segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

1996 LEONARDO CHAGAS



[ DEZ POEMAS ]

[AMBIENTE ESCUSO E FRIO]

Ambiente escuso e frio de que se faz o verso, a flor rótula arrota o cânone cancerígeno, não há espaço para lamentar a estupidez, enquanto o corpo aspira o corte e engole a aspirina sem questionar o encanto do acaso opaco que surge diante dos olhos da menina rosa-cruz.


[CANSADO DO COLORIDO]

Cansado do colorido, visão cansada que se apoia na quina da escada, sobe até o firmamento das somas exatas e desce ao corpo ardiloso da esperança morna, detalhada através da luz que atravessa o vidro da câmera estilhaçada pela porrada de anjos esfumaçados.

[GANESHA À LUZ DE VELAS]

Ganesha à luz de velas, na calçada descalça fala versos aos mendigos que tentam dormir distraídos da vida mundana.   Os anjos de Sodoma espancam o adolescente pelado que se comove ao ver os mictórios públicos do metrô.

Sei que um dia o sonho há de curar-me do espanto
há de me fazer chicotear a face do inimigo e roubar dezenas de garrafas de vinho tinto e esconde-las num casacão
há de me fazer cuidar melhor dos meus cabelos
há de me fazer correr à beira mar comer frutas saudáveis & me estarrecer de pranto quando triste
o sonho há de impulsionar
minha revolução espiritual e política
construir barricadas com corpos estupendos cor de jasmim esculpidos em bronze


[O FIM DA FESTA]

O fim da festa é o início de novos objetos proféticos particulares. O espaço, o céu abortado, as vespas fim-do-mundo, são tudo que mais almejo ao terminar do expediente.
Cantando para os céus de cimento encontro o coro dos nossos fascínios seu pranto no escuro, o pau e a pedra, receio não poder reconhecer a escrita automática dos meus dias, o fim de todos os santos, o corte das chaves na pele do mundo,
O sonho é o objeto de desejo lúdico do instante oculto, do nada, da parte chamada de arsênico da alma, o corte feito na terra que cria sulcos e desvia a poesia da natureza, da loucura, do desregramento, da escuridão translucida.


[O BOI DAS VÁRIAS FACES SORRATEIRAS]

o boi das várias faces sorrateiras persegue o caminho do lobo observa um púbis a quarar na sacada do apartamento no largo São Francisco. Submerso em babas e grossos pentelhos teu corpo como estátua imóvel ao vento só treme todo por dentro lembrando o gozo próximo
Costurando arranhões na sua pele-mármore, com um pincel de penas de serafim disseca toda a estrutura de seu tórax e seu dorso compulsivamente fareja teu pescoço e cospe teu sangue ao se afogar.
Descendo a teus pés se confunde em pensamentos sacrossantos
a desistir do rito pula da sacada em movimento instantâneo marcando o chão com um z de sangue fluido de seu corpo estilhaçado a comer grama.


QUEDA

Gosto-te em fragmentos
o olho separado do resto
tua boca ao avesso
tuas coxas nas fotografias
Gosto-te das ideias esfumaçadas
do batom frouxo no lábio
dos teus cabelos picotados
do cais em teus ombros
Gosto-te mais à luz da lua
da tua voz quando grita
do teu sorriso ao revés
da revelia de teus passos na cidade ao amanhecer.
Gosto-te dos teus seios dobrados
da tua cor esquisita
das pétalas a teus pés
Gosto-te a mergulhar no oceano
cansada de tempestade
percorrendo a fúria dos dias
acirrando os teus passos
em tardes quentes de outono -
gosto-te em fragmento
e a mim, me gosto aos pedaços.


[EM NOITE DE CÉU ESTRELADO]

em noite de céu estrelado
sinto o cheiro das estrelas & me transporto a meus desejo sóbrios
cantar para os montes dispersos
nos cantos escuros do mapa
& jogar a toalha ao te ver partir

desisto
resisto

vejo você com outros olhos
mas não me despertam mais que um às de copas
os seios alheios me chamam & eu corro deles

os seios alheios nas fotos
tangem a tela
tingem de furta cor a imaginação
deliro ao som de “round’ midnight”

corpos nus, sem faces, rondam a sacada estelar
emitem sinais através do odor do corpo

mergulho em estrelas
ao alcance dos meus olhos, os deuses estão a jogar bilhar com as bolas, biles e bules, bebendo sangue de poetas e vomitando auroras boreais

lucifer is rising
and i’m coming down.


[COMO OS CÃES QUE PERAMBULAM]

Como os cães que perambulam no asfalto quente
salto no vento em busca de alguma absolvição e me encontro solto
agora envolto pelo copo de cerveja azeda

há algo de sombrio no reino das coisas noturnas
as pessoas vestem máscaras e usam trajes de fogo

noites bagres
noites magras

O pensamento
repousa em um gemido lento e imbecil -


A dúvida é uma homenagem prestada à esperança.
Lautréamont


AUTOANÁLISE

recorra ao cálice e resista para além dos méritos barrocos
recorra ao cálice e silencie tudo dentro de si
recorra ao cálice num passe de mágica abrindo as densas feridas no peito áspero da noite
recorra ao cálice e corra para longe, desejando montanhas colossais ainda que vivendo nas planícies tropicais
recorra ao cálice e almeje a morte
como troféu do sindicalismo das almas,
da maratona das angústias
recorra ao cálice e embriague-se ao fim da noite, observe seu corpo voando para fora da sacada e sinta-se desaparecer.


O SELVAGEM CÓSMICO

Há sempre um copo de mar
para um homem navegar

Jorge de Lima (Invenção de Orfeu)



Sem medo da morte & da loucura/no meio da noite hasteio a pau inteiro/ a bandeira da imaginação/escalo colinas selvagens acariciando os animais ferozes / mastigo plantas carnívoras que beliscam minha língua até sangrar/ escrevo em árvores com paus e pedras / cartas de amor sublime & manuais de sobrevivência na polis / carrego espelhos nas costas em dias ensolarados / para incendiar a copa das árvores / fazendo com que as folhas imitem a incandescência das estrelas/ qualquer gota de imaginação é um oásis marítimo/ no deserto racional dos homens/ percebo a reflexão e então/ desperto aos soluços.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

LC | A tríade proposta por Breton, é certamente o que me guiou na elaboração do meu primeiro projeto poético, a eterna busca pela poesia, pela liberdade & pelo amor sublime é o que move minha poesia em Cosmos/ Cacos. Me percebi diante dessa busca desde muito jovem, em meus poemas de adolescência, e o que acontece neste livro é uma condensação dessa busca em um projeto autônomo, libertário & poético. Em Cosmos/Cacos, percebo meus diálogos internos, entre o sagrado e o profano, minha descida órfica, meus acasos místicos e oníricos, revelados através do vômito que é o lirismo para mim. Minha escrita é um processo de auto-percepção, uma espécie de mergulho no inconsciente, que ocorre de modo extremamente inesperado, em momentos em que estou submerso no caos da cidade ou no tédio do meu quarto, a observar o selvagem parque estadual do juquery.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

LC | Sou certamente um poeta leitor, tudo que escrevo é de algum modo uma transmutação daquilo que li anteriormente. Em minha poesia, ressoam minhas leituras, sobretudo dos poetas brasileiros, mortos & vivos, Pedro Kilkerry, Jorge de Lima, Murilo Mendes, e a geração paulista dos anos 60, com Claudio Willer, Roberto Piva e também Sergio Lima. Também mergulhei no barco bêbado dos franceses e desde muito novo, sou leitor de geração beat. Inclusive, os beats me introduziram à literatura. Para além da poesia, sou fascinado pelo cinema de Jean Luc Godard, Claude Chabrol, Felini, Cassavettes, Carlos Reichenbach, Andrea Tonacci, Julio Bressane entre muitos outros. Nas artes plásticas meu fascínio está em Bosch, Max Ernst, Magritte, Duchamp, Man Ray, Tarsila do Amaral, Dora Maar, Ismael Nery entre também muitos outros. Também sou apaixonado por música, sobretudo, o rock n’ roll setentista, o jazz e o rap, cujo tem sido meu ritmo favorito nos últimos tempos, sobretudo no Brasil.
Acredito que todas essas referências me são caras, pela inspiração que me trazem de seguir em frente, lutando pela liberdade plena e absoluta de criação dos povos, gosto de arte que incite ruptura, que incite transformação de padrões, que incite o mundo novo, a busca por alternativas de vida. No cinema e nas artes plásticas, ressoam em minha obra poética as imagens, o ritmo é permeado pelas minhas influências musicais. A poesia que leio, é de certa forma, minha inspiração para viver, de acordo com todo panorama que estabelecem entre arte & vida, sonho & realidade, o que busco nos poetas é sempre algum tipo de discurso capaz de gerar imagens que inspirem o desejo, e a ruptura com a moral burguesa e os bons costumes.

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

LC | Nossa geração, ou pelo menos os artistas e poetas que gosto e tenho apreço, desta geração, esteja apta a desconstruir toda e qualquer concessão com movimentos de privação de liberdade, nós vivemos em um período em que não aceitamos mais ficar presos em caixas. Nisso, surgem poetas de expressão até então únicas em nosso país. A ruptura com a tradição do moderno nacionalista, tosco, cliché, é necessária para que possamos desenvolver a lírica de maneira universal, e quem também acredita na poesia, tem se virado pra poder construir fundamentalmente possibilidades de se manter criando fora desses padrões higienistas da linguagem e da expressão, ou seja, há diversos grupos e coletivos, que se organizam para publicar poetas novos, que desviam-se dos sulcos da obviedade na terra da poesia brasileira.
 Neste sentido, há diversos grupos editoriais fazendo trabalhos importantíssimos no país, como é o caso da Azougue editorial, que foi um importante meio de conhecimento para mim, lá li coisas inéditas de geração beat, poetas da magnitude de Leonardo Fróes, entre outras importâncias. A própria editora em que publiquei meu primeiro livro, é um exemplo dessa solidariedade, que parte da poesia e do interesse na criação de poesia, a “Poesia Primata”, se trata de um coletivo de amigos interessados em publicar aquilo que acreditam ser a poesia contemporânea brasileira, dentro de seus limites é claro.
No entanto, eu acredito que estamos ainda sendo prejudicados pela tradição canônica que parte das academias e das universidades, ainda não fomos capazes de extrair toda a potência da poesia no país, e que seremos cada vez mais esmagados a depender do Estado. Por essas e outras, eu tenho resistido e apoiado amigos em processo de criação. Há cerca de 2 anos, tive a iniciativa de criar um grupo de Estudos do Surrealismo em São Paulo, onde lemos diversos textos e obras. Esse tipo de iniciativa, creio ser de extrema importância, para aglomerarmos interessados e darmos prosseguimento àquilo que acreditamos ser fundamental. Essas iniciativas, me parecem cada vez mais presentes, e creio que prosseguirão por longo tempo.


[ FOLHA DE VIDA ]

Leonardo Chagas (São Paulo, 1996). Poeta. Transita diariamente sobre as linhas férreas desde as margens do rio Juquery às margens do rio Tietê. Disseminador da poética paranoica Beat-Surreal, lança seu primeiro livro Cosmos/ Cacos em 2018 aos 22 anos sob o signo do Cão.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)



Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019





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