quinta-feira, 22 de abril de 2021

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO & MARA ROSA | Para memória & história de um agrupamento surrealista [1968-1974] em Évora

 


Évora é uma cidade misteriosa – não tanto pelo que dá a ver mas pelo que esconde nos seus recessos e nas dobras da sua história. Hoje é uma cidade cinza com um aeródromo, uma FNAC e estradas circulares entre armazéns e hipermercados, que piscam nas longas noites escuras e frias de Inverno uma luz sinistra e cor de sangue. Outrora teve o Cardeal Rei, Henrique de seu nome, irmão dum rei português tão tratante como ele, João III de Avis. Um vinha a Évora como o pai já viera, mudar de ares e visitar palácios, e o outro aqui se instalou para fazer sua a cidade, tornando-se o seu primeiro arcebispo, fundando uma escola que entregou aos Jesuítas e se fez pouco depois Universidade, modelando o semblante da cidade à imagem da Roma imperial e dos seus estilos rectilíneos, criando dentro de muros o bárbaro horror que se chamou Inquisição.

Não é nada disto que faz a grandeza e o mistério de Évora nem no passado nem no presente. Sob esse aspecto a cidade é vulgaríssima e irremissível. Com todos os seus palácios, todas as suas igrejas, todos os seus armazéns e todas as suas estradas, trocamo-la de bom grado por um côvado de feijões. Nem dada a queremos. Se há grandeza em Évora é preciso procurá-la em pormenores despercebidos que todos os horrores do passado e do presente não foram capazes de apagar. Falamos de quê? – Do silêncio, do branco, dos pássaros, dos granitos, das árvores, dos besouros, dos escaravelhos e de outros coleópteros. Embora raríssimos em época de genética transformada, há milagres destes em Évora. Às vezes é necessário descer ao poço do passado para os encontrar. Assim este caso dum agrupamento que o surrealismo juntou em Évora, de que aqui se dá uma primeira nota ou subsídio, com um aviso à circulação para que a urbe não olvide – ou então esqueça depressa e de vez para que das suas ruínas voe uma serpente emplumada, pássaro de oiro esguio e bífido que há-de dar ovo e sonho. Contos Lendas & Mitos dum agrupamento surrealista – assim se queria este texto corrido que não tem outro desígnio senão ser memorial – ou rosa negra esculpida no basalto da alma para pôr no pedestal dos 50 anos dos feitos e dos factos deste grupo.

 

 

O surrealismo foi em Portugal um milagre. Na cultura típica da segunda metade da década de 40, com os rodriguinhos do folclore, esperava-se tudo, desde mostras no SNI a exposições na SNBA, menos um grupo de rapazes entusiasmado pelo surrealismo. Este acabava de passar a salto a guerra em duas vertentes – uma interna com um grupo activo na resistência, La Main à Plume, que cometeu a proeza de dar à Resistência francesa dois dos seus mártires mais jovens, Marco Ménegoz, com 16 anos, e Jean-Pierre Mulotte, este com 15. Deste grupo saiu em 1947 Le Surréalisme Révolutionnaire, do qual surgiu depois parte do movimento COBRA de tão marcante memória na viagem criativa da arte sem arte da segunda metade do século XX. A segunda vertente é a dispersão do grupo original, Breton, Péret, Tanguy, Ernst, Dali e outros, por terras americanas, donde só regressam, quando regressam, já na rodagem da segunda metade da década de 40. Esse exílio valeu a Péret um renovado interesse pela arte pré-colombina – ele, que já havia passado uma longa temporada no Brasil entre 1929 e 1931, onde foi conviva dos antropofágicos paulistanos e onde foi pioneiro no estudo dos cultos afro-brasileiros (mais tarde em 1955 foi dos primeiros historiadores do Quilombo de Palmares) – que lhe daria uma marcante colectânea, Antologia dos mitos, das lendas e dos contos populares dos índios da América, que só surgiu póstuma em 1960. Da parte de André Breton, o exílio valeu-lhe perder Jacqueline Lamba, mãe da sua única filha, Aube Breton (1934), e encontrar Elisa, que lhe inspirará a narrativa Arcano 17 (1944) como Jacqueline lhe inspirara O Amor louco (1934). O exílio deu-lhe ainda os prolegómenos a um terceiro manifesto do surrealismo ou não (1942), com uma atenção ao mito, que no caso dele tomou a forma dos Grandes Transparentes, e uma estadia entre os índios Hopis, o que talvez jogue bem e até justifique o primeiro acto público no momento do seu regresso a Paris em Maio de 1946 – discurso público no Teatro Sarah-Bernardt no dia 7 de Junho a abrir uma sessão de homenagem a Antonin Artaud que acabara de ser libertado do martírio do asilo de Rodez, depois de quase dez anos de internamentos psiquiátricos e muito choque eléctrico. Foi no rescaldo desta sessão que André Breton deu o segundo passo do seu regresso a Paris, a realização na sua cidade de sempre – nunca se adaptou a Nova Iorque, onde viveu entre 1941 e 1946 – duma grande Exposição Internacional do surrealismo, cujo destino era dar conta da evolução do surrealismo e contava com organização dele e de Duchamp, esse que vinha dos tempos iniciais do dadaísmo e acabara bordão, braço e mão nas iguais e monótonas avenidas da cidade do Hudson. Quando estreou na Primavera de 1947 na galeria Maeght de Paris, a Exposição acabou a ser o grande motivo do relançamento do surrealismo nas ruínas da Europa do pós-guerra – isto a contragolpe de todas as modas intelectuais que então varriam Paris e de que hoje nem o pó diluído resta, como esse existencialismo sartriano de que se dirá ainda o seu quê ou kopa a propósito duma certa e antiquíssima esquina de Évora.

Foi neste preparo que a juventude lisboeta encontrou o surrealismo e se enamorou por ele. Alexandre O’Neill, Mário Cesariny, António Domingues e João Moniz Pereira, todos com pouco mais de 20 anos e todos trânsfugas do neo-realismo coimbrão, que se estava a tornar, além de acomodado, suspeito de seco e de seca, foram as quatro pontas dum quadrado que depressa evoluiu e se tornou nada menos, nada mais, do que o Grupo Surrealista de Lisboa, de efémera existência, posto que marco das actividades surrealistas em Portugal. Antes só mesmo a pintura de António Dacosta, algum desenho de Cândido Costa Pinto, umas linhas e uma novela de António Pedro, Apenas uma narrativa (1942), e pouco mais – nada que chegasse para firmar um movimento e encetar uma aventura. Mário Cesariny e João Moniz Pereira arrancaram para Paris no Verão de 1947, onde foram à Galeria Maeght ver a exposição e onde o primeiro contactou por diversas vezes, cara a cara, André Breton e Victor Brauner. Ambos o marcaram – o primeiro com o seu cometa ardente de fogo, chegando para nutrir um movimento que nascera para mudar o humano, e o segundo com os seus desenhos, a sua picto-poesia de mesas lobos que tão importante veio a ser para o triângulo mágico da obra pictórica do Leão português. Em Lisboa, O’Neill e António Domingues esperavam o regresso de Cesariny – Moniz Pereira só regressaria no final do Outono – para darem arranque às actividades colectivas do grupo, a que entretanto se tinham juntado por um lado Vespeira e Fernando Azevedo, dois velhos conhecidos de Cesariny e de Domingues da escola de artes e ofícios António Arroio, e por outro António Pedro e José-Augusto França. Do melhor do grupo ficaram alguns cadavre-exquis, uma tomada de posição a favor de Gomes Leal, no centenário do seu nascimento, uma recusa de submeter trabalhos seus à censura numa exposição da SNBA. Cesariny não demorou a bater com a porta – a presença de António Pedro, 20 anos mais velho do que os outros era demasiado brutal – e a juntar-se a outros mais novos, António Maria Lisboa, Fernando Alves dos Santos e Risques Pereira, e a dois dos seus amigos da escola António Arroio, Cruzeiro Seixas e Pedro Oom, a que se somaram ainda Carlos Eurico da Costa, acabado de chegar a Lisboa do Norte, e Mário-Henrique Leiria, que estava desde sempre em Carcavelos, a uma hora de Lisboa. Estava formado na região portuguesa o colectivo mais dinâmico do surrealismo em português, o que mais tropelia prometeu e deu. Assim como assim, em 1952, com a doença de António Maria Lisboa, que morreu poucos meses depois, a prisão em Caxias de Mário-Henrique Leiria e a partida para África de Cruzeiro Seixas, a que se juntou a dispersão dos mais novos e a solidão judicial de Mário Cesariny, o grupo estava desfeito – embora Luiz Pacheco, editor de Cesariny e Lisboa em 1952 e inícios de 1953, ainda dele editasse, não sem grossa barafunda, no Outono de 1953, o seu principal manifesto Afixação proibida (1949).

Ficou órfão o surrealismo em Portugal com a dispersão do grupo de 1949 e com a morte do seu mais entusiasta teórico e visionário? Cesariny viveu ainda mais de meio século e não tardou a reunir – ou a ver-se envolvido – por um enxame de jovens à mesa dum Café do Rossio, o Gelo, que servira já para as conspirações carbonárias do regicídio. A história do Café Gelo está feita bem ou mal por subsídios parcelares, mas ainda assim bastantes para se saber o que por lá sucedeu. Durou do final de 1954 até à primeira semana de Maio de 1962, altura em que a polícia e o gerente do Café acharam por bem varrer a quadra do lugar daquela fauna exótica e feia, que ia desde um horroroso de Orpheu, Raul Leal, até a um músico de orquestra de navio, Manuel de Lima, que tinha tudo de fino – era ainda crítico de música nos jornais lisboetas – e inventou um clube de antropófagos com sede no Alentejo. Pelo meio o grupo passava ainda por um funcionário da Inspecção-Geral dos Espectáculos, Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco, que ia para a repartição de gravata e pés descalços, e por muitos estudantes e desempregados crónicos. No meio desta selva, feito leão entre os animais, mas leão de piano, sentava-se Cesariny, então duma arrasadora beleza. Assim o traçou João Rodrigues (1937-1967), um dos suicidados do grupo – houve mais, muitos mais, todos abjeccionistas sem suporte – num medalhão real, que ainda hoje faz tremer. Com os seus azuis de fundo, a sua linha de água num cometa de oiro e chamas, parecia estrela celeste ali descida por acaso ou índio príncipe desterrado que ali melancolizasse, sem súbditos nem senhores.

Segunda geração do surrealismo em Portugal? Sem margem para dúvida que sim – se tivermos em atenção que foi às mesas do Café da esquina ocidental do Rossio, mesmo a encaixar na grande gare dos comboios, que se fez a única revista surrealista que Portugal deu nestes anos – Pirâmide, que fez três números entre Junho de 1959 e Dezembro de 1960. Produzida por dois dos mais recentes advindos ao Café, a revista fez com o número de estreia, que mereceu copiosa atenção de João Gaspar Simões, então com crítica hebdomadária no já então velhinho Diário de Notícias, o que nunca se fizera – reunir em páginas de papel poemas, declarações, manifestos e outras tropelias daqueles que em 1949 haviam chamado a si o surrealismo. Mas segunda geração do surrealismo também pelos poemas e pelos textos de António José Forte, Virgílio Martinho, Manuel de Castro, Ernesto Sampaio, Fernando Saldanha da Gama, e pelos rabiscos de João Rodrigues, Manuel d’Assumpção e Gonçalo Duarte – isto sem falar do oiro alquímico da poesia de Herberto Helder, também ela tão devedora de tanto que vinha de Lisboa e de Cesariny, e da força extravagante de João Vieira, dos diamantes de José Escada ou do artesanato sombrio e logo solar de Lourdes de Castro.

É no frigorífico do Gelo, em cheio no alvo da Guerra Fria, quando em São Francisco Kenneth Rexroth que frequentou na juventude Emma Goldman e Alexander Berkman convocava a escandalosa leitura de estreia de Howl, que se dá notícia pela vez primeira de Évora – Évora a encantada, Évora a perdida, Évora a abafada, Évora a cardinalícia, Évora a exterminadora. Um nome, um ponto, a cerzir esta presença: António Gancho (autor/actor/poeta esconjurado da memória eborense), que ao Gelo chegou já tarde, talvez no final da década de 50 ou início da seguinte, quando o Café começava a saturar, mas muito a tempo de conviver com todos e antes de mais com Herberto Helder que tanto depois fez para o tirar do esquecimento que lhe foi Telhal e Évora, e António José Forte, que a ele se referiu ao menos uma vez como fazendo parte inteira do grupo e dele sendo o seu louco oficial – nada menos do que 40 anos de asilo. Primeiro arcano dum baralho de 22 pintas e imagens onde faz a vez do brincalhão – el juglar. Um segundo ponto de Évora no Café Gelo: Álvaro Lapa, que afinava pela mesma idade de Gancho e que fizera a mesma formação nos bancos duma cafetaria que parece que havia no lado ocidental da Praça do Giraldo, o Rossio eborense, com os seus Cafés, lojas de comércio, tabacarias de rifas e por fim uma livraria, a Nazareth. Uma diferença os separava porém: Lapa mexia as tintas com espátula e Gancho mexia nas letras, antes de mais com a mente, que nunca foi escritor, menos ainda o era nessa época inicial, em que o ex-seminarista Vergílio Ferreira o conheceu e o pôs n’ Aparição nessa figura meio tola e burlesca que é o Carolino, o Bexiguinha, aluno seu no velho Liceu de Évora, outrora alfobre de padres e missionários jesuítas – esses que tiveram de ser expulsos do Japão e das terras do Cataio por intolerância, falta de respeito e romano fanatismo, o mesmo de sempre, que desde o delenda Cartago de Catão ao delete de hoje tem conseguido apagar à força meio mundo do mapa. Só nas Antilhas e adjacências o padre Bartolomeu de las Casas fala em 1542 de 15 milhões de almas humanas, «vítimas das opressões e das infernais obras de cristãos». Évora aparecida? Nem pensar nisso é bom. Évora férula! Évora sinistra do Cardeal Rei. Não lhe bastou o Cardeal, ainda teve de ir ao trono para o sujar e o deixar ao pior dos sobrinhos – esse Filipe, não sei se macro ou micro, Filipinho ou Filipão, que ia estrear o veludo do calção e a seda da meia aos aparatosos autos-de-fé da cerca madrilena. Ó Évora morta, dos ossos e das ruas frades! Ó Évora dos Monsenhores e do vergonhoso brasão sangrento! Ó Évora decapitada!


Com Gancho e Lapa chega-se à sexta década do século de todos os horríveis (dezenas de milhões de mortos em duas guerras, dois cogumelos atómicos em duas cidades japonesas e tantos outros sem dó nos mares da Polinésia e nos desertos de todos os Méxicos) – tudo pintado a tinta sem ferrugem e fabricado agora não pelos jornais mas por uma pantalha, a televisão, que foi a grande novidade dessa década em Portugal. Também Évora a teve, com aparelhos em forma de caixote de armazém e vidro duma espessura que nem os míopes de 20 dioptrias. Começou a idade do soporífero, que cresceu muito, quando os caixotes se tornaram caixinhas e passaram a andar no bolso e há-de agora crescer quando as caixinhas se tornarem tão finas como lamelas e o corpo as sugar e tratar como se dele fossem. Ao tempo a vida real, mesmo com espectáculo, ainda era possível. O genético modificado ainda não chegara – ou era só na cabeça de quem planeava. Da geração de 50 à de 60 em Évora vai um salto de quilómetro graúdo. A guerra começou em Angola em 1961 e estendeu-se à Índia, à Guiné, a Moçambique. Em 1965 era um incêndio que atacava em todas as frentes, algumas já perdidas, como essa Goa invadida – que honra para nós – pelos satiagrahas de Gandhi. Ao lado ficava o Vietname mas aqui dentro eram os «turras», melhor ainda esturras, e não havia bombeiros que chegassem. Do sertão mais recôndito, da fralda mais agreste, da província mais perdida e distante, aquartelava-se a miudagem de 20 anos, quase imberbe, tratada a «mancebo», acertado nome para quem ia dar corda ao fogo. Mão sebo para arder e dar a ver! Penduravam-lhes no braço uma farda verdosa e uma mangueira de vomitar fogo – a famigerada G3 que Beirolas produzia, a sorrir da taluda grossa que lhe saíra. A geração que nascera na segunda metade da década de 40 e no início da seguinte estava pois a braços com um filme de estrada que não tinha fim.

Em Évora, estes novos, passaram a fazer viagens que nada tinham a ver com as de Lapa e Gancho – estes dois, um pulito ao Rossio lisboeta pela estrada de Venda Novas, a recta de Pegões, a estalagem Gado Bravo e Vila Franca de Xira, já na outra pele do Tejo, tudo tranquilo mas muito frio e zincado à 50. Os outros, os novos de 60, foram para o Limpopo, para o Zaire, para os Bijagós e outras prendas com nomes assim longínquos e a perder de vista. Uns regressaram aflitos – mais tarde deram-se por traumatizados pela visão do inferno – e outros carbonizados e só deitados. É ver o plinto que está no quartel-general no Largo dos Castelos em Évora e ler a fieira dos 27 nomes que lá estão. «AOS QUE LUTARAM E MORRERAM POR PORTUGAL NO ULTRAMAR», assim reza a pedra com referência ao «ultramar» – empolgante e bela palavra que uns tantos mafiosos roubaram à língua e tornaram quase irrecuperável. Outra reza quase o mesmo, só que no Rossio de São Braz e desta vez em latão, filii pro patria caesis ebora, pelos filhos da cidade perdidos na inglória e criminosa primeira grande carnificina do século dos grandes horrores – a dos gases e das trincheiras. Estes que esfolam a gás e à bomba, e matam agora a laser e a drone, são o quê? Valham-nos pois os bárbaros, que ao menos trucidavam à pedra. Saco um nome ao acaso dos do ultramar: soldado Rodrigo Joaquim Vaquinhas, morto na Guiné. Quem este miúdo? Que ruas pisou? Que pó mordeu? Seja por ele, pelo seu nome aqui escrito e lido, que todos vivam na nossa memória não como heróis à força mas como inocentes espoliados do mais valioso bem, a vida. São tantos os crimes que se cometem em teu nome, ó Pátria, que podes ir hoje para o vazadouro da História! E já agora aproveita para levares contigo os reis, as bandeiras, os clubes, os chavões, os presidentes, as cátedras, os prémios, as administrações e outras inutilidades com que nos têm estragado a vida.

Nem todos porém estavam prontos a guardar a farda verde e a mangueira de vomitar fogo e sangue. Não que tivessem medo das viagens de longo curso mas porque ciosos da liberdade queriam dispor da vida que era deles. E viraram costas ao mar e aos barcos que partiam para Luanda ou Lourenço Marques atulhados de miudagem fardada. Rumaram assim ao Caia, a Vilar Formoso, ao Minho, ao Tâmega e ao Douro à procura das novas estradas que levavam a Paris, a Bruxelas e Amesterdão. Esses, os que visavam aos Pirenéus, eram tão inocentes, destemidos, imberbes como os outros. Muitos nem vintes tinham – desandavam antes da chamada aos quartéis. Eram os refractários. Outros abandonavam os quartéis. Eram os desertores. Todos eles porém partiam, não fugiam. Desejavam apenas viver a vida deles como bem queriam – e nada era mais justo. Os de Évora também. Notícia temos dum deles, nascido em 1945, aluno dos Salesianos e que há-de ter nos seus tempos de menino vestido a camisa verde da Mocidade Portuguesa, com quinas e tudo, sem esquecer o S da fivela do cinto e o bivaque castanho em pano grosso, de seu nome Joaquim Palminha Silva (1945-2015), eborense tão ou mais ilustre como os que dicionarizou. Desertou do quartel em que estava, mesmo à boca de ser despejado num barco, ele que já andava adiado, e ficou escondido num quarto duma pensão do Bairro Alto, frequentada por putas e chulos. Ali ficou meses à espera da ocasião. Não era homem de medos – mais tarde foi em Paris operacional da LUAR com várias missões, uma delas ao menos no interior do país – mas sim histrião de sainete e boas piadas, além de consciencioso historiador. Chegou a Paris em Junho de 1968, para ainda apanhar os paralelepípedos da calçada e chutar num, frustrado por perder a grande coboiada das barricadas. Este Palminha, tão valioso em tudo, até na simplicidade, ainda o conhecemos na caliça invernosa de Lisboa, envolto no seu gabão de transtagano já depois da Revolução, com ele feito funcionário do Ministério dos Estrangeiros, onde estudou Jaime Batalha Reis, o do Cenáculo e o do Casino, e deu um livro de truz, Jaime Batalha Reis na Rússia dos Sovietes (1917-1918). Reencontrámo-lo anos mais tarde já reformado nas ruas de Évora, que tanto gostava de apresentar aos que chegavam de fora. Era cicerone prestável que conhecia e amava como poucos a sua terra.

Neste ano de 1968, tão cheio de memórias, como vivia Évora? Ou como nela vivia a juventude? Duas escolas de influência – o Liceu e a Escola Gabriel Pereira, que os do Liceu, lá do alto, empoleirados nas cavalitas do Cardeal Rei, desprezavam como o «galinheiro». O tempo de Vergílio Ferreira já passara. Este preferira trocar a esquina da Livraria Nazareth, onde parava a dar dois dedos de conversa e queimar um cigarro, pela Avenida de Roma onde ia a butes às novidades no apertado cubículo da Livraria Barata e pela Avenida da República que descia ao volante do Carocha para ir dar aulas de latim latão ao já velho Liceu Camões. Uma nova leva de professores chegara entretanto a Évora – Albano Martins, Fernando Martinho, Manuel Ferreira Patrício, este descido de Montargil e na ou da cidade desde os tempos de Lapa e de Gancho, acabava assim a fazer a ponte entre as várias gerações. E além do Liceu e da Escola havia como escolinhas não creditadas mas ainda mais competentes naquilo que mais importa, a vida à solta, então com cinema, livros, música e bailes, a Sociedade Operária de Instrução e Recreio – Joaquim António d’Aguiar, a Sociedade Harmonia Eborense, esta fundada em 1849 com um toque do falanstério de Fourier e da New Harmony de Robert Owen, que ainda hoje se mantém e que seria lástima perder, a FNAT e suas instalações palatinas a poucos metros da Harmonia, o imponente Café Portugal na Rua João de Deus, hoje uma loja multinacional de roupa, e por fim a Galeria A Trave do pintor Paulino Ramos, que tanto jogou para aquilo que aqui nos interessa – o surrealismo em Évora. Todos estes lugares ficavam dentro de muralhas, num perímetro de poucos metros, entre a Porta de Alconchel, na saída para Lisboa, com os Salesianos logo à direita, e o Pátio do Salema, no pináculo da urbe, mesmo aos pés do navio engrinaldado de vitrais da Sé – hoje um galeão rombo, ancorado nas areias, que serve quase só para foto digital de turista. Tão longe e tão perto que está a fortaleza dos tempos de Severim de Faria, seu deão! Longe de muralhas, já no meio do montado, só mesmo as piscinas municipais. Depois da abertura em Setembro de 1964 e numa terra onde o Sol delira nos Estios estas fizeram-se para a juventude um ponto de encontro – que mais diferenciou ainda a geração eborense da segunda metade da década de 60 e as anteriores que atravessaram a década de 50 e o início de 60, que piscinas só os tanques das bacias hidrográficas do Divor, do Xarrama e do Degebe, o grande rio de Antunes da Silva, um dos avoengos destas várias gerações, ele que em 1945 deve ter recebido de braço abertos na cidade dois jovens do MUD, nada menos do que Cesariny e Pomar, ambos então nas lides neo-realejas da arte engajada e com muitas idas ao Barreiro no velho vapor dos apitos nos nevoeiros do Mar da Palha e que o primeiro pôs a despejar cabisbaixa gente na sua simplificação do engenheiro Álvaro de Campos. E como não engenheiro se era triunfal e logo moderno?!

Outro local de passagem era a Biblioteca Pública – esta, cofre de tesouros que vinham dos tempos de Frei Manuel do Cenáculo, também Vilas Boas, velho de nove décadas que apanhou Pombal, a Viradeira, a rainha louca, os franceses de Junot e os britões de Wellington e de Beresford e perdeu por um triz a forca de Freire de Andrade, o de Vagram, Moscovo e Dresda, e a revolução do vintismo. Os tesouros do recheio na segunda metade de 60 eram outros e não passavam pela Manizola, pela tipografia de Évora, que editou os Resendes e Bernardim e por outras jóias raras da bibliofilia. Eram pedras mais modestas e recentes, ainda assim com valor para rutilarem num céu de livros. Antes do mais, a edição que Vergílio Ferreira preparara na sua casinha de Évora, na Rua do Arcebispo, antiga Rua da Mesquita, em 1953, A face sangrenta, editada na chancela Contraponto de Luiz Pacheco, então inofensivo funcionário público e longe de ser o grão Pacheco, mas já extravagante, que veio a Évora, onde de resto tinha família, ele que ainda era primo dos Salomés do Redondo, conhecer o editado. O exemplar que está na Biblioteca Pública e que lá aterrou via postal por depósito legal está tão manuseado que se vêem as marcas dos dedos das sucessivas gerações, a começar logo na de Gancho, Lapa e Joaquim Bravo, que quiseram admirar essa obra-prima das edições que Pacheco então fazia com os mais modestos meios, os da Tipografia Ideal, sita na Calçada de São Francisco em Lisboa, onde trabalhava o poeta tipógrafo João Apolinário Ramos. Essas edições, repetidas à época por Manuel Grangeio Crespo, folhetos também existentes no recheio da biblioteca de Évora ainda por força do depósito legal, fizeram depois o deslumbre de Vitor Silva Tavares que lhes seguiu lição e estilo na editora que fundou em 1974 – & etc. Na mesma linha, estão os opúsculos que o editor da chancela Contraponto editou no final da década de Herberto Helder e de Natália Correia, também manuseados na biblioteca de Évora por gerações distintas, posto que mais avidamente por aqueles que fizeram 20 anos depois de 1968 e tinham já notícia basta de Herberto, que acabara de editar com retumbante escândalo em 1967 Retrato em movimento, e de Natália a braços com um sufocante processo judicial de abuso de liberdade de imprensa, por força da Antologia da poesia portuguesa erótica e satírica (1966), que fazia escândalo internacional. Outra colecção que se aninhou nas prateleiras da biblioteca no final de 50, e se continuou pelo início de 60, era «A Antologia em 1958», editada por Cesariny entre 1958 e 1963. Editou-se o poeta a si e aos seus amigos – Luiz Pacheco, Virgílio Martinho, António José Forte, Natália Correia, António Maria Lisboa, Pedro Oom, Francisco Sousa Neves – e ainda teve corda para dois gaulos, Jean Schuster e Gérard Legrand, surrealistas parisinos do pós-guerra nascidos na década de 20 e da mesma idade dos portugueses que fizeram os grupos surrealistas em Portugal na década de 40.


A novidade era porém outra e mais recente – a publicação pela Ulisseia, onde então dava trunfos um Vitor Silva Tavares quase em estreia de edição, d’ A intervenção surrealista (1966), perigosa manobra interior que recolhia o melhor do material iconográfico e escrito do surrealismo em português da segunda metade da década de 40. Que o livro em todo a sua cor, novidade e esplendor estava na biblioteca testemunhámo-lo nós – com data de entrada, assim a recordamos, não garantindo se bem ou mal, do final de 1966. E que este e outros livros muito apanharam de surpresa pela frente os miúdos do Liceu e da Escola que iam às tardes à vetusta sala de leitura do Largo do Conde de Vila Flor, com o seu passadiço em arco para o Museu de Évora e o mastro em pedra do galeão naufragado da Sé mesmo por trás, nenhuma dúvida há. Isso diz um deles, José Estêvão, no testemunho que de favor nos deu. Nascido em 1952, em Aljustrel, terra mineira de tradição anarquista e depois comunista, veio para Évora com bolsa das minas para o ano lectivo de 1968/1969 e aqui prosseguiu os estudos que encetara em Beja. Foi companheiro de turma de António Carlos Grave Couvinha e de Ricardo Galhardo, todos interessados pelas tintas e pelos poemas. Diz ele, Estêvão, que liam tudo o que havia à disposição na biblioteca, António Maria Lisboa e os franceses. Do António Maria Lisboa havia então na Pública de Évora os dois tomos que um «Cesariny muito cansado», na pitoresca expressão de Luiz Pacheco, já génio de língua, e boa ou má tanto faz, dera a publicar à Casa Guimarães que existia desde o princípio do século na Rua do Mundo, depois Misericórdia de penitência, e que saíram, um prosa e outro verso, em 1962. Dos franceses chegou na segunda metade de 1969 a tradução dos manifestos do surrealismo de André Breton, na tradução de Pedro Tamen e na edição da Moraes – a chancela de Alçada Baptista. Que este livro pôde marcar e muito não se duvida. Estava ali a matéria-prima do movimento, as mais afirmativas declarações do surrealismo, o seu oiro, no campo da poesia, da pintura, da política e do sonho, num arco temporal que ia de 1924 a 1953, se não a 1962, momento em que o seu autor as ordenou, a elas declarações, no todo que em 1969 os portugueses leram. É mesmo possível que tenha sido um volume assim decisivo, ainda para mais surgido em momento tão crucial da evolução da geração que fazia 20 anos no final da década ou no início da seguinte, a justificar a adesão ao surrealismo de parte deles – já que a pantalha da televisão dava teatro e cinema com Vasco Santana e Ribeirinho mas de franceses só mesmo saudades de Vichy. Isto sem menorizar a leitura de Lisboa e também de Cesariny, de quem existia nas estantes da Pública, além d’ A intervenção surrealista, o volume Poesia (1961), recolhendo a criação das décadas anteriores e o poema A cidade queimada (1965), este novidade absoluta acabada de escrever em Paris e retocada em Londres e com edição alta de Vitor Silva Tavares e desenhos fora do texto de Cruzeiro Seixas, admirados estes com espanto e assobio.

Quem foi ou quem fez parte afinal deste grupo que aderiu em Évora ao surrealismo, reivindicou as suas formulações de base, trabalhou segundo as suas orientações e deixou mesmo um manifesto em 1971? Talvez porque a palavra «manifesto» é forte de mais, vem das vanguardas do princípio do século e supõe um colectivo coeso, ponha-se fresco nesta fervura. Segundo testemunho de António Couvinha não existiu um grupo surrealista formal em Évora. Descoberto como expressão espontânea e dicção automática, o surrealismo jogou com o que de autêntico e livre eles procuravam – bastou isso para adesão. Nenhum cartão autenticado; nenhuma patente registada. Por isso no título desta rogação não se fala de nenhum grupo surrealista – apenas e tão-só de «agrupamento surrealista» em Évora. Tudo começou por volta de 1965 e 66 na Escola Industrial e Comercial de Évora, a Gabriel Pereira e continuou nos anos seguintes até à manifestação de 1971, com a publicação de Manifesto. Diz ele, António, assim: «No meio da música dos Beatles, dos Rolling Stones e do Bob Dylan, apareceram-nos livros do Paul Éluard e do António Maria Lisboa, bem como os quadros do Cruzeiro Seixas, do Magritte e os Manifestos do Surrealismo do Breton.» E aponta os nomes: José Manuel Couvinha, Raul Ramos, José Manuel Rodrigues, Luís Filipe Vieira Santos, Fernando Cabeça, António Pita Bastos, Fernando Canhão, António Casqueira, Luís Cavaco, António Manuel Ribeiro, Ricardo Galhardo e José Estêvão, este chegado de Beja e de Aljustrel e alojado na Casa do Estudante na Rua do Raimundo. Tinham uma oficina de trabalho nas instalações da FNAT, frequentavam a casa ou o casão de José Manuel Couvinha, e a galeria A Trave, no baixo da Rua das Lousadas, já muito perto da Porta de Alconchel, e que pertencia ao pai de Raul Ramos, o pintor Paulino Ramos, onde a velha geração expusera – até António Palolo, também eborense, também com passagem pela Escola Gabriel Pereira, mas um nada mais velho, mais ligado a João Cutileiro e à sua Londres já pop e sem gravata, lá expusera pela vez primeira, decerto antes de marchar para Lisboa ainda na primeira metade de 60, onde o encontrou José de Carvalho, o Guinapo, que com ele fez mais tarde, em Évora, o Grupo 8, que esteve activo entre 1977 e 1979. Embora da mesma idade de António Couvinha e de todos os outros, Guinapo pouco ou nada sofreu o influxo do surrealismo, antes se dando a rumos neo-vanguardistas, que desaguaram em aberração muito querida aos críticos, o pós-modernismo, mas nula do ponto de vista da criação. Sendo o que é desde o Cardeal Rei, uma cidade de ossos, Évora teve na segunda metade do século XX «arte» para todos os gostos, o que é pior do que melhor, pois não embarcamos em soluções de oferta máxima, mesmo com alta procura, ou até por causa dela, pois o que nos interessa escapa à lógica empresarial, artístico inclusa, e vai mais com o gratuito do pássaro, da pedra e da árvore do que com a arte como valor de mercado.

Regresse-se a Paulino Ramos e à sua galeria, A Trave, para se dizer que nela se encontravam Álvaro Lapa, Fernando Martinho, Albano Martins e outros das zincadas gerações de 50 que por lá passavam para dois dedos de conversa e tertuliar diante de vinho, queijos curados, azeitonas e fatias de pão de cabeça, que Paulino também servia, e para marcar que neste prédio pequeno à moda de Évora, com entrada, escada e primeiro andar, este um quarto com saliente trave central de madeira no tecto, e daí o nome do seu baptismo, teve este grupo de jovens que aqui nos interessa boa recepção e nele expôs várias vezes, a primeira logo em 1965 – tinha António Couvinha 14 anos e o José Manuel Couvinha e Raul Ramos mais um. No passar dos anos mais se acrescentou a estas tertúlias, desde os livros que chegavam às estantes da Pública, e disso já se viu de sobejo, com o opus de 1969, até aos novos que pisavam Évora quase pela primeira vez, como o José Estêvão da mineira Aljustrel. Outros afluentes ainda se juntaram a este, com idêntica idade e os mesmos entusiasmos – rabiscos, palavras, fotos (não sei já se polaróides). Assim se chegou à publicação do Manifesto em 1971, caderno de oito páginas impresso com o selo da cidade, na tipografia Diana, e que pretendeu marcar uma posição, formalizar a atitude dos novos que iam à Trave. A chegada da incorporação militar – quase todos haviam nascido em 1950, 1951 ou 1952 – acabou por fritar os planos e turbulentizar o curso das atenções, que teria doutro modo seguido tranquilo sulco pelos rabiscos e pelas palavras. Assim tudo se fez na urgência de saltar para lá dos Pirenéus, onde pelo menos um dos afins já estava – José Manuel Rodrigues –, mais tarde contacto dos que desandavam, desertores e refractários, mais tarde ainda fotógrafo de renome, prémio Pessoa e tudo, e que na altura já andava pela fotografia, que estudou ou foi estudar para o país dos pólderes. São dele algumas das fotografias do grupo na sua fase pós-eborense, na cidade dos canais, e alguma encenação e magia, alguma atenção à matéria em si, às metamorfoses da luz, nelas se nota. Nem todas são fotografias documentais, captadas num quotidiano sem insólito e destinadas a fixar só a história dum grupo. A fotografia sempre interessou o surrealismo, que teve fotógrafos como Man Ray, Dora Maar, Claude Cahun e J. K. Bogartte e ainda tantos outros e viu nela a via duma alquimia da luz e sombra, em tempo em que a fotografia se fazia em câmara escura, com crisol e sais de prata, a favor da luz e exclusão da cor.

Os trabalhos presentes no caderno de 1971, poéticos e plásticos, se não saturados de surrealismo, mostram ao menos a luz irradiante e generosa da sua estrela. Oito assinaturas na capa: Luís Filipe Navarro Canhão Cavaco, José Manuel Santos Couvinha, António Carlos Grave Couvinha, Manuel Raul Candeias Ramos, António Manuel Pais Ribeiro, António Fernando da Rocha Cabeça, Ricardo Manuel Cabeça Galhardo, António João Santos Casqueira. No interior desenhos de António Couvinha e Raul Ramos; textos de José Manuel Couvinha e Luís Cavaco. Duas colaborações marcantes os textos de José Manuel Couvinha e os desenhos de António Couvinha – sem esquecer o trabalho de Raul Ramos, que teve de ir à foto antes da reprodução. Os textos mostram uma palavra à procura do delírio – José Manuel Couvinha faleceu num dia de Natal do final do século XX e nunca chegou a publicar um livro – e as imagens um traço onírico que podia ter evoluído em exclusivo por aí com total autonomia, como sucedeu na época com um Mário Botas. António Couvinha tinha então 20 anos e era também filho de pintor eborense, António José Couvinha – que Paulino Ramos, o pai de Raul, se não nascera em Évora era por índole da cidade para onde viera com dez dias e pouco mais daqui saíra. Tem hoje o nome numa rua dos arredores, que a urbe sempre teve arrabaldes, agora de zonas industriais, e aqui fica para o futuro, que não sabemos qual é mas não será flor que se veja com pandemias, transgénicos, transhumanismo, turismo militar a Marte, luta desenfreada pelo que resta dos recursos, survivalismo e outros pesadelos de neo-darwinismo social. José Manuel Couvinha e Raul Ramos, pontas avançadas deste proto-grupo, contactaram em Lisboa Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny e puseram em cima da mesa um estreitar de relações com eles – então a trabalhar na Galeria São Mamede, quase diante da Escola Politécnica e onde aparecia também o grande Mário-Henrique Leiria, regressado do Brasil com a sanha dos Tupamaros na cabeça e logo celebrado pelos dois amigos numa folha volante «para bem esclarecer as gentes que continuam à espera» (1970). É a época das enchentes na Galeria de Francisco Pereira Coutinho, com directoria de Cruzeiro Seixas, que tanto recebia nela a pintura de Vieira da Silva como a de Mário Botas, de quem fez a primeira exposição, e a de Raul Perez, a quem apadrinhou também. Não fossem as voltas militares, o quebra cabeça da deserção, e é possível que tarde ou cedo também António Couvinha, tanto mais que nas idas a Lisboa passava obrigatoriamente pela galeria da Rua da Escola Politécnica, dialogasse cara a cara com Seixas, que tinha faro para reconhecer o talento do traço e da peça, talento que ao de Évora nunca faltou e a que na época juntava, o que mais era para Seixas, uma pesquisa e um entusiasmo em exclusivo oníricos e que tão bem se conjuga com o melhor do mudéjar que a cidade teve e que cardeais, inquisidores e jesuítas deitaram a perder. O seu desenho não evoluiu por aí, ganhou antes um repelão expressionista que na altura ainda não tinha, mas teve nesse ponto do seu curso, em diálogo com os mestres da fotografia do onírico, Chirico, Delvaux, Magritte, Dali, Cruzeiro Seixas, um afirmativo instante que em nada diminui o seu itinerário – ele que podia ter seguido a senda de Areal, esse outro António. Demais, esses desenhos constituem o ponto alto das realizações plásticas deste colectivo que se empolgou em trazer o sonho ao real – e isto sem desprimor algum para os restantes e até sem qualquer certeza que alguém não se levante e prefira o trágico destino dum Raul Ramos, ainda hoje vivo e que chegou a ter ou a fazer oficina no hospital Júlio de Matos, e os trabalhos de José Estêvão e António Fernando Cabeça, estes dois ainda na Holanda enamorados perpétuos das tulipas, dos diques, do salmão fumado e das bicicletas brancas.


Ao mesmo tempo que cochichavam sobre o modo de pular a fronteira e atravessar o quixotesco planalto ibérico para se pirarem duma guerra que furiosa carpia fogo, ainda tiveram tempo e ganas de planear em Évora uma segunda manifestação de vida. Liberdade Sensitiva de Demonstração, com as iniciais de LSD, assim se chamou este segundo fôlego, agora exposição, quando o lisérgico varria tudo e não havia garotinho que não quisesse sentir as sensações coloridas e eufóricas de Hofmann. Meteu catálogo com cinco nomes a expor (António Couvinha, Fernando Cabeça, José Carlos, José Manuel Couvinha e Raul Ramos) e quatro para poemas [Luís Cavaco, José Manuel Couvinha, Luís Tobias e (Manuel) Maio Calado], deixou A Trave e a sua tertúlia para ir à largueza do Palácio de Dom Manuel, no jardim público de Cinatti, que Eça ainda conheceu em 1867, não sabemos se para bem ou mal dele, que enjoava seara e verde, até que Jacinto se enfastiou de Paris. No momento da exposição, no rebentar da Primavera de 1972, já Couvinha passara os vintes e andava com o quartel-general atrás, desejoso de o meter no ultramar. Não chegou a ver a exposição, pois estava no Hospital Militar de Évora. Fora incorporado na primeira leva de 1972 – há fotografia dele com José Espada na casamata de Vendas Novas – e perdera de vontade a recruta da incorporação, baixando por um nada imaginário ao Hospital militar de Évora, ficando de ir à recruta na segunda incorporação, Tavira, em Agosto desse mesmo ano. Mal teve alta, desertou a 1-6-1972 com Raul Ramos, António Rosmaninho, José Alcobia e Ricardo Galhardo – uma quina de gaiatos, assinantes três deles (Couvinha, Ramos e Galhardo) do manifesto de 1971. O da Aljustrel mineira, José Estêvão de seu nome, acabara de fazer o mesmo um pouco antes, a 25-4-1972. A saga desse pulo a cinco contou-a António Couvinha pela voz do actor Rui Nuno no documentário de Luís Godinho, O Salto (2017), com a colaboração de Ricardo Galhardo, que foi depois (como Pita-Bastos foi também) no país das terras baixas presidente do Comité dos Desertores Portugueses, de José Manuel Rodrigues, que já era na Holanda e os recebeu na chegada, e de Luís Carmelo, mais novo mas já participante nas reuniões do grupo e que fala da «anarquia saudável e da liberdade não esquemática» que os orientava a todos, chegando a recorrer a uma frase de André Breton – «Transformar o mundo, disse Marx; mudar a vida, disse Rimbaud: estas duas palavras de ordem são para nós uma só» (1935) –, também ela no livro Manifestos do Surrealismo, para tipificar o ideário deste agrupamento. A esta curta de Godinho é preciso acrescentar uma outra, feita a pedido da Câmara de Évora em 2013, já a pensar nos 40 anos do 25, em que Couvinha conta um ponto triangular desta saga, entre Irun, Madrid e Barcelona, à conversa com Lala Ostiz, menina que então os recebeu em Madrid e lhes deu a mão, os contactos e o dinheiro para irem para Barcelona e daí para a fronteira de Port Bou, onde depois de muito vaivém, até com ajuda da bicuda Guardia Civil, deram com caminho que os pusesse do outro lado da fronteira. Eram já só três, que um ficara por Irun. A chave fora Álvaro Lapa, que dera nome e endereço de Lala Ostiz, o que mostra como os de 50 seguiam atentos a Évora e ao que lá se passava.

 

 

Na Holanda o grupo reconstituiu-se, alargou-se, ganhou consciência de si e pôde beneficiar de contactos surrealistas vivos – isto além de Magritte e Delvaux, cuja pintura António Couvinha frequentou no Museu Spitzner no bairro de Ixelles em Bruxelas, e sobretudo no Museu Real das Belas-Artes da mesma cidade, onde encontrou uma eborense, Maria José Barreiros, que mais tarde casou com José de Carvalho, o de António Palolo. Surrealistas vivos na Holanda, vivíssimos até, estavam os que em Amesterdão editavam desde 1964 a revista Brumes Blondes, fundada por Her de Vries e Laurens Vancrevel, ainda hoje no activo, tal como a revista, que fez em 2014 almanaque internacional, e que estava então muito activa. Rik Lina, que deu bonecos à publicação e que andou pelo automatismo bretoniano e pelo free jazz, acabou por ser referência para alguns deles – como o é para nós, ele que assinou em 2019 a capa d’ A Ideia com um cadáver-esquisito feito a quatro mãos com Cesariny. Em 1959 fora fundado em Amesterdão por Her de Vries o BRSH [Bureau de recherches surréalistes en Hollande], que se estreitou no momento da fundação com o grupo de Paris – André Breton estava ainda activo – e que no final da década de 60 e início de 70, no momento em que os de Évora chegam à cidade dos canais, se ligou a Cesariny e a Cruzeiro Seixas e ao que se passava na Galeria São Mamede, onde Laurens esteve por várias vezes, estabelecendo amizade estreita com eles e com um dos novos, Raul Perez, que chegou também a dar colaboração à revista Brumes Blondes. Este Laurens publicou em 2017 a correspondência copiosa que Cesariny lhe escreveu de 1969 a 2005, Um rio à beira do rio – cartas para Frida e Laurens Vancrevel, e é nosso, da revista A Ideia, como Rik Lina o pode ser. Aqui tem ele publicado textos e notas para gáudio e grande benefício nosso.

José Manuel Rodrigues, o fotógrafo, foi uma figura central neste período, primeiro porque os recebia no batelão que tinha no canal Prinsengracht de Amesterdão, e foi aí que eles ficaram na quarentena de adaptação à cidade no momento da chegada, depois porque estudava na Escola de Fotografia de Haia, conhecia a cidade há anos e nela estabelecera rede de contactos, depois ainda porque tinha oficina própria e câmara escura na Noorderstraat, que se tornou local de encontro e de trabalho de todos eles, mesmo depois da dispersão dos que chegaram em 1972 – casas ocupadas e logo o Campus da Frij Universiteit de Amesterdão, onde ficaram e que lhes permitiu ter um local seguro de encontro. O grupo ganhou então uma nova coesão e um novo enriquecimento, que pode fazer lembrar o de 1969 e de 1970, quando já conhecia a poesia de Cesariny e de Lisboa, os desenhos de Seixas e os manifestos de Breton e se preparava para publicar o Manifesto de 1971, e passou mesmo a ser conhecido entre os muitos portugueses que havia na cidade como “grupo de Évora”, pela especificidade do trabalho, o interesse que tinham na pintura e poesia que praticavam ao som da música, quantas vezes em colectivo. Quase todos estudaram nesse período – Rodrigues em Haia, Cabeça na Guerrit Rietveld Academie de Amesterdão, Canhão em Lausanne na Suíça, Couvinha na Artibus Kunst Academie van Utrecht com uma bolsa conseguida através de familiares do então recentemente falecido pintor M. C. Escher. A excepção terá sido José Manuel Couvinha que numa vinda clandestina a Portugal foi laçado pela polícia e entregue ao exército, que não tardou a enviá-lo para a mais dramática cena de guerra da época, a Guiné, onde o 25 de Abril o apanhou, e aliviou, para vir morrer quase 25 anos depois nas «ruas de Évora» como dele disse ternamente José Estêvão, «ruas ermas» sob céus tintos e ébrios de sangue – o dos mouros degolados, o dos judeus queimados em praça de gente e ainda o dos cristãos sangrados em guerra de muralha, de trincheira e de mato. O dos mouros degolados até símbolo o quiseram da cidade – duas cabeças, homem e mulher, arrancadas ao tronco e a pingar sangue, emblema vergonhoso que nenhuma força política local teve a hombridade de varrer de vez da desgraçada heráldica da «mui nobre sempre leal cidade de Évora», que assim vem em linha recta e directa dos planos do Cardeal Rei e do seu sinistro sobrinho espanhol (e português, alemão e muito mais) até hoje, quando os partidos referendaram sem espinho na consciência, antes contentinhos do dever cumprido, brasão, bandeira e selo (28-10-1987). Ó senhores da política e do poder vede, vede por aí quanto de bonito existe no município para substituir esse opróbrio – um estorninho, uma pega rabuda, uma pedra dos Almendres, uma árvore de montado, um moinho do Alto de São Bento, uma janela gótico mudéjar, um besouro negro, uma cega-rega no restolho, um escaravelho sagrado a luzir no oiro solar e quente da palha, tudo vida simples e mui digna, tudo, até um 13 em número de rua e porta, menos essa obscenidade, essa mentira que é um cavaleiro em cavalo preto, de espada sanguinária à sinistra e com a destra nos arreios a decapitar homem ou delicada donzela com manto de lã e capuz.

Desafortunadamente da época neerlandesa chegou só até nós um longo poema de António Couvinha – registado mais que composto entre 1972 e 1974, longa deambulação alucinatória, viva, espontânea, nada epocal, nada literária, que ele muito mais tarde ilustrou e editou com o título À margem do canal e fotografia sua, disparada por Fernando Cabeça, nesse insubordinado ano de 1972, que viu José António Ribeiro dos Santos morrer com uma bala às mãos da polícia política numa sala do Quelhas, em Lisboa. O 25 de Abril, com amnistia a desertores e refractários, a reforma agrária, o movimento de ocupação de fábricas e de casas, fez com que parte destes exilados voltasse ao país e por ele se espelhasse, ou porque aceitou nas novas condições cumprir o serviço militar em falta, ou porque topou ocupação civil onde se arrumou. Outros ficaram na Holanda, como José Manuel Rodrigues, que por lá tinha rede e trabalho feito, mas acabou por regressar quase 20 anos depois, e Fernando Cabeça e José Estêvão, estes ainda a viver no setentrião. De Estêvão diga-se que muito ligado andou ao anarquismo, em que sempre militou, com um rol extenso de acções e a feitura duma revistinha libertária em português, chamada Terra Livre, ilustrada pelo seu amigo que com ele ficou nos canais, Fernando Cabeça, um dos que participou na mostra do palácio Dom Manuel em 1972. Além desta militância imparável, Estêvão estabeleceu logo de entrada contactos com surrealistas holandeses (Hendrik Beekman e Rik Lina), ligou-se à fundação da revista Droomschar e participou no colectivo de pintura automática de Amesterdão iniciado por Freddy Knistoff e Rik Lina.

Agora que vai passar o meio século sobre a publicação do Manifesto de 1971 é a altura certa de lembrar este grupo, de apelar ao seu reencontro e à publicação dum novo manifesto – esse que na altura não teve condições nem situação de ver a luz, embora alguns mais novos que ficaram em 1972 em Évora, como Manuel Calado, José Eliseu Pinto, Elvira Lisboa, Lídia Cascalho e outros, ainda tenham tentado continuar a catilinária que vinha de 1965/66 e das primícias no adro de Paulino Ramos, feito mestre de aprendizes. A aventura humana continua e recomenda-se em época de fim! O surrealismo também! – Qualquer um deles sem ofício de morrer, prontos aos medievos que aí estão e que só metem medo aos que vão em asas de avião e quejandas turbulências de metal e fuselagem. Se for caso e modo de calar, oiça-se o silêncio, renuncie-se à palma e siga-se em segredo. Fiquem os enigmáticos sonhos, com que hemos de atravessar telefones, plásticos, pó de estuque, fios de cobre e o interminável lixo desta era vazadouro que teima em não encontrar o seu Arlequim.




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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 169 | abril de 2021

artista convidada: Elsa María Meléndez (Puerto Rico, 1974)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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