   parece tão perto
            que lobos uivam
            enquanto nos amamos


[SOMBRA SEM FUTURO]
           
            sombra sem futuro
            que se estende
            a poeira da rodovia
            que o vento leva
                        a canção que trago
                                   nas costas
                        pesa
                        quase tanto   
            que tropeço em notas menores
                        de um violão desafinado
                        que um índio toca    
              na beira da transamazônica.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

RW | Esses elementos convergiram em mim, de forma sucessiva, sem que eu me desse conta, já na infância. Só li meu primeiro livro com 11/12 anos, era uma história sobre futebol que eu reli meses a fio. Foi quando eu descobri o que era liberdade, mesmo sem saber. Antes disso minha mente reduzia-se ao ambiente cristão em que fui criado, essa coisa limitadora, que se a gente não se esquivar, vai nos castrando desde cedo. Uma simples história de futebol me levou a tantas outras, nem tão simples, mas igualmente libertadoras. O amor veio cedo, doente, como ainda o é, como requer a poesia. E fui saber disso mais tarde, já nos primeiros poemas. A poesia exige um estado de estranhamento, de delírio interno, desordem, pelo menos pra mim. Poesia & vida: uma só coisa. Eu crio tendo esse norte único, e infinitamente diverso por si só. Tem um poema do Claudio Willer que termina com um verso assim: “meu vínculo é com a palavra só”. É isso, e a vida tá vinculada aí também, no subentendido.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

RW | Hilda Hilst e Roberto Piva, principalmente, me transfiguraram. Eu era outro antes de lê-los, e ainda hoje, sempre que pego algum livro da Hilda ou do Piva, leio com um êxtase de descobrimento, o encanto é o mesmo. Mudo, me transfiguro, a cada leitura deles: nunca é igual. Hilda pela sua busca infinita do intocável, de sua aproximação do desconhecido, sua vontade de desvelá-lo, amiga da morte, de chamá-la por apelidos!, está sempre comigo, na transgressão e ousadia que penso ter. Piva pelo ensinamento fundamental da poesia, que guardo como um talismã. Pela vidência, irreverência. Seus livros repletos de visões. Essencial.  

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

RW | Acho que estamos interessados em todas as possibilidades. Nós vamos lá e lemos os concretistas, os expressionistas, os modernistas etc., e absorvemos o que podemos deles todos, transformando essas leituras na epiderme da nossa própria escrita, já diferentemente modelada, mas que não preocupamos em nomear porque ela não é uma coisa só, varia muito de poeta pra poeta. Não creio que haja uma homogeneidade nas poéticas atuais, quer dizer, no que é pra mim a poética atual: um inconformismo total. Ou seja, não levo em conta os Bukowskis da internet, as páginas de textos bonitinhos com milhares de seguidores. Eu falo da escrita de pessoas como Roberta Tostes Daniel, como Bruno Sanctus, radicalmente diferentes, mas igualmente autênticas. Entram aí vários exemplos. Mas o que eu quero dizer é isso: nós queremos tudo, não dispensamos nada. Exceto, é claro, o dispensável. rs.


[ FOLHA DE VIDA ]

Roge Weslen (Pará, 2001). Poeta. Vive entre o Sonho & o Som.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Eugenia Loli (Grécia, 1973)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 127 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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