sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

1997 CÍNTIA FARIA


[ DEZ POEMAS ]

MISERERE

A entonação das vozes todas elas cantam
teu corpo imobilizado. Na outra noite há
luz,
aqui não. A vida converte-se em pureza
como uma sombra vasta, o choro dos
humildes faz tremer toda a crueldade.
Despedaçados através do caminho
rastejamos até o último rio porém logo
afogamos todas as bestas –
só o reflexo do nosso berço
na água. É tão vil alcançar o tempo
desse nascimento, suportar a hora
para a qual viemos de punhos cerrados,
vigiar as marés e adormecer o sono
infantil, cair enormemente, dar a face
o consolo sempre inexistente de ainda
estar aqui e consentir porque é real isto
agora o momento da Terra e todos
estes rostos ainda são reais. Povoamos
as ilhas de miríades, adiamos todos os
adeuses, louvamos e blasfemamos
sempre em nome do inexorável mas
não há marca no mundo de nenhum
triunfo e nem mesmo toda a ira impedirá
que retornemos ao pó, famintos,
como crianças em novelos de
fogo, ajoelhadas.


[SUPORTAR O INCONSOLÁVEL]

Suportar o inconsolável, as premonições,
carregar no colo os fragmentos de ossos
incandescentes, testemunhar a grande
queda do homem sólido, avançamos
rumo ao desaparecimento?
O que resta é ilegível. Cada ferida basta,
nesta noite é tão suficientemente o que
peço. Doí esta água do rio, as pedras
de vento nas margens das estrelas, o
reflexo de todas as cores ainda vivas
ao redor do fogo [luz de âncora trêmula
e cruel, a imagem do corpo sacrificado,
a voz dos invisíveis ainda não ressuscitados
junto aos barcos na névoa – a canção
de flauta não lamenta todo o esquecimento.
É contra o fim que se compartilha o exílio,
durar calorosamente no centro das aflições,
aproximar-se de um amor tão obscuro
quanto frágil, arder nas têmporas lentamente
até que a manhã seja enorme e as velas
estejam finalmente apagadas.


[LÁ ONDE AS ASAS SÃO INCANSÁVEIS]

Lá onde as asas são incansáveis
junto a todos os holocaustos tão frio
e tão duro quanto os gestos que nunca
bastaram, muralhas não aprendemos
a construir tudo leva a crer nos corpos
desmoronando eu não consigo escalar
não consigo estremecer ninguém
constrói uma fortaleza sob escombros
e eu vi a tua casa de mármore eu vi os
anjos ao redor do fogo e todos aqueles
que testemunharam a fraqueza. CADA
CRIATURA ANIQUILADA NÃO BUSCA
NENHUMA REDENÇÃO NA PALAVRA,
estar aqui perante o teu rosto em brasa
é o meu álibi, sabemos,
tu e eu, como são intocáveis tudo aquilo
que terrivelmente se aproxima de nós,
ajuda-me a dizer o invisível esta é a hora
do fim do silêncio eu estou sem fôlego e
nenhuma criança nos dá as mãos sem
temer se despendurar do espaço ainda
sim é real esta comunhão de segredos
extremidade em ser atingido nunca
saber-se nascido mas sempre em chamas.


[QUEM CEGOU-TE DIANTE O TÚMULO]

Quem cegou-te diante o túmulo não disse
adeus, lembro-me de pensar é tão duro
unir nas próprias mãos silêncio e fúria
inesperar que o fracasso da língua seja
apenas o que nos separa do mistério,
o verbo dentro do canto não se quebra
algo grandioso carrega o teu corpo
pela amplidão do espaço, não é somente
a carne um núcleo de som violentado,
tudo o que cresce em tremor desaba e
ressuscita fortemente para a morte, sob
o risco de ser esmagado pelo invisível
consentimos no padecimento e com brasa
e sal, alimentamos todas as nossas memórias,
na tua sombra cresce e afundam-se
navios, há velas acesas na direção da noite,
mares que nos distanciam e finalmente
nos tornam indistinguíveis – abandonamos
tudo, escrevemos salmos à espera do
fim do mundo, algumas palavras sempre
restam inacessíveis –
exceto entre nós.


[NADA NOS TORNA SIMPLES O BASTANTE]

Nada nos torna simples o bastante
para o amor. Tão dura é a distância
entre a vela e o candeeiro, esse cheiro
do incomunicável nos assombrando,
nunca a hora certa de escrever uma
carta, tudo resta ainda por nascer.
Todas as mil e uma noites partem-se
guardadas, as minhas mãos tecem
infrutíferas para tocar aquilo que fomos.
Uma mulher na alvorada cresce sobre
mim, dá-me um nome. O pacto
que fizemos conheceu a verdade
e todos os nossos pecados, o mundo
também nos perdoou embora os sinais
que deixamos uma para outra tenham
sido lidos em outra língua. Nada nos torna
simples o bastante para a morte, tantos sóis
nos separam mas ainda crescemos, etéreas,
fusionadas, para dizer a palavra impossível,
para recriar a fuga sempre adiada.


[OS RAIOS DE LUZ E A TERRA AVERMELHADA]

Os raios de luz e a terra avermelhada
se recusam a perceber as flores
que crescem por fora
da casa,
o temporal é imenso, cada criatura feroz
devora os pássaros que restam feridos.
Tecer e purificar –
bater com a noite dentro do corte
e sentir extinguir o anseio voraz
de confundir-se com o
excesso das ondas,
cavar em silêncio esta cegueira
e proteger os rebanhos contra a
arrebentação da água, há sempre
algo por iluminar dentro do relâmpago,
derramar lágrimas ou colher sombras
celestes nos pergaminhos antigos,
demolir as estradas e finalmente
estar como que consumido pelo
imprevisível.


[O INCÊNDIO TE CRESCE NO TREMOR]

O incêndio te cresce no tremor e torna
toda casa inabitável –
aquela que atravessa o nevoeiro
sepulta teus mortos cobre-os com areia,
abandona toda margem e cobre-os
sem recusa, vencida docemente pelos
sinais de fogo toda a vida oculta dentro
de seu corpo sacrificado a penetrar
a última estrela e de repente silêncio
mais uma vez as tuas mãos e o rio
se fundem e nada está intacto,
toda guerra necessita de um sol
que se destina à queda, teu olho
de Mulher tu sentes
tu sentes a mim como
o filho sente o sangue daquele
para quem as crateras são grandes
demais, teu voo de peixe branco
não me consola – estou em prantos,
é impossível impedir o curso
dos trovões: luz dispersa,
ESPASMOS, Tu-Absoluto,
o magma e os ossos fraturados,
deitamo-nos na verdade e
a verdade nos despedaçou -
o peso de um deus não suporta
morar no Nada.


[QUEM TE OFERECEU COM AS MÃOS]

Quem te ofereceu com as mãos
o dom da morte no monte moriá?
Não há senão impactos,
ama violentamente o naufrágio,
quando os deuses todos gritam Mãe
sangue e primavera não se rompem.
Todas as torres e pedras nos templos
construídas através dos teus filhos
esmagados como que diante de mil sóis.
O corpo abandonado em cinzas,
esquecido com safiras e corais imensos,
ali na colina rochosa não há nada
de visível apenas a voz dos desfalecidos
e incabíveis: é precioso teu rosto
luminoso e aceso dentro do meu
todo o horror e tu e eu, você para mim
de ti para dentro da noite flutuar sonolenta
e no escuro tocar teu nome.


[A VERDADE EM ESTAR CEGO]

A verdade em estar cego é
poder tocar as estrelas e sabê-las
eternas, em miséria e paixão, colher
nos lábios o enigma de um centauro
ser cativeiro do imenso e desmoronar
para dentro do escuro, oscilar junto
aos veleiros, estar descalço sobre
as ondas: ferir-se como quem
desdenha de toda mácula,
tão impuro e inocente, cravar
os pés no chão, receber do
deserto o dom do esquecimento,
perdoar o próprio sangue e
estar finalmente íntimo do silêncio.


[A MÁGOA NÃO PERDOA AS MANHÃS]

A mágoa não perdoa as manhãs de nascer
no centro das folhas. Esta paisagem não
se põe sobre o pomar, aérea dentro do
fruto estico as mãos sobre o rosto, peço
a doçura dos sítios alagados e entre os
ciprestes, torno-me incolor na água. É
terrível toda a beleza, dolorosamente
cair no fundo de todo este sal e saber
que por anos ficaremos vagando em
tremendo exílio neste lugar. Cada ferida
aberta é tão intocável entretanto não
há medida para nenhum vale e todas
as criaturas também estão esburacadas.
A espera é este fogo absoluto, a caça
sem fim no limite do impossível daquilo
que não houve [nunca
há. Pedras, cascalhos, incêndio,
inteiramente carne-viva, flutuo tal
como concha, perdida no mar.


[ TRÊS PERGUNTAS ]

FM | Poesia, amor, liberdade – a tríade essencial do Surrealismo. De que maneira ela faz parte de tua vida e se integra à tua criação?

CF | Tenho pra mim a poesia como este lugar que não está compromissado com o sentido e que pode de certa maneira estar entregue à experiência do vertiginoso, aquilo que nos arranca para além do interpretável e das representações do mundo fixadas na lógica ou pautadas pela racionalidade. Os sons, as imagens, as sensações, forças que atravessam e marcam a escrita, penso que tudo isso tenha um ritmo próprio que não necessariamente se encaixa nas leis da linguagem e da compreensão. Certas experiências só podem ser tangíveis para além do que se pode compreender delas. Acredito que o surrealismo abra espaço para isso. A liberdade tenciona entre as determinações de nossas referências e sentidos estabelecidos no mundo e a possibilidade de que algo se extravie, reste para além das pontuações devidamente colocadas ou das sentenças ordenadas que façam sentido. E o amor é certamente onde cresce o extravio.

FM | Dentro e fora do país, entre vivos e mortos, independente até mesmo da poesia, não apenas citando os nomes, mas comentando os motivos, poderias referir algumas afinidades tuas na criação artística?

CF | Creio que a poesia portuguesa seja uma das minhas grandes paixões, talvez seja pela presença do porto, a proximidade com certa grandiosidade do mar e um ritmo de palavras [os sons dos poemas, o canto], tudo isso me comove bastante. O Herberto Helder tem essa função de pólvora naquilo que sinto, penso, escrevo, assim como também Sophia de Mello Breyner, Daniel Faria, Al Berto, todos magnâmicos. Mas uma das grandes afinidades, como quando sentimos que nosso corpo está tomado por algo que alguém escreveu, é com a obra da argentina Alejandra Pizarnik. Todos os dias acordo e peço ajuda para “escrever palavras, nesta noite, neste mundo.”

FM | Tenho percebido que, sobretudo em poetas nascidos a partir de 1980, há um renascimento na lírica brasileira, que é tanto na densidade da escrita, quanto na definição de uma voz própria, quanto no sentido de uma solidariedade explícita, sem que isto reflita a existência de um movimento. O que observas a este respeito?

CF | Tenho presenciado um desejo de tornar a escrita poética viva mesmo em tempos de ruína, ousar habitar ainda poeticamente o mundo, “não ceder aos desastres” e por isso, certa solidariedade explícita entre os poetas, escritores e amantes da literatura.  Ainda sim, percebo que às vezes se torna difícil alcançar outros espaços, fazer ressoar o poema para fora dos nichos literários ou dos que já circulam neste meio. Não sei, talvez seja uma dificuldade mais pessoal do que geral. Certamente há preciosos nomes na poesia brasileira atualmente, não apenas os que estão nas grandes livrarias. Fico contente com o convite do Floriano e dessa revista tornar possível a leitura, o encontro e a publicação de jovens escritores no Brasil.


[ FOLHA DE VIDA ]

Cíntia Faria (Rio de Janeiro, 1997). Amante, finda em 2019 a graduação de Psicologia na UFRJ.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Anna Höch (Alemanha, 1889-1978)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 128 | Fevereiro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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