quarta-feira, 9 de setembro de 2020

WILSON COÊLHO | Fernando Arrabal: o homem sem raízes

 


Dramaturgo, escritor, poeta, cineasta, pintor, desenhista, roteirista, jogador e teórico do xadrez, o espanhol Fernando Arrabal nasceu aos 11 de agosto de 1932, em Melilla, no continente africano (Marrocos espanhol), filho de Fernando Arrabal Ruiz e Carmen Téran González. Em 1936, por ter se recusado a colaborar com o General Franco no golpe militar de seu país, seu pai, tenente em Melilla, foi preso e condenado à morte. Tendo a pena trocada por 30 anos de prisão, foi transferido para a Cidade Rodrigo (Salamanca), depois, internado no hospital psiquiátrico de Burgos. Em 1942, desaparece em circunstâncias misteriosas e não se ouve mais falar dele. Desde 1940, a família de Arrabal se instala em Madri.


A tragédia da guerra civil espanhola está fortemente presente em sua obra literária e, de certa forma, sua vocação de dramaturgo e escritor se alimenta dos transtornos sociológicos, do sistema totalitário, o desaparecimento de seu pai e as relações difíceis no seio de sua própria família. Aos 10 anos de idade, começa a escrever e ao participar de um concurso de matemática recebe o Prêmio nacional de “superdotado”.


Arrabal é um admirador de Goya, Valle-Inclán e Buñuel, e algumas de suas peças caminham em direção ao barroco: uma magia, uma festa suntuosa, uma abundância de gestos, de gritos e de cores, destinados a violentar, a “chocar” o espectador.


Mas o aspecto barroco na obra de Arrabal, como um “realismo da confusão”, é uma nova maneira que ele encontra para liberar seus transtornos na medida em que os transfigura, impondo-lhes um tipo de ordem e, de alguma forma, reencontrando o sentido primeiro do seu teatro de magia, onde são tênues as fronteiras que a separam de sua vida. E, compreendendo e aceitando a condição de que as estruturas do diálogo, da ação teatral e do universo têm a mesma forma, para Arrabal, o teatro não se resume ao palco, mas ele é tudo isso que advém, onde a ação – por ser a imagem refletida do mundo – não deve ser uma mera demonstração de alegorias e maneirismos cênicos. 



 

 


Ao conceber a dramaturgia, Arrabal parte de suas inquietudes políticas e existenciais, faz da história o espaço cênico e o principal fundamento da elaboração de sua criação teatral. Sua dramaturgia não se limita à pretensão de criar um novo texto, mas elabora um tipo de carpintaria teatral que, apesar da aparente ingenuidade e da exploração do nonsense, parece ter um rigor científico do ritual. A ideia de um “rigor científico do ritual” trata-se de uma alusão ao fato de que, apesar do aparente inusitado do transe, há uma lógica interna no ritual, onde se rompe a fronteira entre atores e espectadores, considerando que de alguma forma todos participam. Num determinado sentido, coloca em questão a ideia do público como uma entidade, ao mesmo tempo em que referenda o fenômeno de algo que se torna público, no momento em que é “publicado”. Para tanto, provoca uma espécie de necessidade de romper com o mero conceito de “representação”. Levando em conta que sua produção tem sido reconhecida como Teatro do Absurdo, juntamente com Beckett, Ionesco, Adamov e tantos outros.


Para ele, o teatro é “sobretudo uma cerimônia, uma festa, que tem do sacrílego e do sagrado, do erotismo e do misticismo, da colocação da morte e da exaltação da vida. Eu sonho um teatro onde humor e poesia, fascinação e pânico não fariam mais que um. O rito teatral se transformaria então em ‘operamundi’, como os fantasmas de Dom Quixote, os pesadelos de Alice no país das maravilhas, o delírio de K., até os sonhos humanoides que frequentavam as noites de uma máquina IBM.”



Para alguns, o teatro de vanguarda no Brasil se inicia com a montagem de sua obra “O cemitério de automóveis”, dirigido pelo argentino Victor García, com produção de Ruth Escobar e tendo como protagonista, no papel de Emanu, o ator capixaba Stênio Garcia.


Mesmo tendo se reunido com os surrealistas e Breton e, ainda, ter sido nomeado Sátrapa, uma espécie de Prêmio Nobel do Colégio de Patafísica de Paris, seu lugar de destaque está no pânico. Em 1962, juntamente com seus amigos, o desenhista Roland Topor, o escritor Sternberg e o encenador Alexandro Jodorowsky, apaixonado pelo “happening”, Arrabal funda o Movimento Pânico – designação que vem etimologicamente do deus grego Pan, da totalidade, momento em que abandona um pouco suas parábolas “infantis” para explorar a veia do fantástico e do ritual. De certa maneira, o seu reencontro com os surrealistas faz com que ele desenvolva e leve adiante a crueldade colocando em prática algumas das ideias preconizadas Antonin Artaud.


A obra de Arrabal é formada de duas dezenas de romances, 800 livros de poesia, três epístolas, mais de uma centena de peças de teatro, sete filmes em longa-metragem e diversos curtas, outra centena de livros de arte e técnica de xadrez, seis livros destinados ao fracasso, uma centena de telas pintadas, muitos milhares de fotografias, um milhar de artigos para a imprensa internacional, muitas centenas de conferências nas universidades mais prestigiadas do mundo.


Sua criatividade múltipla está também manifestada nas artes plásticas, que ele explorou numa abundância de esculturas, pinturas, colagens, desenhos, e que fazem o objeto de numerosas exposições e retrospectivas em galerias e museus de diversos países.


Ele tem recebido um grande número de honrarias e prêmios internacionais. Sua obra está traduzida na maioria das línguas e seu teatro entre os mais encenados do mundo.


Enfim, Fernando Arrabal, o Transcendente Sátrapa do Colégio de Patafísica de Paris que conviveu com Dali, Picasso, Sartre, Duchamp, Ionèsco, Cioran, Beckett, Dario Fo, Umberto Eco, Breton, Boris Vian, Man Ray, Andy Warhol, Tristan Tzara, Genet e tantos outros, é considerado como o único sobrevivente dos “quatro avatares da modernidade”, a saber, o Surrealismo, o Postismo, a Patafísica e o Pânico.


Tendo nascido no continente africano e vivendo em Paris desde 1955, como uma espécie de autoexilado, ele se diz natural da “Desterrolância” e, ainda, insiste em afirmar que não tem raízes, mas – sim – asas. 

 

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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 157 | Setembro de 2020

Artista convidado: Fernando Arrabal [dibujos] (Espanha, 1932)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

logo & design | FLORIANO MARTINS

revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

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