segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

1992 ELVIO FERNANDES GONÇALVES JUNIOR


[ DEZ POEMAS ]

OS GESTOS INCISIVOS

1

Como quem parte em duas metades uma maçã,
            serenamente eu te peço:
                        adormece nos meus olhos.

Pois seus passos atestam a clareza
            e o que há  de mais sutil
                        em meus trajetos mais sombrios.

E por isso te peço,
            tal como se os ventos se fizessem flor:
                        adormece nos meus olhos.

2

Coloco-me diante da luz que acaricia seus cabelos
            e me busco noturnamente
                        em todos os seus estiletes.

Levantando-se de seu prêmio,
            eu te vejo caminhar livre
                        com a leveza dos alfinetes.

Surpreendo-te,
            pois é preciso.

A calma de nossos delitos
            é a prova de que merecemos nosso encontro.

3

Minhas mãos que em outra carne se dissolvem
            quando tocam a música do vinho,
                        brilham.

O que fazer com os sons todos,
            que se delineiam no obscuro abrigo dos lábios?

Daqui os vejo abertos:
            vertem a substância iluminada
                        que compõe os crimes passionais.

4

Se te estremeço ao primeiro toque,
            a minha mão toda se inunda,
                        submerge inteira no seu corpo,
                                   a fonte escondida das noites.

Tal como a labareda que se acalma,
            assim como as águas que se enfurecem,
                        rogo:
                                   atravessa-me o canto e a morte.

Não há nada maior do que nascer.

5

O vinho de seus cabelos se estende
            e toca seus lábios de rapina.
Sua boca preserva a altura de um cálice
            onde os dedos se dilapidam.

Em seu gesto,
            a velocidade das serpentes que retomam seu caminho.
A boca,
            jóia abaixo da noite,
                        negocia com o infinito e seus segredos.

Ouço o balido dos incêndios.
Preparo-me para saudar a sombra dos olhos.

6

Sombras e lagos,
            toda uma natureza se ergue sobre seus olhos,
                        que dardejam as casas.
Os raios dormem nas extensões de sua sombra
            e você sonha com a mão que me fere os lábios.

Sua forma clara penteia-se aos olhos da esfinge.
Seus dedos tingem o sabre com um tom negro.
Os móveis todos estremecem com seu passo alto de nascente,
            esfaqueando os dilúvios.

Seu suspiro é uma estrela que gira sem órbita,
            um pêndulo de água sobre todas as coisas.

7

O mito dos amores terrestres
            não está em nós para causar o riso.
As oscilações que presencio me fazem atravessar o céu.

Para adornar a febre com seu corpo,
            entre uma parábola de flores,
                        eu levanto e pouso a mão da névoa
                                   sobre sua boca de lírio ardente.

Um pequeno pássaro sobrevoa um sol maculado de voragens,
            astro sem qualquer piedade
                        que repousa abaixo dos seios.

8

O que dizer então quando seus braços
            compõem a música de fundo?

As canções começam de sua carícia,
            e os bichos olham para tudo
                        como se tudo fosse eternidade.

As casas abandonaram-se ao sangue,
            e os frutos enfim são colhidos
                        na hora propícia dos massacres.

O que dizer:
            começou a beleza de você repleta,
                                   como as primaveras.

9

Olha com olhos caridosos minha face,
            com os olhos de vontade
                        e de ouro estremecido.

Caminho pelos desertos sob o inverno
            enquanto minha oração recobra a garganta.

São vermelhas as lágrimas do punhal.
Todas as cartas que escrevo
            desdobram-se no tempo.

E então digo:
            a flor não murcha no crepúsculo.
As espirais jamais cessam
            quando relâmpago nos conduz.

10

Quis ouvir sua voz ao fundo dos portos
e apenas o arrepio
            do pescoço ao ouvido,
tradução surda do espanto que se instaura,
se fez delinear ao longo da vontade.

Que mão soturna toca agora o seu rosto?

Leva contigo meu sopro,
            e então uma roseira
                        nasce sob o lento beijo desmaiado.
Qualquer coisa de extraordinário
não se entenderá pelo pensamento.

Ou estar contigo ou não ser –
            nada retorna –
                        não há técnica perfeita para falar às rosas.

Mergulha,
            perde a nuvem que te alentava:
            agora te vejo deitada
e estou aos seus pés.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

EF | Já não é possível para mim pensar a vida, o trajeto que percorro, sem a busca que tenho feito pela chave destes três segredos. Nesse sentido, não é possível também pensar criação senão como consequência desta mesma busca. O que importa é sempre a aventura.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

EF | Não costumo pensar muito em termos de criação artística. Para mim, a criação é consequência da leitura e vivência com diversas obras, mas não só. Não falaria portanto em termos de afinidades ou influências, mas sim de autores que moldaram minha maneira de pensar e agir no mundo. Os primeiros choques provêm da leitura de Lautréamont e Baudelaire. As palavras de virulência, aliadas às de amor, definiram meu pensar e agir. É a partir deles que se dá o desdobramento para autores que travam relações muito particulares com a tríade mencionada acima. O terceiro choque veio com a leitura de Manoel de Barros e seu manancial inesgotável de imagens: a infância. Nele é possível encontrar a contundência de quem identifica a infância com a verdadeira vida, como disse Breton no Segundo Manifesto:

O espírito que mergulha no surrealismo revive com exaltação a melhor parte de sua infância. Para ele é um pouco como a certeza de quem, a ponto de morrer afogado, repassa em menos de um minuto todo o insuperável de sua vida. Dirão que é muito animador. Mas não faço questão de animar quem me diz isto. Das recordações de infância e de algumas outras, vem um sentimento de não abarcado, e pois, de desencaminhado, que considero o mais fecundo que existe. Talvez seja a infância que mais se aproxima da “vida verdadeira”. [tradução de Luiz Forbes, ed. Brasiliense, 1985]

Posso dizer, portanto, que meus olhos se abriram para o Surrealismo com a leitura assídua de Manoel de Barros. Através dele pude compreender ainda mais Baudelaire, Rimbaud e Lautréamont. Depois, como que naturalmente, vieram leituras de autores que atuam ou atuaram assiduamente dentro do Surrealismo, e também de autores que em maior ou menor grau apresentam afinidades com o mesmo.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

EF | O limbo formado com o estabelecimento de cânones é imenso. Há vozes ainda ocultas em nosso horizonte poético. Vejamos o enorme número de poetas no Panorama do Movimento Simbolista, de Andrade Muricy. Sabemos quantos deles são efetivamente lidos hoje em dia, em termos acadêmicos. Poderíamos falar também da classificação em “gerações”: cada uma delas tem seu número “oficial” de poetas, e outros tantos que permanecem “ocultados”. Há, por fim, o caso do Surrealismo no Brasil.
Podemos elencar alguns fatores que, penso eu, auxiliam a entender alguns pontos deste contexto: parte de minha formação, por exemplo, se deu através da leitura da Agulha Revista de Cultura quando ainda aliada ao Jornal de Poesia e da convivência com Claudio Willer. Acredito que seja também o caso de muitos poetas abarcados por este escopo “a partir dos anos 1980”. E isso continua ocorrendo até hoje.
Portanto, não acredito em “renascimento”, mas em continuidade. Notamos esses aspectos da lírica a partir dos anos 80 porque deixamos de aceitar apenas o que está aí, estabelecido pelo crivo acadêmico/formalista/oficial, e passamos a procurar o que se revolve nas sombras, às margens. Para mim, a recuperação de vozes dissidentes está em consonância com uma renovação na lírica, proporcionada também pelas editoras independentes que tomaram para si a tarefa de acolher autores que, como apontado na pergunta, têm como característica decisiva a solidariedade.


[FOLHA DE VIDA]

Elvio Fernandes Gonçalves Júnior (São Paulo, 1992). Poeta. Autor de O coração em si (2017) e Chave menor (2018). 



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Enrique de Santiago (Chile, 1961)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 126 | Janeiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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