segunda-feira, 1 de novembro de 2021

SUSAN BLUM | As mulheres de Julio Cortázar

 


Um cronópio apaixonado
[1]

Sempre que vou falar sobre Cortázar, gosto de utilizar um primeiro instante para falar sobre a vida e obra do grande cronópio, colocar um CD com ele lendo alguns de seus contos e mostrar alguns dos quase setenta livros que foram publicados. Aqui vou citar algumas de suas paixões. Mulheres que influenciaram seu modo de viver. Como sabem, Cortázar era, quando criança, um menino tímido, asmático e fechado em seu próprio mundo de literatura, música, filatelia e jazz. Mesmo assim se apaixonou por uma vizinha em Banfield, povoado onde morava. Esse amor foi “destruído” pela visita de um primo portenho. [2] Esse foi o primeiro amor e a primeira desilusão amorosa de Cortázar. Mais tarde, adolescente, foi considerado deselegante e desengonçado, por causa de sua alta estatura. Além do mais não tinha barba (o que um implante aos 50 anos resolveu). Mas a partir de seu sucesso como escritor, as mulheres começaram a se interessar cada vez mais por este homem de olhar enigmático, mãos profundas e erre arrastado. Vamos falar aqui das mulheres mais importantes de sua vida, sem contar sua mãe que sempre lhe deu apoio.

 

Coca – uma relação professor-aluna

Em 1939 Cortázar se mudou para Chivilcoy, para dar disciplinas em um colégio secundário. Sua vida era tranquila, até que seu hermetismo, um amor proibido e platônico e alguns rumores lhe tiraram o sossego. O novo professor era centro de atenção dos olhares femininos, e tanto as professoras como suas alunas se aproximavam dele com óbvio interesse. Entre as admiradoras estava uma estudante: Coca Martín. Durante as aulas, os olhares se cruzavam cada vez mais, e Cortázar escreveu uma poesia que lhe fez chegar secretamente, sem assinar. O tempo passou e nenhum dos dois fez alusão ao fato até que, em um festival de cinema, os dois sentaram juntos por coincidência, e ali, na penumbra da sala de projeção, Cortázar juntou coragem e recitou parte do poema.

A relação entre eles se estreitou, mas como era uma relação “proibida” costumavam encontrar-se e conversar na praça Espanha. Uma vez que os costumes da época (e da cidadezinha) eram restritos, é possível que Cortázar nunca tenha beijado a moça. Dessa paixão nasceu um romance que nunca veio a público, pois foi queimado em um fogão à lenha parisiense, anos depois: Solilóquio.

 A relação com Coca Martín foi demasiada para a sociedade de Chilvicoy, e rumores aumentaram os preconceitos contra Cortázar. Logo em seguida o escritor voltou para Buenos Aires.

 

Aurora – o primeiro namoro

Já morando em Buenos Aires conversava um dia sobre jazz com uma amiga, na Confeitaria Richmond, quando uma ex-colega de faculdade da amiga se aproximou: era Aurora Bernárdez, graduada em Letras. Cortázar logo começou a falar de Keats e Flaubert. Aurora, erudita, acompanhou facilmente a conversa, que girou em torno da literatura. A admiração mútua e a atração física, fizeram os encontros repetirem-se cada vez mais, se transformando em namoro formal.

Apesar de se darem bem afetivamente e intelectualmente, o casal tinha uma imagem estranha: ela, pequena, sorridente, graciosa em seus 1m e 60cm. Ele, tenso, um gigante deselegante, pensativo e sério. Passavam horas lendo, conversando e escutando concertos de música clássica. Ou então passeavam de mãos dadas ou sentavam nas mesas dos cafés e conversavam.

 

Edith – A Maga – um encontro “casual”

Cortázar estava dando seus primeiros passos seguros como escritor, e amadurecia a ideia de partir para a Europa. Em 1950, embarcou na terceira classe de um navio e foi para Paris. Como a viagem era longa, ele passava horas tocando o piano no salão. Alguns passageiros ficavam escutando e entre seus espectadores Cortázar reparou em Edith Aarón, uma alemã de vinte e três anos. Só cruzaram seus olhares.

Semanas mais tarde, já em Paris, Cortázar encontrou Edith bisbilhotando em uma livraria do Boulevard Saint Germain. O escritor fez um leve cumprimento e ela respondeu com um sorriso, seguindo seu caminho sob a neve. A casualidade, no entanto, fez com que dias depois voltassem a se encontrar na fila de um cinema. Desta vez a saudação foi mais franca. Sorriram abertamente e entraram juntos para ver o filme. Ao sair, caminharam umas quadras e se despediram, sem saber de seus endereços e nem combinar novo encontro.

Uma semana mais tarde, quando o inverno começava a enfraquecer, se cruzaram nos Jardins de Luxemburgo. Falaram de literatura e de Buenos Aires. Edith sentiu frio e ele lhe emprestou um suéter. Entraram em um café e ficaram horas conversando. O escritor, que não deixava de pensar em tantas coincidências, lhe presenteou um poema. Sentia-se à vontade a seu lado e viu que seu suéter azul lhe assentava muito bem.

Saíram do café sabendo que voltariam a encontrar-se. Em poucos dias compartilharam um passeio por Paris, assistiram a um concerto de Bach e viram um eclipse lunar na praça da Igreja de Notre Dame. Um dia, sentados à margem do Sena, Cortázar fez um barquinho de papel com um guardanapo e o pôs na água. “Volto para Buenos Aires”, lhe disse. Ela riu e prometeram trocar cartas.

 


De novo Aurora – a primeira esposa e a companheira de uma vida inteira.

Cortázar voltou à Buenos Aires, mas pretendia retornar a Paris. Apresentou ao governo francês um projeto de literatura e ganhou uma bolsa para dez meses e um alojamento em um pavilhão argentino da Cidade Universitária. Pretendia ficar em Paris durante a bolsa, mas intuía que sua viagem seria para sempre. Por isso, demitiu-se, vendeu os seus discos de jazz, se despediu dos amigos e pediu a Aurora que o acompanhasse. Concordaram que ela viajaria alguns meses depois.

Teve tempo para escrever para Edith: “Não sei se lembra do longo, magro, feio e tedioso companheiro com o qual você aceitou passear muitas vezes por Paris. (...) Eu sou outra vez esse, o homem que lhe disse, ao despedir-se de você diante do Flore, que voltaria a Paris em dois anos. Vou voltar antes, estarei aí em novembro. (...) Penso no prazer de voltar a encontrá-la, e ao mesmo tempo tenho um pouco de medo de que você esteja muito mudada, (...) de que não a divirta a possibilidade de ver-me. (...) Por isso lhe peço desde já, e se lhe peço por escrito é porque me é mais fácil, que se você está em uma ordem de vida satisfatória, se não necessita desse pedaço de passado que sou, que me diga sem rodeios. (...) Seria muito pior dissimular um aborrecimento. (...) gostaria que continue sendo brusca, complicada, irônica, entusiasta e que algum dia eu possa emprestar-lhe outro pulôver”.

A bolsa recebida cobria escassamente suas necessidades e as de sua família, assim, trabalhou como empacotador, em uma loja onde Edith trabalhava. Tempos depois ele comprou uma moto Vespa, e conseguiu emprego em uma distribuidora de livros. Sentia-se solitário em Paris e a chegada de Aurora lhe deu o apoio afetivo de que necessitava. O casal se mudou para o Bairro Latino, onde alugaram uma pequena casa. Os trabalhos literários que Aurora arrumou, e o salário de Julio por seu trabalho de distribuidor, davam para pagar o aluguel e os gastos básicos.

Um dia, Julio sofreu um acidente, quase atropelando uma velhinha que atravessou com o sinal fechado. Seu corpo se machucou mais que a vespa e ficou um tempo no hospital. Os três meses de repouso consolidaram a relação do casal, ainda que Cortázar não perdesse a oportunidade para “emprestar pulôveres” a Edith ou outras mulheres. Em 22 de agosto de 1953, Aurora e Julio se casaram.

Anos depois, Cortázar foi convidado a fazer parte do júri da Casa das Américas, em Cuba. Apesar de a experiência cubana ter sido fascinante para Cortázar, sua esposa Aurora, ao contrário, não gostou.

Em 1964, aos cinquenta anos, um tratamento hormonal fez crescer sua barba. Esse tratamento gerou uma mudança em sua conduta, pois tomou consciência de sua virilidade. Seu re-descoberto apetite sexual se valeu de sua grande popularidade para chamar a admiração das mulheres que cruzavam sua vida. Agora, além de suas histórias e sua sólida erudição, tinha a seu favor a popularidade das causas sociais e sua barba que começava a obscurecer seu rosto.

 Esta situação colaborou na deterioração da união com Aurora, junto às questões ideológicas que afastaram Cortázar e a esposa. A mulher, herdeira do intelectualismo puro, via com desagrado o crescente compromisso político do escritor. Nesse sentido, as viagens para Cuba não fizeram mais que aprofundar as diferenças.

Cortázar conhecia a secretária da Gallimard, Ugné Karvelis, havia anos, mas somente depois a fugaz relação em Havana se transformou em amor apaixonado. Este fato precipitou a separação do casal Julio/Aurora. Ela regressou a Paris, e pouco depois, à Argentina. Julio adotou Saignon como seu refúgio. Do amor de anos principiou uma amizade que o uniria à Aurora até a sua morte.

 

Ugné – um impulso na vida política e editorial

Ugné Karvelis, uma lituana de vinte e oito anos, tinha o fervor militante que faltava à Aurora. Desde quando viu Cortázar ficou curiosa e encantada com aquele homem sério, mas de rosto infantil. Durante um tempo, para Cortázar, ela seria apenas a bela e tímida empregada da Gallimard. Uma vez, em 1967, Ugné foi convidada para ir à Cuba e sabendo que Cortázar estava na ilha, simulou um encontro casual na recepção do hotel. Ao ver Cortázar, que descia de seu quarto, se aproximou com seu exemplar de O Jogo da Amarelinha na mão e ficou frente a frente com ele. Cortázar, surpreendido pela presença, sorriu e a convidou para tomar um mojito, bebida típica cubana. Sentada na mesa, sob o sol de Havana, Ugné descobriu como esse homem que em Paris perambulava cinza e austero, conversava feliz e aberto, dividindo o fervor socialista com ela. “Eu conhecia sua cara de sombra – lhe disse Ugné quando o mojito começou a exercer sua magia e a mesa era testemunho de suas mãos entrelaçadas –. Agora sei também que tem uma cara de sol”.

Paralelo ao surgimento de um batalhão de mulheres dispostas a seduzir ao grande cronópio, a amizade com Edith Aaron atravessava momentos difíceis. O laço que os unia desde o primeiro encontro se aprofundou durante os anos. Edith, que perdeu as últimas economias herdadas, propôs traduzir alguns textos de Cortázar para o alemão. O escritor aceitou, mas as primeiras provas das traduções mostraram um desconhecimento do idioma. Com pesar, Cortázar teve que retirá-la do trabalho e daí em diante, a relação entre ele e Edith se esfriaria.

Logo após a separação de Aurora, Cortázar oficializou sua relação com Ugné. Apesar de nunca terem se casado e viverem em apartamentos separados, a união enriqueceu a ambos. Os contatos editoriais de Ugné abriram novas perspectivas à obra de Cortázar e a postura ideológica da mulher, deu um impulso para a aproximação com a América Latina.

Com cinquenta e sete anos de idade, Cortázar cumpriu seu sonho do “dragão” próprio. Comprou uma kombi Volkswagen vermelha, a qual batizou Fafner, nome do dragão da saga dos Nibelungos. E com ela viajou. “A viagem inaugural foi Paris-Viena-Paris. Fui sozinho (para grande cólera de Ugné, mas eu queria um ‘mano a mano’ com meu dragão, sem contar uma ou duas dragonitas que tenho pelo lado da Áustria e que fazia tempo não visitava). Dormi nos bosques, (...) aprendi a fazer correr e galopar à Fafner, com máxima velocidade (que não é muita, mas um dragão não é um cavalo árabe), e voltei para Paris muito contente”.

Instalou-se então com Ugné em Saignon, para passar o verão e terminar alguns textos. Ainda que no princípio Ugné deu um forte impulso editorial para sua obra e um apoio a seu compromisso político, a união havia se deteriorado nos últimos anos. Cortázar escreve a Retamar e faz uma breve menção à separação: “tenho a esperança de guardar com ela uma amizade e uma colaboração invariáveis”. A companheira havia adotado ao uísque como seu amante fiel, uma vez que Cortázar não era tão fiel assim. Estes deslizes e sua forte personalidade começaram a afetar uma relação que sempre havia tido seus atritos. A rotina de longas temporadas juntos em Saignon ou em Paris, propiciavam brigas cada vez mais frequentes.


Além disso, a popularidade de Cortázar lhe dava novas amizades, sobretudo femininas, dispostas a aceitar suéteres, bebidas ou cronópios de presente. Em agosto de 1978 Cortázar escreve uma carta para o amigo Retamar dizendo que ele e Ugné haviam decidido se separar: “sei que te doerá saber disso, e de minha parte tenho a esperança de guardar com ela uma amizade e uma colaboração invariáveis”. Nunca casaram oficialmente, mas Cortázar foi generoso: deu-lhe a casa de Saignon e uma linha em seu testamento. Enquanto enchia caixas preparando a mudança, outro nome de mulher dava voltas em sua cabeça.

 

Carol – o grande e último amor.

Em princípios de 1977, Cortázar viajou ao Canadá para dar conferências sobre literatura latino-americana na universidade de Montreal. Um dia um dos professores se aproximou e o convidou para jantar. Quando entrou no chalé, a primeira coisa que notou foi um belo rosto juvenil, de cabelo curto e bonitos olhos claros. O anfitrião se apressou a apresentá-los: “Carol Dunlop, minha ex-mulher”. Cortázar a olhou e conteve a respiração. Ela estendeu a mão que ele tomou timidamente. Ao lado de Carol estava o pequeno Stéphan: “Bonsoir monsieur”, disse sem separar-se de sua mãe, que olhava para cima e não tirava os olhos daquele gigante barbudo e emudecido.

Na mesa, Cortázar soube que Carol havia nascido nos Estados Unidos, mas havia se mudado para o Canadá depois de ativa participação contra a guerra do Vietnã. Cortázar sorriu com admiração e lhe perguntou em francês o que achava da revolução cubana. Outras pessoas estavam ali, mas ninguém mais existiu para ele naquele jantar. Carol comentou que também escrevia e o final da noite os encontrou lendo um conto dela: “Espelhos e reflexos”.

De volta a Paris, enquanto Ugné dormia a seu lado, tomou uma folha de papel e escreveu: “Querida Carol: Talvez esta carta lhe surpreenda, mas creio que contém uma ideia interessante e queria que me dissesse com toda franqueza seu ponto de vista (perdão pelo meu espantoso francês, mas sei que não conhece o espanhol) (...) Acabo de reler seu conto e me ocorreu a ideia de que talvez poderíamos tentar juntos, você e eu, algo como um ‘trabalho paralelo’ (...) Tenho a impressão de que há em nossas buscas semelhanças quando menos perturbadoras, e me pergunto se uma exploração em comum desse território – em que cada um conservaria, desde logo, uma liberdade total de criação e de língua original – não daria frutos inesperados”.

Ao finalizar a carta, e logo convidá-la a viajar para a França para começar o trabalho, agregou: “Tudo isso tem algo de ‘sonho’, eu sei, mas sei que certos sonhos possuem a tendência de realizar-se se os empurra um pouco”.

Meses depois, Carol deixou Stéphan aos cuidados de seu ex-marido e viajou para Paris. Do aeroporto foi diretamente para o apartamento de Julio. Aos sessenta e cinco anos, e em companhia de uma mulher trinta e dois anos mais nova, começou para ele uma nova vida. Abandonou para sempre suas aventuras extra-conjugais e se entregou a essa união.

Em 1981 Cortázar recebe a cidadania francesa e com a tranquilidade da situação legal, Cortázar e Carol viajaram para passar o verão em Aix-en-Provençe. Todas as manhãs davam um passeio pelo bosque onde recolhiam frutos silvestres. Depois, a leitura sob o sol na varanda e mais tarde responder algumas das dezenas de cartas que cada semana se acumulavam sobre a mesa. Apenas uma leve angina molestava a Cortázar que, hipocondríaco, tomava muitas aspirinas.

Certa madrugada, Carol acordou e não o encontrou na cama. Correu pela casa buscando-o, até que o viu: Julio estava desmaiado, em um mar de sangue, os olhos fechados e a barba arroxeada. Em poucos minutos, foi levado ao hospital:

Apenas Carol e os médicos sabiam que era mais que uma simples hemorragia produzida por um consumo excessivo de aspirinas. O diagnóstico do médico foi definitivo: Cortázar sofria de leucemia mielóide crônica. Começa assim, sem o saber, o lento caminho até o fim. Ela nunca falou a ele de sua doença. De volta a Paris, em dezembro de 1981 acontece o casamento Dunlop-Cortázar. “Depois de quase quatro anos vivendo juntos e ter passado por todas as provas que isso supõe em muitos planos, estamos seguros de nosso carinho e eu me sinto muito feliz de normalizar uma situação que algum dia será útil para o destino de Carol”, escreve Cortázar ao amigo.

Apesar de ter quase sessenta e oito anos, o espírito infantil de Cortázar era constante. Brincava de armar móbiles em sua oficina e às vezes se disfarçava com os caninos vampirescos e as unhas pintadas de negro. Então corria atrás de Carol pela casa e não se contentava até que a tinha entre seus braços e podia morder-lhe o pescoço. Outro jogo aconteceu em 1982 quando organizaram uma viagem cuja única finalidade era escrever um livro sobre a experiência. Estabelecendo uma série de regras, se propuseram a embarcar em uma kombi e fazer a viagem Paris-Marselha através da Autopista do Sul, parando cada dia em duas estações de serviço, do total de setenta. Deteriam-se para escrever, desenhar, ler ou descansar, procurando encontrar nas estações de serviço aquilo que costuma passar despercebido para o turista comum.

As regras do jogo consistiam em que em nenhum momento poderiam sair da autopista, de modo que alguns amigos lhes levariam provisões às estações de serviço. A viagem durou trinta e três dias e chegaram a Marselha cansados, mas satisfeitos. Nenhum dos dois sabia que o que havia começado como um jogo, teria tempos depois o significado de uma despedida.

Apenas finalizada a experiência da viagem, Carol e Cortázar foram à Nicarágua para retomar a ajuda a esse país. Iriam se instalar por dois meses em Manágua, escrevendo artigos e depoimentos que alertassem a comunidade internacional para a situação nicaraguense. O casal vivia em uma casa, junto de Stéphan. O filho de Carol tinha então treze anos e começava a comungar com as ideias do socialismo. Umas semanas antes de completar os dois meses, Carol começou a sentir uma forte dor nos ossos que os obrigaram a trocar de planos. Stéphan retornou ao Canadá e o casal viajou para Paris. No hospital descobriram que um vírus estava afetando a produção de glóbulos brancos e plaquetas. Carol foi internada e iniciou-se um longo tratamento que se estendeu por 70 dias.


Julio entristecia a cada dia, pois o tempo passava e não se via melhora. Os médicos propuseram um transplante de medula. Os amigos de Cortázar, Aurora e ele mesmo se ofereceram como doadores, mas não havia compatibilidade. Apesar das esperanças que mantiveram, em 2 de novembro de 1982, Carol “se me foi como um fiozinho entre os dedos. (...) Se foi docemente, como ela era, e eu estive ao seu lado até o fim, os dois sozinhos na sala do hospital onde passou dois meses, onde tudo resultou inútil. Até o final esteve segura de que melhoraria (...) a acompanhei como se nada tivesse mudado, e nas últimas horas consegui que ninguém entrasse para molestá-la e fiquei ao seu lado, cuidando, até que o último calmante que lhe haviam dado foi adormecendo-a pouco a pouco”.

O amigo Tomasello construiu a tumba no cemitério de Montparnasse, Silva desenhou a escultura que a adorna: um círculo sobre outro, flores ou talvez cronópios subindo uma escada. Junto à tumba chorava um homem doente que nem o sabia ser, mas que, em sua solidão e com a dor do amor perdido, intuía que o fim estava próximo.

 

Aurora – outra vez a companheira

Aurora e os amigos de Cortázar o visitavam frequentemente para conversar sobre jazz, boxe, literatura, e tudo que o pudesse animar. Por vezes lhe narravam algum episódio fantástico ou diziam que haviam visto um vampiro; porém de nada adiantava. Cortázar redigiu um testamento em que todos seus bens e a metade dos direitos de autor eram cedidos a Aurora Bernárdez.

Até fins de 1983 a saúde de Cortázar ia piorando. Ao avanço da leucemia se juntavam outras complicações. Fez um tratamento intensivo e ficou internado durante dias no hospital, mas de nada adiantou. Aurora o acompanhou durante o tratamento e depois se instalou em seu apartamento, para preparar sua alimentação e lhe dar os medicamentos. Cortázar permanecia triste, mas a companhia de Aurora era de grande ajuda e compartilhavam cada momento juntos, desfrutando de uma amizade que havia sobrevivido.

 Cortázar passava horas no cemitério, e levava flores amarelas de que tanto gostava Carol e se sentava junto a ela. Mas em 12 de fevereiro de 1984, no hospital, Cortázar murmurou um último desejo. Voltou a cabeça em direção à janela e fechou os olhos. Junto à ele estavam Aurora e Tomasello; no ar, tal como havia pedido, flutuava Mozart. Foi sepultado dois dias depois, no cemitério de Montparnasse. Aurora jogou rosas vermelhas sobre a tumba. Ali, debaixo de uma mesma lápide, descansam Carol Dunlop e Julio Florêncio Cortázar, enormíssimo cronópio.

Essas foram as mulheres de Cortázar.

 

NOTAS

1. Texto baseado em dados de alguns livros de biografia, dentre eles: MAQUEÍRA, E. Cortázar, de cronopio y compromisos. Buenos Aires, Longselle, 2002. | ROO, J. P. Cortázar inédito - un tal Julio Denis. Buenos Aires: Imagen Art, 1996. | CÓCARO, N. et al. El joven Cortázar. Buenos Aires: Círculo gráfico publicitario, 1993. Originalmente publicado em Cronópios (2006), atualizado para a presente edição.

2. Essa história pode ser conhecida de forma ficcional através do conto “Los Venenos”.



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[A partir de janeiro de 2022]

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Número 185 | novembro de 2021

Curadoria: Floriano Martins (Brasil, 1957)

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