quinta-feira, 24 de março de 2022

R. LEONTINO FILHO | Raul Bopp em trânsito

 


pequena palavra que me confirma

eu te lanço estiolada no tempo e nos confins assistindo a teu severo assalto

brusco e espectral

sobre meu sangue lúcido entre os lúcidos.

AIMÉ CÉSAIRE 

 

Pelas beiradas do tempo teimosamente tudo difere: o tamanho das perdas, a largura da dor, o diâmetro da felicidade, a altura do riso; em qualquer direção, tudo espanta: a insistência das preces, a teimosia do outro, a lábia esticada do pranto, o milagre afogueado da messe; sem retoques e sem contornos, segue o tempo, ansiosamente, a se deslocar num ritual que modula as feições travessas do humano.

Pelas miríades do pensamento, o tempo fertiliza o espaço com seu cardume de verbos: um espaço de amplas moradas, ocupado centímetro a centímetro por um bando de sonhos; um espaço de insólitas fotografias, gerado milímetro a milímetro por um lampejo de percepções; um espaço, ainda assim, metamorfoseado pela ambição temporal dos sortilégios que por toda parte, todos os metros, busca apreender o destrinçar inconstante da imaginação.

Pelas curvas do imaginário, o mistério da magia confabula vertiginosamente com o encantamento da palavra; pé ante pé, devagar e sem pressa, devagarinho, a imaginação, compassadamente, remexe as labaredas dos desejos: imaginar o tempo e o espaço nos confins do pensar, sentir o encanto inextrincável do cântico e fazer ressoar em todas as coisas o longo fio da poesia que avança pelas matas, sem medo algum, do sem-fim.

O sem-fim é ponto de partida, vice-versa da chegada, inflexão dos meios; o princípio do trajeto, transfiguração dos vícios, rumor faminto da urgência. O sem-fim é tempo, espaço e imaginação com febris atalhos de nunca chegar, apenas seguir, indiferente a todo olhar encardido pela mesmice das coisas, atento à urdidura dos mitos e às pelejas dos seres em sua explícita evocação dos fenômenos naturais. O sem-fim é escritura que se converte em vida, vice-versa do viver, vocabulário das águas, rio sensorial dos afetos, floresta assombrosa dos anseios; livro de magia atiçando em patamares da memória a imensidão da liberdade, por inteira, na extensão sem limites da poesia.

E no acontecer da poesia, o poeta se basta, rente a suas férteis lembranças; espécie de demiurgo vai, nas cercanias do oficio, cambiando imagens e vivências, construindo, com minúcias, artefatos verossímeis de pedaços de lendas tão afeitos aos costumes das gentes. O poeta esparramado na realidade entressonha o texto entre usos e costumes, com uma abundância de surpresas deslinda os sortilégios dos conluios: fábulas e mitos estremecem, desmesuradamente, ao menos uma vez na vida, diante do poeta que espana o enfado enfim do medo.

E o poeta, quem é? Onde está? O que fez? O que deixou? Como disse as coisas?

Raul Bopp nasceu em 04 de agosto de 1898, em Pinhal, no município de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. O espírito andejo e viageiro tem inicio em Tupanciretã, que com seus recantos permeados pela tranquilidade e modorra da rua única fez crescer as vistas do garoto embriagado, desde sempre, pela vastidão da estrada de ferro e pelos ermos lugares por onde passavam tropas e carros de boi rangendo crepúsculos, intensificando a vontade de ir além-fronteiras. A infância já apontava teimosa e irremediavelmente que o mundo estava muito mais adiante com seus mistérios, encantos e remendos. Desenredar o curso das coisas, portanto, para o menino, era só mais um susto atiçando curiosidades e despertando o fascínio guardado pelas distâncias a trilhar. Para ele, desde então, tudo era partida: um riozinho solicitando lendas e mitos.

Dos Bopp e dos Kroeff, pois, um Raul se fez presente, construindo suas andanças sem temor, muito menos hesitando frente ao impossível, afinal de contas, a aventura poética já sinalizava: o aqui pode ser tão somente um passo a mais para se alcançar o imaginário imemorial do distante. O que de cá se avista, feito retrato amarelecido, pode muito bem gerar horizontes; e assim foi. Raul Bopp, com sua índole viandante, pegou a estrada, atravessou fronteiras, delirou caminhos e de uma ponta a outra do direito, de Porto Alegre, Recife, Belém e Rio de Janeiro, entortou, de vez, a poesia com a sua radicalidade criativa e a sua mente livre de todas as amarras consubstanciadas pelos cânones da perdição. Uma poesia de autêntica maravilha que em sonhos, magia e liberdades desperta tantas proezas, por menos que isso, apenas a opulência das nuvens a dinamitar os roteiros: uma arvorezinha a mais sonhando um novo chão.

E parte do mundo seguiu com o poeta: terras de outras línguas, das lonjuras do oriente, da sedução europeizante, das proximidades da latino-américa, tudo tão perto para uma mente sempre atenta aos movimentos exteriores do corpo sumarento da linguagem. Japão, Lisboa, Zurique, Barcelona, Guatemala, Berna, Viena, Lima… vagões saídos daqueles desengonçados trilhos, dádiva da mãe terra de tupã. Por todos os caminhos, o poeta, de um ramo a outro do tempo, costurou seu olhar com fina linha de ensolarada potência. Entre seres encouraçados em tantos ais, cumpriu sua primeira e definitiva lei: potencializar poeticamente o sonho criador, materialização de todo devir. Por isso mesmo, sempre vigilante ao tempo, não se deixou enredar nas malhas bolorentas do bagaço verbal do receituário fácil.

Numa realidade bem pronunciada, o tempo, que no dizer do poeta Saúl Dias é “esse doido que nos foge”, por vezes, sem deixar pegadas, ou como assevera María Zambrano: “o tempo é caminho, mas também um passo, uma porta, um porto”, Raul Bopp caminhou, e muito, para conquistar seu quinhão de sonho, abrindo portas, atravessando portos, vertiginosamente ocupando os espaços que o real, com todas as suas reentrâncias e vertentes, se afigura a cada um como desafio maior do existir: decifrar o percurso dos mitos ciciado na orelha da imaginação. Raul Bopp realizou-se poeticamente, pois, entrou “no reino da liberdade e do tempo, onde, sem violência, o ser humano se reconhece e se redime”, eis o vero sentido da realização poética, na sábia constatação da filósofa e escritora espanhola, acima mencionada.

Datas, bah, quem há de se importar? Umas mais, apenas, ainda assim para complementar este giro. Das obras publicadas, distribuídas ao longo dos anos, têm-se: Cobra Norato (1931); Urucungo (poemas negros, 1932); Notas de Viagens (1960); Notas de um Caderno Sobre o Itamaraty (1960); Movimentos Modernistas no Brasil (1966); Memórias de um Embaixador (1968); Putirum (poesias e coisas do folclore, 1969); Coisas do Oriente (viagens, 1971). De uma ponta a outra da travessia, lá, do remoto 1898, chega-se à marcação de 02 de junho de 1984, passagem de Raul Bopp para as terras férteis do Sem-fim. O poeta que foi um modernista de primeira hora, saído do grupo verde-amarelo, onde pontuavam nomes como Menotti del Picchia, Plinio Salgado e Cassiano Ricardo, entre outros, irmana-se intensamente a Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, para expressar com toda força a antropofagia de um “mundo não datado. Não rubricado”, onde “a alegria é a prova dos nove” “no matriarcado de Pindorama” e a humana aventura, “no país da cobra grande”, foge dos estados tediosos e das escleroses urbanas. Raul Bopp assobiou compassadamente para o tempo e a poesia se fez total.

Desde os primórdios, o poeta, com a sua liturgia de diversidades, acendeu as chamas enviesadas do pensamento umbigado a terras por desvendar. Dos Versos Antigos (1916-1930) tão plenos de “cálidos harpejos”, tangidos ao “som lascivo dos epitalâmios” e fustigados por “um rumor de lendas pelo ar”, “como sonâmbula fosforescência”, intimamente, eles transcendem os espaços intranquilos do mistério: árvore-mãe que transpira linguagens de eras outras e de costumes desatados. Os versos de antiga extração plantaram sementes febris na urgência da escritura, a nada negligenciando, nem mesmo os rituais assombrosos do coração, com suas tibiezas, seus vícios, sua plasticidade domada, sua saudade dormente, sua tristeza raquítica, seus choros ao longo dos corredores da solidão com sua nostalgia, suas reminiscências adubadas com regozijos líricos e incontestada louçania linguística.


Da aventura pretérita, às vezes febril e magra, enigmática e quimérica, desentranhada desses versos, se encrespa na haste do verbo, a esfinge, como preceptora dos sonhos e esplendor dos mitos. A linguagem estranha, sorrateiramente, arraigada aos dois lados de dentro do passado, o adormecido e o insone das palavras, sai dos seus esconderijos bailando e girando em brasa acesa feito sino “com sílabas de bronze incompreendidas”, “indiferente a todo olhar profano” “desse palácio negro em róseo abismo” que “sobre a camurça loira dos tapetes” imperceptivelmente deslinda “o véu das brumas” com seus “cachos de lágrimas suspensas” mastigando o tempo por meio de um relógio impaciente que indefinidamente “anda pulsando as horas”. Horas que a esfinge, aborrecida e estranha, dispara com frequência no cocuruto das fábulas rebeladas dos avantesmas.

Ao menos uma vez na vida, a fadiga do passado assanha o frescor do novo e de novo, lá das profundezas da noite, o linguajar da mais alta linhagem se faz presente. O que antes era pura estranheza gerada nos berços das formas assentadas e cultuadas ad infinitum pelos vates de plantão, com os charmosos, torneados e perfeitos versos, tão afeitos a uma audiência dormente e inebriada apenas pela musicalidade amestrada das palavras aprisionadas nos edifícios dos sonetos, dos madrigais e das baladas, ganha corpo e espessura ampliando a vastidão imemorial dos sentidos. Raul Bopp, já na madurez de sua juventude, vestiu sua poesia, vagarosamente e para sempre, com um estirão de imagens “livres e cheias de sol como um verso moderno”. O poeta, lambendo e beliscando cada vocábulo, tomado, paradoxalmente por uma aflição de velocidade e de posse do mapa das peles, aponta direções outras para uma outra espécie de epos. Um epos que já vinha anunciado, e muito bem, nas esquinas remotas das duas décadas iniciais do século XX.

Nos Versos Antigos, onde “todo o corpo se ilumina/num fulgor de porcelana” e “o corpo em flor de tâmara macia” esquadrinha as esquisitices mais convidativas do indivíduo, “a alma de prata das estrelas/pirilampeia na penumbra” e o poeta muda a trajetória “por onde os sonhos todos vão…” “com seu vago olhar tristonho/parece a mãe-d’água do sonho/boiando numa lagoa”. Raul Bopp com saborosos, surrealizantes e firmes passos transforma radicalmente a pele da poesia. Uma pele amorosamente elastecida com fartura de conhecimento, sabedoria, sentimento, técnica, estilo, imaginação, liberdade e, sobretudo, a aventura do viver intensa e inteiramente o poético do mundo. Nesses antigos e inventivos versos, o epos de uma época por vir já se fazia presente na quina saliente dos poemas que, mais para frente, serpenteariam nas matas, os medos e as conquistas de Cobra Norato.

Lá está a quina a ser transposta ou transferida de lugar: Temporal Amazônico, No Amazonas, Cidade Selvagem, Mãe-Febre e Pântano, poemas onde a “floresta uiva e se arqueia” e “nos largos céus ensombrados/Nuvens recuam, em bando/Como crustáceos perseguidos” por uma espécie de um deus resmungão que não consegue decifrar os segredos da natureza que ele próprio criou e habita; o mesmo habitat “onde as orquídeas lânguidas balançam/Movem-se as folhas do açaí, como pernas de aranha espetadas num caule”, num espaço assim, com olhos selvagens, os deuses se enfurecem, não se apiedam dos mortais, não se comovem quando “adoecem os horizontes…”, para eles, “melhor é que a tarde role, encaroçada em nuvens de ouro” e embaralhem tudo: o pântano de febre, a mãe selvagem, a cidade amazônica no temporal espetaculoso do grande rio. E o grande e vasto rio é a Poesia em febre criada por Raul Bopp que queima e resiste ao tempo, seu nome: Cobra Norato (1931).

Pois, então, psiu. Entre os “muitos eteceteras por aí”, Cobra Norato pede passagem, acordando a floresta, esse mundo provocantissimamente aflorado por lendas, mitos, magias, fábulas, mistérios e estradeiros alumbramentos. A epicidade boppiana não cede ao receituário fácil dos modismos, aquele que colado à novidade só consegue narrar a mesma coisa da mesmice: simulacros de sombras empoeiradas sob o sol. A força criativa do autor, oriunda das vivências libertárias da poesia, traduz a complexa e primitiva natureza do humano que se espraia pr’aquelas bandas do sem fim da grande vida. De raspão, uma fala, entre tantas de tantas que apreciaram esta obra, pode muito e de diferentes maneiras resumir o conteúdo literariamente mágico de Cobra Norato. Ela vale, e muito, pela abrangência e poder de síntese, uma visão maiúscula e reluzente que merece uma longa e inteira citação. Registre-se, desse modo, o comentário da imensa crítica Luciana Stegagno Picchio (2004) que afirma:

 

O poemeto (São Paulo, 1931) nasce do clima da “Antropofagia” e, num tom fabulístico de história para crianças, numa língua “primitiva” ritmada por onomatopeias, cria com extraordinária e sugestiva plasticidade a paisagem amazônica.

 O herói mata o Cobra Norato, introduz-se na sua pele de seda elástica e parte em busca da filha da rainha Luzia, Entra na floresta, suporta as provas, interroga os passantes, alcança o Cobra Grande, o Grande Serpente, no momento em que este está para desposar a filha da rainha Luzia, mata-o, e pode desposar a filha da rainha Luzia. A dimensão irônica e onírica do relato, o jogo linguístico e o encaixe de folclore […] emprestam à floresta amazônica sombras escuras como a noite das lendas indígenas, fazem-na úmida de águas subterrâneas, onde “sapos beiçudos espiam no escuro”, onde “bocejam árvores sonolentas”. Cada verso é uma invenção; a floresta gera serpentes, as raízes desdentadas das árvores mastigam lama; na escola, as árvores estudam geometria, constroem-se rios, o vento faz cócegas nos ramos e anula escritas indecifradas. No alto, a lua tem olheiras, um solzinho infantil cresce gorducho e alegre. Entrelaçam-se diálogos sem personagens, vozes da floresta. E, em toda parte, diminutivos (“riozinho”, “florestinhas”), que marcam, a cada nível, até as formas verbais (“Quero estarzinho com ela”), e imagens surrealistas de tom modernista: a floresta ventríloqua que restaura o verso para a cidade, as palmeiras encaracoladas que se abanam, as árvores encapuçadas que libertam fantasmas: mas também árvores que se telegrafam, ou sapos que estudam o abecedário da floresta.

 

Se cada verso é uma invenção, o poema inteiro é uma galáxia de saberes e criativa construção poético-existencial reverberando a ciência do novo com suas infinitas temporalidades. Se cada verso é uma invenção, o todo do poema inunda o universo inteiro com os fragmentos das utopias gerando naturalmente referências e dicções de um espaço outro. Sim, se cada verso é uma invenção, o inteiro poema se renova e se reinventa a cada linha multiplicada no estremecer das formas inconclusas. Cobra Norato, até o limite da exaustão, se desdobra, nos perdidos do nunca mais, a esbanjar desconcertantes imagens surrealistas. Uma profusão de imagens que captura o sentido afortunado de liberdade e amor transfigurado pela necessidade de uma originalíssima poesia. Imagens saídas do útero da floresta, bem quentinhas e devagarzinho, anunciando que a poesia encheu-se de assombros e, como tal, vem a trote para revelar a potência sedutoramente febril da imaginação. Imagens não rubricadas, não mimetizadas, não acomodadas, não ajuizadas pelos árbitros de plantão. Afinal, desde priscas eras, “já tínhamos a língua surrealista” esmiuçada diuturnamente “no país da cobra grande”, onde a consciência de uma Revolução Surrealista é a humana aventura ferozmente válida.


Raul Bopp, puro e fiel a si próprio, percorrendo as paisagens edênicas do verbo e com uma vontade esporeada pelo delírio, enfrenta a enigmática e outrora indecifrada esfinge. Para ele, toda palavra, com sua floresta de signos, gera espasmos, irradia êxtases, rastreia inventos, mastiga desejos, descreve fastios, reveste artifícios, amplia miragens, desfaz adeuses, inaugura eras e busca inexoravelmente amamentar, sem queixumes, os sonhos coletivos. O fluir do conhecimento dança no ir e vir dos vocábulos, numa espécie de semântica assanhada pelo crepitar dos inumeráveis sentidos alterados por uma sintaxe irresistivelmente inovadora. Na garupa da palavra, semântica e sintaxe seguem insones, atentas ao mutirão de vontades que inseminam a geografia das coisas com as tentações dos seres. Pelas distâncias alheias ao tempo, o verbo boppiano vaticina amanheceres, urdido que está nas fabulações infindas da floresta tão desafortunadamente recortada por fantasmas que serpenteiam com selvagem rebeldia.

De mansinho e sem mais dizer, a vontade do herói épico, paradoxalmente, em sua assanhada “sangria lírica”, dá as caras, com fina e rebuscada simplicidade:

 

Um dia

hei de morar nas terras do Sem-fim.

 

Vou andando caminhando caminhando

Me misturo no ventre do mato mordendo raízes

 

Depois

faço puçanga de flor de tajá de lagoa

e mando chamar a Cobra Norato

(Canto I)

 

O grande rio da história começa sua travessia gerundiando dizeres, colhendo silêncios, acendendo caminhos, misturando enredos, singrando assombros e, sempre e sempre caminhando, caminhando… andando por veredas de começos incomuns. Pois, um dia é mais que um dia nas terras fabulosas do Sem-fim com seus afortunados feitiços, suas beberagens suas mezinhas… “Vou buscar puçanga/pra distorcer o mau-olhado” (Canto XXX) não interessa a lonjura das moradas, nesse “estirão mal-assombrado”, o herói tece a tapeçaria atrativa dos seus amores mordendo e enfrentando seus medos para, de uma vez por todas, conquistar a filha da rainha Luzia. Longas trilhas e densas matas, uma nova dimensão se avizinha, o coração selvagem ”a correr mundo”, sem amarras e inabalavelmente livre na selva ardente e graciosa da poesia:

 

Começa agora a floresta cifrada

 

A sombra escondeu as árvores

Sapos beiçudos espiam no escuro

 

Aqui um pedaço de mato está de castigo

Arvorezinhas acocoram-se no charco

Um fio de água lambe a lama

(Canto II)

 

A sustança onírica de Cobra Norato vem sob a forma de amplas e sugestivas metáforas, excêntricas alegorias e contagiantes fantasias gestadas no grandioso berço dos diminutivos incomuns. Um brevíssimo apanhado deste jeito de acarinhar a fala atiça a imaginação e revela o onipresente poder da inocência. No mundo mítico de Raul Bopp, os diminutivos entre -inhos, -zinhas, -zitos, -otes, -ulos etc, voejam e saltitam com doçura: arvorezinhas, plantinhas, florestinhas, riozinho, ventinho, trovãozinho, solzinho, mansinho, devagarinho, golinho, pouquinho, sozinho, doizinho, tapetinho espelhinho, titinho, baixinho, vestidinho, saracurinhas, sororoquinhas, garcinha, marreca-toicinho, Joaninha Vintém, maninha, sozinha, coitadinha, piquininha, nuinha, fumadinha, Tatizinha, gargalhadinhas, esperazinho, estarzinho, querzinho …de ficar junto como uma flor parideira de prazeres pela vida afora, fio fértil de imagens.

O mundo mítico, alucinado e fantasmagórico de Cobra Norato se conjuga na ação perene dos seres que intercambiam suas diferenças, numa troca constante de experiências as mais autênticas possíveis. Nessa geometria de afetos, a realidade é tão somente uma máscara a esbanjar sinuosos semblantes de uma eventual atmosfera que se desrealiza a cada investida de primitivos olhares. Por entre os desvãos do verbo, os gerúndios enovelados despem uma generosa eroticidade arraigada à reiteração, por vezes irônica e frequentemente insólita. Enfileirar, de súbito, aqui, perífrases com gerúndio projeta, um tiquinho apenas, do todo de uma comunhão mágica que se espraia ao longo dos trinta e três cantos da rapsódia boppiana. Eis alguns fragmentos das peripécias do verbo: “andando caminhando caminhando”, “afundando afundando”, “monologando e resmungando”, “parindo cobras”, “estudando geometria”, “fabricando terra”; sempre ele, o verbo, segue estrondando silêncios na mata virgem do ser onde se espreguiçam as cidades elétricas “com fome mastigando estalando” às margens beiçudas do sonho. Com a engenharia silente do tempo, “nadando nadando”, pausadamente, vislumbra-se a paisagem encharcada de urgências que, mesmo assim, não se exaure; com parcimônia, o movimento do verbo, este pajé de extensas asas, em suas habilidosas artimanhas continua seu trajeto “assobiando baixinho fiu… fiu… fiu…” e de fininho vai saindo rumo a outros horizontes, quiçá, para os braços da encantada filha da rainha Luzia. Em Cobra Norato, o movimento é tudo: tripla ação do amor, da liberdade e da poesia.

A esta altura da viagem, já quase chegando “na ponta do Escorrega”, em que o “vento correu correu/mordendo a ponta do rabo”, vale “contar histórias/escrever nomes na areia/pro vento brincar de apagar”; antes, pois, que tal aconteça, um parêntesis e uma saudação a três momentos incontestavelmente ímpares relativos aos estudos da obra de Raul Bopp: Cobra Norato – O poema e o mito, de Othon M. Garcia, 1962; Cobra Norato e a Revolução Caraíba, de Lígia Averbuck, 1985 e Poesia Completa de Raul Bopp, Organização e notas de Augusto Massi, 2013, numa segunda edição de grande abrangência crítica, com uma minuciosa pesquisa de fontes contendo notas preciosas que percorrem o trajeto dos poemas boppianos desde as primeiras publicações, Versos Antigos, passando por Urucungo até desaguar em Parapoemas.

Não querendo mais esticar a pele elástica da serpente, no entanto, tentado pela cósmica natureza da palavra, uma derradeira anotação seja incorporada a este tópico crítico, recolhido do exemplar, inspirador e magnífico estudo do ensaísta e poeta Othon M. Garcia que escrutinou estilisticamente o poema Cobra Norato em toda sua realização verbal, palmilhando a ossatura metafórica do texto, o encantamento profundo do mito, as sementes atávicas do humano, a geografia sem fim – quase atemporal – dos caminhos, as árvores grávidas com suas feições épicas e não menos dramáticas num mundo em que a onipresença da paisagem líquida encharca o poema de abrasadíssimos prazeres. Neste universo fantástico e em gestação, árvores, águas e terras por entre lamas, raízes, galhos, chuvas e outros intumescem a libido da imaginação. O ensaísta, em seu esplêndido texto, esmiuça o mito serpentário, a simbologia onírica, o caráter predominantemente visual, o jogo de palavra-puxa-palavra, o imagismo, o animismo, o concretismo, o virtuosismo metafórico e os aspectos da expressão verbal de Cobra Norato, de maneira absolutamente sedutora. Uma admirável simbiose pode ser apreciada, na análise encetada por Othon M. Garcia, que faz jus as suas próprias palavras, quando afirma: “poesia é também, grandemente, associação de ideias, é também jogo de palavra-puxa-palavra” e que “não é possível crítica sem imaginação”, resguardando, é claro, a inteireza da obra sob o prismático jogo entre objetividade e sensibilidade dos olhares.


Agora, sim, já quase contornando a última curva das descalças terras do sem fim, ressalte-se a natureza surrealizante, predomínio-mor da poética de Raul Bopp, quando o deslizar alucinado das imagens transfiguram a realidade oferecendo ao indivíduo uma nova sensibilidade com infinitas possibilidades de ver, apreender, singrar, urdir e fazer brotar sonhos. Em Cobra Norato, a especificidade transgressora e onírica do real surge com uma enxurrada avassaladora e desconcertante de versos que, circularmente e com precisão, estapeiam o conformismo, desarrumam as convenções, soterram a uniformidade, remodelam a sintaxe e inscrevem, naturalmente, nas páginas da vida, uma outra e diferenciada semântica. Uma pequenina amostra deste esplendor pode muito bem dimensionar parte, uma pontinha apenas, da invenção delirante contida na viagem imaginária de Raul Bopp, em que o seu herói adentra o mundo visguento onde a lua nasce com olheiras e impertinência de Norato (Honorato), em seu “estado de obsessão afetiva e semi-sexual” é encontrar e desposar a filha da rainha Luzia. O jeito de ser e sugerir o mundo de Bopp, provavelmente já estivesse contido, em parte, em seu Rascunho Autobiográfico, quando ele reconhece: “Inconscientemente, fui sentindo uma nova maneira de apreciar as coisas. A própria malária, contraída em minhas viagens, acomodou meu espírito na humildade, criando um mundo surrealista, com espaços imaginários”. (2008). Sem mais delongas, portanto, um bocadinho deste universo nestes fragmentos soltos pelo meio do tempo, do espaço, da vida e da poesia:

 

Raízes desdentadas mastigam lodo

 

Num estirão alagado

O charco engole a água do igarapé

(Canto IV)

 

Açaís pernaltas

movem as folhas lentas no ar pesado

como pernas de aranha espetadas num caule

(Canto VII)

 

Riozinho vai pra escola

Está estudando geografia

(Canto XII)

 

O sol belisca a pele azul do lago

(Canto XIV)

 

Árvores corcundas com fome mastigando estalando

entre roncos de ventre desatufados

(Canto XIV)

 

Ou, mais para frente, prossegue-se caminhando por labirintos continuamente incendiados pela pulsação incessante do espanto que, em certos momentos, é regido por aquela “vontade de ouvir uma música mole/que se estire por dentro do sangue” e afugente sumariamente a mal-assombrada secura do verbo. O imaginário, em Cobra Norato, inunda o ser com a beleza explorada nas minúcias de seus tecidos, espécie de catálogo admirável e fantástico dos entes transfigurados no seu caminhar: a outridade afeiçoada a uma profusão de imprevistos. Nesse novelo de assanhadas tentações, de fininho e bem próximo de completar o trajeto, a volta no círculo sem fim das terras boppianas, ressaltando, desde já e sempre, que conclusões não são possíveis frente à grandeza da arte, um bocadinho mais de sonho:

 

A água engomada de lama

resvala devagarinho na vasa mole

(Canto XX)

 

Sapos com dor de garganta estudam em voz alta

Céu parece uma geometria em ponto grande

(Canto XXIII)

 

Jacarés em férias

mastigam estrelas que se derretem dentro d’água

(Canto XXVI)

 

Árvores encapuçadas soltam fantasmas

com visagem do lá-se-vai

O luar amacia o mato sonolento

 

Lá adiante

o silêncio vai marchando com uma banda de música

 

Floresta ventríloqua brinca de cidade

(Canto XXVIII)

 

Vento correu correu

mordendo a ponta do rabo

(Canto XXXI)

 

Raul Bopp com sua obra impregnada de belezas, generosamente surrealista, implacavelmente criativa e imensamente inovadora celebra a radicalidade poética em toda sua extensão misteriosa, desafiando medos, decifrando segredos, guerreando com palavras, avistando o topo das utopias a partir da plumagem do real, essa ilusória criatura de incomensuráveis disfarces. Na vida gerundiada, “há tanta coisa que a gente não entende” (Canto XXIII), histórias que quase sempre estão para além do texto, num ir e vir intenso e imemorial onde só “silêncios imensos se respondem” (Canto XVII) encantados pelo chamamento das horas. No limiar do tempo, Cobra Norato palpita, ainda e sempre, fertilizando belezas. Urucungo ecoa; porventura, um novo diálogo a ser travado. Por enquanto, arremate-se este, numa vibração surrealista, com três palavrinhas: Raul, o único. 

 

Referências Bibliográficas

BOPP, Raul. Poesia completa. Organização e notas de Augusto Massi. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.

___. Vida e morte da antropofagia. Apresentação de Régis Bonvicino. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008.

CÉSAIRE. Aimé. Poemas. Tradução de Nelson Ubaldo e Péricles Prade. Blumenau: Letras Contemporâneas, 2006.

DIAS, Saúl. De Ainda a Vislumbre. São Paulo: Escritura Editora, 2007.

GARCIA, Othon M. Esfinge clara e outros enigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

STEGAGNO PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira. 2. ed. rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2004.

ZAMBRANO, María. O sonho e a criação literária. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. In: O sonho e as sociedades humanas. Direção de Roger Callois e G. E. van Grunebaum, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.

 

 


R. LEONTINO FILHO | Poeta e Ensaísta. Publicou os livros de poemas Cidade Íntima (1987/ 1991/ 1999), Semeadura (1988), Sagrações ao Meio (1993), Anatomia do Ócio (2018) e A Geometria do Fragmento (Ensaios, 2008). Autor dos estudos de crítica literária, inéditos em livro, intitulados: Sob o Signo de Lumiar – Uma Leitura da Trilogia de Sérgio Campos e Lavoura arcaica – o narrador solto no meio do mundo (2005). Estudioso da poesia de Floriano Martins, tendo assinado posfácio de alguns de seus livros de poesia e ensaio.

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensayista, y traductora. Junto a Sergio Lima y Paulo Paranaguá organizó la 13ª Expo Surrealista Internacional en São Paulo (1967). En esa época realizó dos viajes a París y tuvo un encuentro entrañable con algunos integrantes del grupo surrealista francés. Ha publicado los poemarios Cometas (1977), Poemas plásticos (1980), y A mobília violenta do ar (2020). Participó en la expo surrealista “Las llaves del deseo”, Costa Rica, Cartago, 2016. Reside en São Paulo.


 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 06

Número 205 | março de 2022

Artista convidada: Leila Ferraz (Brasil, 1944)

Tradução: Floriano Martins

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

concepção editorial, logo, design, revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS

ARC Edições © 2022 

 





 

 

 contatos

Rua Poeta Sidney Neto 143 Fortaleza CE 60811-480 BRASIL

floriano.agulha@gmail.com

https://www.instagram.com/floriano.agulha/

https://www.linkedin.com/in/floriano-martins-23b8b611b/

  

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário