domingo, 10 de julho de 2022

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Do neo-realismo em Mário Cesariny de Vasconcelos

 


A adesão de Mário Cesariny ao neo-realismo – e a mesma adesão se detecta nos seus colegas e amigos próximos da escola António Arroio (António Domingues, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Fernando José Francisco, Fernando Azevedo, José Leonel Martins Rodrigues, Moniz Pereira, Vespeira e Júlio Pomar) – deu-se em 1944, altura em que perdeu pela primeira vez o vínculo à Escola António Arroio e em que aprofundou a sua ligação, inclusive com a militância no Partido Comunista Português, a Fernando Lopes Graça, ligação que vinha porém de trás, pelo menos de 1942, da Academia dos Amadores de Música onde o jovem Cesariny tinha aulas de piano.

O neo-realismo em 1944 era um movimento recente, mas firmado já ao longo de mais dum lustro, com nomes e obras decisivas que marcavam um novo rumo estético que reagia às correntes anteriores, todas marcadas pelo esteticismo modernista. Mário Dionísio publicava poemas e textos teóricos desde 1938; o romance Gaibéus de Alves Redol datava de 1939. Manuel da Fonseca estreava-se em 1940 com o livro de poemas Rosa dos Ventos e Soeiro Pereira Gomes dava à estampa no ano seguinte o romance Esteiros. Do ano de 1941 é o aparecimento em Coimbra da coleção “Novo Cancioneiro”, que se iniciou com a publicação do livro de versos Terra de Fernando Namora. Esta coleção será pouco depois seguida em Coimbra por uma outra, a dos “Novos Prosadores”, onde Carlos de Oliveira publica em 1943 o romance Casa na Duna.

Ora o neo-realismo desta nova geração lisboeta saída da Escola António Arroio e dum café das suas imediações, o Café Herminius, que ficava na Avenida Almirante Reis, ao pé da Praça do Chile, e que era frequentado pelo grupo desde 1943, tinha todas as condições para, embora aderindo com entusiasmo às novas ideias que se procuravam impor desde o final da década anterior, se mostrar distinto daquele que estava já consagrado. O grupo tinha uma tradição urbana muito diferente da experiência rural dum Alves Redol e da vivência operária dum Soeiro Pereira Gomes e estava também muito longe do meio académico coimbrão dum Joaquim Namorado, dum Cochofel e dum Carlos de Oliveira, pelo qual não sentia qualquer atracção. Nenhum membro do grupo lisboeta foi para Coimbra estudar e foram raros os que prosseguiram estudos superiores.

 

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A primeira manifestação do grupo de Lisboa, sinalizando a sua adesão ao neo-realismo, mas também as suas diferenças para com o neo-realismo existente, foi organizar e manter um suplemento cultural num vespertino do Porto. À cabeça surgia Júlio Pomar, então na capital do Norte, mas sempre em contacto com o restante grupo de Lisboa. Coube-lhe dirigir a folha, “Arte”, que se começou a publicar aos sábados no início de Junho de 1945, integrada no jornal A Tarde, quando acabavam de ter lugar em Lisboa e um pouco por todo o país as manifestações populares de regozijo pela capitulação incondicional da Alemanha. Dos colaboradores, Júlio Pomar era o único que havia já comparecido nas páginas do jornal. A maioria – Pomar, Vespeira, Azevedo, Cesariny, Oom, Fernando José Francisco, José Leonel – saiu do círculo que se reunia no Café da Almirante Reis e vinha dos bancos da Escola António Arroio. A colaboração dada por Cesariny a este suplemento, sete textos entre Junho de 1945 e Outubro do mesmo ano, é da maior importância – é ele o teórico do grupo mais em evidência – embora os textos, sendo a sua estreia em letra redonda de tipografia, sejam ainda incipientes e pouco característicos.

O primeiro linguado de Cesariny surgiu a 30-6-45, no quarto número do suplemento, e a sua presença manteve-se a partir daí regular até ao final da folha. O derradeiro, o sétimo, surgiu quatro meses depois, a 20-10-45, no vigésimo suplemento “Arte”, fechando o jornal seis dias mais tarde, numa sexta-feira, talvez por insolvência. Durou 290 números. Com excepção do último texto, “Nota sobre 3 músicos”, consagrado à música soviética, aquela que Fernando Lopes Graça lhe dava a conhecer nas salas da Academia dos Amadores de Música, todos incidem sobre pintura, embora muitas considerações feitas possam ser aplicadas à arte em geral. Percebe-se que Cesariny tinha então uma formação exigente e possuía um rico e variado chaveiro que lhe dava acesso à compreensão universal dos fenómenos artísticos, o que não significa que estes textos não apareçam manchados por afectações e insuficiências, que levarão a que o seu autor mais tarde os arrume como “bastante maus” (“Tábua”, Mário Cesariny, 1977).

Os seis artigos sobre pintura obedecem a uma lógica interna, a um fio pré-estabelecido, e vão-se sucedendo como peças autónomas duma construção que só no final completa o seu sentido. Cada um deles é só um ponto do conjunto mais geral.

Em resumo dizem o seguinte: a arte do presente é individualista e está divorciada do público, que lhe voltou costas (“O Artista e o Público”, 30-6-45); é preciso conhecer os movimentos artísticos do século XX, como o cubismo e o futurismo, que fizeram uma revolução estritamente formal, no campo técnico, sem mexer nas ideias, para se perceber como se chegou à actual situação (“Futurismo e Cubismo” I e II, 21-7-45 e 29-7-45); há que descobrir a realidade, “as verdades do tempo”, abandonando a excessiva preocupação técnica para humanizar a arte e reconciliá-la assim com o público (“Aprendizagem na Arte”, 18-8-45); a obra plástica do mexicano José Clemente Orozco (1883-1949) é para o jovem crítico exemplo duma pintura evoluída, em que as aquisições formais inovadoras vão a par duma interpretação firme da realidade histórica, contribuindo para a libertação da humanidade e para a morte das tiranias divinas e humanas (“Orozco”, 15-9-45); a pintura nova é pois uma realização técnica inovadora que não deixa de lado o carácter humano da realidade – esta pintura nova está já a ser realizada em Portugal por “um neo-realista de Lisboa” (“Carácter duma pintura nova”, 6-10-45).

Acrescente-se que nem surrealismo nem André Breton eram ignorados do jovem crítico, embora o conhecimento que então mostra dum e doutro seja apenas de superfície. No segundo texto dedicado ao cubismo e ao futurismo, alinha outros movimentos artísticos que enfileiram no mesmo erro dos dois – arte formal, sem dimensão humana e lição histórica. Neles comparece o surrealismo, então chamado nas alusões que lhe são feitas em Portugal, raras e de ocasião, “sobre-realismo”, nome que o jovem crítico d’ A Tarde adopta.

Também Pedro Oom, em texto publicado na mesma época e no mesmo lugar (“Nota sobre o neo-realismo nas artes plásticas em Portugal”, 25-8-45) alude ao surrealismo. De resto, Mário Cesariny conhecia desde 1943 António Pedro (carta a Cruzeiro Seixas, 1-12-43), que desde 1940 fazia uma pintura de semelhança surrealista, com uma exposição em 1940, na Casa Répe, ao Chiado, com António Dacosta e Pamela Boden, e que parte do grupo da escola do bairro da Estefânia terá conhecido e até visitado. Demais, o décimo primeiro número do suplemento “Arte” (18-8-45) tem na cimalha frase de André Breton – “Trata-se, no entanto, sempre da vida e da morte, do amor e da razão, da justiça e do crime. A partida não é desinteressada!” –, escolhida e traduzida por certo pelo coordenador. Mostra, todavia, que o nome do fundador do surrealismo era dito e ouvido no círculo do Café da Almirante Reis.

Outro ponto que merece atenção nos primeiros textos de Mário Cesariny é a referência a “um neo-realista de Lisboa”. Sucede isso no texto sobre a “nova pintura”, o sexto, em que se define o sentido geral do conjunto, se deixarmos de lado aquele derradeiro sobre os três músicos soviéticos. Não interessa tanto saber quem se escondia sob essa designação capciosa de “neo-realista de Lisboa” – é certo tratar-se de Fernando José Francisco – como perceber que se estava então a desenhar uma escola distinta da de Coimbra dentro do neo-realismo e que a teorização de Mário Cesariny era como que a sua voz pública, o seu primeiro sinal. Isto mostra a consciência que o grupo tinha da individualidade e da diferença dos seus contributos dentro do novo movimento. A folha portuense pode ser vista como o ponto de arranque de artistas como Pomar, Vespeira, Azevedo, Domingues, Moniz Pereira e Fernando José Francisco. É nela que publicam os primeiros textos e dão a ver ao público as primeiras reproduções dos seus trabalhos, antecipando aqueles que exporão na 2.ª Exposição Geral de Artes Plásticas (1947), que marcou a afirmação do neo-realismo pictórico em Portugal.

Ao tempo do suplemento “Arte”, o que existia da escola neo-realista estava acantonado na alta de Coimbra e no sector das letras, com uma colecção de poesia e outra de prosa. Em termos pictóricos e plásticos, o que podia ser inserido dentro da corrente eram só talvez os trabalhos a cor de Manuel Ribeiro de Pavia, vizinhos das velhas gravuras da literatura de cordel, a que se juntavam alguns desenhos de Álvaro Cunhal, que pareciam retomar alguma da estética do Stuart que colaborara no jornal A Batalha com caricaturas sociais. Estava ainda por forjar de forma inequívoca a expressão plástica do novo movimento, que só surgirá em força à luz do dia com a exposição atrás indicada.

Mário Cesariny não veio então à liça como pintor ou artista plástico – não há uma só obra sua reproduzida nas páginas do suplemento, embora se saiba que desenhou e pintou vários quadros, um deles, “Quando o pintor é um caso à parte”, perdido e reconstituído em 1970 – mas como o teórico das realizações do grupo que se arregimentava no suplemento. É ele que publica os textos mais densos e consequentes deste novo colectivo. E fá-lo como se viu com um sentido geral da construção, em que cada peça marca um ponto de avanço sobre a anterior. Escusa-se a ser directo – não fala uma única vez em neo-realismo – e a impressão que temos é que não é tanto a censura exterior e oficial que assim o determina, mas a linha interior do seu pensar. Depois deste primeiro esforço, centrado nas artes plásticas, que são o lado mais formal da experiência humana em arte, não é de estranhar que o jovem crítico tenha procurado desenvolver o seu labor de teorização, abalançando-se a tomar a literatura por reflexão. Era na literatura que o novo realismo se manifestara até aí de forma mais evidente e ruidosa, com a publicação de versos e de romances em prosa e com o surgimento de nomes que pediam atenção, desejosos de se consagrarem. Era ainda no fio da literatura que o jovem crítico se encadeava e debatia com os versos que lia e escrevia desde pelo menos 1941.

 

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A sua nova reflexão apareceu organizada em sete notas, que deu a lume numa revista efémera (“Notas sobre o neo-realismo português”, Aqui e Além, nº 3 e nº 4, Dezembro 1945; Abril 1946). É um texto do maior significado para se perceber o ponto de arranque em literatura de Mário Cesariny. Os textos anteriores, publicados entre Junho e Outubro de 1945, têm alguma certeza de construção – mas têm também o peso dum sistema de ideias na insistente afirmação do humanismo e não da forma ou da técnica como bitola de avaliação em arte. Há neles uma reacção anti-formal muito consciente, depreciando os movimentos de vanguarda do início do século XX, que se lhes dá novidade numa cena artística que vivia desde o final do século XIX saturada de esteticismo, também lhes retira largueza de compreensão.


Os novos textos libertam-se do equívoco do conteúdo, que é disso que se trata quando o jovem crítico falou das premissas do Tempo e da História. São por isso textos mais amplos, mais livres, mais dinâmicos e até mais explícitos, já que assumem logo no título a ligação ao “neo-realismo português”. Assumirem a teorização directa dum movimento artístico recente ajudou-os a darem um pequeno passo para lá do lugar-comum da arte comprometida, pecha que mancha o seu primeiro conjunto. Desta vez o ponto da reflexão desloca-se para fora do campo de observação e os textos surgem numa posição mais ajustada a um terreno pessoal. Ao tomar o neo-realismo como “a expressão e a conquista duma realidade mais geral”, o enunciador não renuncia nem à crítica do individualismo nem à secundarização da forma, mas deixa em aberto um caminho imprevisível, ainda por fazer, e que acabaria por ser, no seu caso pessoal, o surrealismo. O neo-realismo era em literatura demasiado recente para o novel crítico aceitar como definitivas, e até como expressão daquilo que do movimento se podia e devia esperar, as obras até então conhecidas. Essas obras padeciam dum mal: recorriam aos meios e aos processos que em teoria combatiam. Faziam assim uma literatura nova com processos velhos, o que levou a que o crítico lhes negasse o estatuto de neo-realistas, preferindo classificá-las de “populistas”. Assim sendo, estavam por criar as obras representativas da nova corrente, que seriam também as mais maduras.

Mesmo com todas as condescendências, é aqui que pela primeira vez se desenha com clareza um neo-realismo contra o neo-realismo, quer dizer, um neo-realismo desenvolto e adulto contra um neo-realismo embrionário e visto como insuficiente. Daí a classificação que ele usa para definir essas obras de transição – o “populismo”. Eis o ponto mais complexo deste primeiro Mário Cesariny. Desenvolvê-lo-á na criação poética a que se entregou nesta época e com uma largueza de meios que faz figura inesperada em meio tão acanhado como o do “novo humanismo” – eufemismo para as linhas de orientação que vinham de Moscovo. Nos textos publicados no Porto começa-se a desenhar uma escola de Lisboa por contraste com a de Coimbra, mais limitada. Como quer que seja, essa nova escola não é de todo explícita nos textos publicados no Porto, ao passo que a situação dum neo-realismo mais avançado que o então existente é o nó crucial deste conjunto vindo a lume na revista Aqui e Além.

Não custa tomar estas notas de Mário Cesariny como vizinhas daqueles textos críticos com que Fernando Pessoa se estreou na revista A Águia (1912) – e que pela mão de Álvaro Ribeiro acabavam de ser republicados em livro, A nova poesia portuguesa (1942), opúsculo que o jovem crítico de 1945 decerto leu e meditou. O papel mediador que ele quis então ter junto da literatura neo-realista parece coincidir com aqueloutro que o autor de Mensagem pretendera rasgar no seio da nova poesia saudosista – quer dizer, uma posição ambivalente, de adesão e de afastamento a um só tempo. Adesão porque assumia declaradamente o neo-realismo como o movimento que interessava então construir; afastamento, já que se distanciava conscientemente de tudo o que até aí dera expressão ao movimento entre nós, insistindo em que as verdadeiras obras neo-realistas estavam ainda por criar e que o que até então surgira no domínio das artes plásticas, do romance e da poesia não merecia o nome de neo-realismo.

Enquanto presencistas como José Régio e Gaspar Simões criticavam desde o final da década de 30 o neo-realismo por força da inconsistência estética das suas obras, Mário Cesariny afastava-se dele, neo-realismo, porque o entendia não como uma questão de observação, quer dizer, de real estatuído e estático, mas como “a expressão e a conquista duma realidade mais geral”. Está aqui um ponto que tanto nos leva a pensar que o destino dum tal realismo só podia ser o surrealismo, já que só esse movimento propunha a descoberta dum novo real, o surreal, como nos pode levar a pensar que só na teorização de Cesariny o novo realismo em Portugal ganhava uma complexidade e uma riqueza reflexiva que retirava o real dos lugares estáticos em que até aí vivera, desde a Geração de 70 até Ferreira de Castro, Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes. O entendimento do real do jovem crítico é distinto de tudo aquilo que antes existia. Nele o real não é uma questão de representação, mas de criação. Está aí porventura o salto dialético que a teorização neo-realista deu em Portugal na década de 1940.

 

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Observe-se agora a criação poética de Cesariny neste período. O que se conhece só mais tarde veio a lume, pois na época nada transpareceu, quer no domínio plástico quer no da poesia. O autor afirmou-se como crítico de arte e como crítico literário, mas não como criador – embora sem lhe dar publicidade desenhasse, pintasse, escrevesse versos e prosa. Sobretudo a sua produção em verso deste período é muito extensa e nada desprezível. Tanto assim, que o seu autor, embora posteriormente se afastasse de muitos dos postulados que então subscreveu, nunca esqueceu a sua criação poética dessa época, dando-lhe mais tarde publicidade. Alguns dos seus poemas mais conhecidos e representativos são mesmo desse período, o que nos obriga a olhar para ele como altamente significativo e não apenas como uma fase de passagem que nenhum rasto deixou, uma espécie de juvenília despicienda e que só raramente paga a pena citar.

Essa criação apareceu pela primeira vez, mas só em parte, no livro Nobilíssima visão (1959) e no volume antológico Poesia – 1944-1955 (1961) – quer dizer foram precisos muitos anos, cerca de 15, para o seu autor a dar a conhecer. No volume antológico apareceu sob o título genérico de “Poesia Civil” – civil pelo compromisso que então teve com as indicações da III Internacional e civil pela adesão ao neo-realismo, que era uma estética de pronta decisão cívica, e daí o tópico anti-formal. A “Poesia Civil”, como surgiu em 1961, era constituída por quatro livros: “Políptica de Maria Klopas, dita Mãe dos homens”, “Nicolau Cansado escritor”, “Um Auto para Jerusalém” e “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos”. Ao conjunto destes quatro livros é preciso juntar os poemas de “Nobilíssima visão”, surgidos dois anos antes, e “Romance da praia de Moledo”, este em cruzamento com “Loas a um rio”, vindos a lume numa colectânea posterior, Burlescas, teóricas e sentimentais (1972), título que foi usado para cobrir parte da “poesia civil” (“Loas a um rio”, “Romance da praia de Moledo” e “Políptica de Maria Klopas”). Nos arranjos finais da sua obra, já na editora Assírio & Alvim, Cesariny distribuiu a “poesia civil” e as primitivas “Burlescas, teóricas e sentimentais”, que na primeira metade da década de 1940 se terão chamado segundo Pedro Oom “Líricas, bucólicas e sentimentais”, por dois livros, Nobilíssima visão (1991) e Manual de prestidigitação (1981; 2005) – o primeiro contendo os poemas de “Nobilíssima visão” propriamente dita, de “Nicolau Cansado escritor” e ainda “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos e “Um auto para Jerusalém” e o segundo “Romance da praia de Moledo” e “Visualizações”, onde estão as “Loas a um rio” e poemas dispersos, alguns aparecidos na primeira edição de Nobilíssima visão (1959).

Todo este conjunto foi orquestrado entre 1942 e o final de 1946. Há pois duas fases distintas neste primeiro período da criação poética de Cesariny. Um primeiro que vai de 1942 a 44 e onde se incluem “Loas a um rio”, “Romance da praia de Moledo” e “Políptica de Maria Klopas”; e um segundo, de 1944 a 46, onde se incluem os restantes poemas, o último dos quais, “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos” é já do final do ano de 1946. O primeiro subconjunto é o que segundo Pedro Oom se chamou de “Líricas, bucólicas e sentimentais” e foi segundo testemunho do mesmo Oom e de Luiz Pacheco apresentado a João Gaspar Simões para leitura, sem que daí resultasse nada de conclusivo. É anterior à adesão ao neo-realismo e à entrada no Partido Comunista – corresponde ao período final da escola das artes decorativas António Arroio e à fase do Café da Almirante Reis. São poemas em que as palavras giram em órbitas regulares à volta da sua estrela e a forma tende à estabilização. É o período em que o jovem Cesariny aceita o clássico, talvez por influência dalguns dos seus professores da Escola António Arroio, como supremo ideal estético. Isso não se fez porém senão em contradição com a experiência mais funda e pessoal do criador. Por isso, poemas, como “Arte poética” e “Corneta”, integrados no “Romance da praia de Moledo”, e aceitando que os poemas são de feito desse período inicial como tudo leva a crer, pouco têm a ver com a beleza, com a forma lapidada e fria do clássico. Não há neles nenhuma concepção de harmonia regulada e estável. É antes a crueza mas também a inocência da transgressão, aquilo que se poderá chamar a agressão contra a harmonia e a laceração da forma, que os motiva. A primeira parte do poema “Arte poética”, com subtítulo de “métrica”, é uma paráfrase ritmada, inspirada talvez nas lengalengas infantis de origem popular, duma oração cristã, o Padre-Nosso, cujo ingénuo efeito musical, fruto dum ouvido treinadíssimo pelo solfejo, não esconde, antes espicaça, um burlesco de infracção, que se ajusta na perfeição ao propósito do poema – restituir o som e o sentido da poética. Leia-se a estonteante abertura (2017): creio em deus pá’/ um dois três quá’/ tod’ poderô’/ um dois dois três (…).

O mesmo se deve dizer para “Políptica de Maria Klopas”, um conjunto de dez poemas, que representa o momento de passagem para a fase da “poesia civil”, pois terá sido já composto em 1944, numa fase vizinha, se não coincidente, com a adesão ao neo-realismo. Este painel de Maria Klopas, uma figura bíblica, citada num versículo do Evangelho de João, surge como o primeiro sinal da capacidade construtiva do poeta. Fizera até aí pequenas composições singulares, com notações lírico-jocosas, mas sem finalidade dramática. Com estes dez poemas cria um primeiro conjunto narrativo, que recria poeticamente um nódulo histórico-bíblico, a mãe de Jesus e a sua ligação a Eva, de que Maria Klopas (ou Maria Klophas) é no poema a dupla hipóstase. Nas várias versões que se conhecem do conjunto – o painel apareceu pela primeira vez na antologia de 1961, foi depois republicado na antologia de 1972 e finalmente integrado nas edições finais de Manual de prestidigitação (1981; 2005) – percebe-se uma linha de evolução no sentido duma maior dramatização do conjunto, com a introdução de didascálias de cenografia musical e a atribuição dos poemas a vozes distintas. O conjunto tem alguma coisa dum auto de Natal invertido, primeiro na nudez das suas queixas mudas duma mulher que se vê projectada para um destino que não foi por si escolhido e depois no esquecimento com que o mundo a amortalha. A ideia dum auto natalício às avessas, carnavalesco, acentua-se nas versões finais com “as estridências monocórdicas” da orquestra final e o apêndice burlesco da “Cantiga de São João”, cuja missão é dinamitar a seriedade do mundo num momento de assumida loucura ao mesmo tempo que subverte em direcções inusitadas a quadra popular.

Atente-se agora no segundo conjunto desta primeira fase da sua poesia, aquele que com toda a propriedade corresponde à ideia duma “poesia civil”. Fazem dele parte os seguintes livros, todos escritos já depois da adesão ao neo-realismo e contemporâneos da publicação dos textos críticos no jornal A Tarde (1945) e na revista Aqui e Além (1945-46) que o leitor já conhece: “Nicolau Cansado escritor”, “Nobilíssima visão”, “Um auto para Jerusalém” e “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos”. Peças maiores na criação do autor, merecem uma observação de pormenor. Esses livros são afinal a expressão prática do neo-realismo evoluído em que o seu autor pensava quando deixou em aberto nas suas notas críticas do final de 1945 o surgimento próximo duma escola neo-realista larga e madura, capaz de superar as limitações do embrião mais populista que neo-realista que então existia em Coimbra.


Mário Cesariny teorizou o neo-realismo de forma literal. Tal como o pensou na conclusão das notas de 45/46, o neo-realismo foi por ele definido como expressão duma “nova realidade”. Daí a forma literal, que não é aqui um sentido único, fechado, linear, mas tão-só fidelidade à letra. Ora a letra é uma incisão, cuja crosta esconde uma vasta antecâmara, onde, além de múltiplas direcções simbólicas, se antecipam muitas realizações futuras. Diz o novel crítico na nota de remate (Aqui e Além, n.º 4, Abril, 1946): “Neo-realismo. Traduzimos: expressando uma nova realidade.” Para se expressar uma nova realidade são sempre precisos processos novos. Estes novos meios de captação duma realidade ainda desconhecida que cabia ao neo-realismo dar forma são o coração da nova arte e aquilo que falta aos escritores de Coimbra. Tentam estes captar a nova realidade com meios de natureza individual, típicos da arte do passado, e por isso falham. Observar o real, característica típica dos realismos do passado, não chega; para atingir o neo-realismo é necessário criar realidade nova. É muito curioso que a criação poética de Cesariny se tenha fundamentado na constatação dum falhanço. Ele pede à escola de Coimbra meios novos que ela não pode dar e por aí mesmo rasga para si um horizonte novo à criação. A percepção duma falta é o primeiro momento da sua superação; tomar consciência do ausente é a forma mais elementar e talvez até mais adiantada de o concretizar e tornar presente. O mais singular da sua experiência poética é, todavia, o ponto de partida. Em vez de se afastar da poesia praticada pelos coimbrões do Novo Cancioneiro, como se esperaria de crítico que lhes anotou os fracassos, ele encosta-se e aproxima-se o mais possível. Está aqui a primeira cambalhota vistosa da poética cesarinesca, que marcará a novidade circense dos seus processos. Trata-se duma estratégia ardilosa, contraditória, mas eficaz, uma aproximação que é afastamento máximo, um plano destinado a saturar e a exaurir os meios usados pelos poetas da época, para melhor expor a sua estreiteza e os seus ridículos, selando assim em definitivo o seu caminho e levando os poetas ulteriores a rumarem a outras paragens. É de paródia que aqui se fala, na linha do burlesco que ainda antes da “poesia civil”, em poemas tão desconcertantes como “Corneta” e “Arte poética”, o poeta já chamara a si na subversão e na agressão das formas do mundo que nos são ingénitas.

Nasceram assim, na transição de 1944 para 1945, por um processo de saturação extrema, os poemas e as prosas de “Nicolau Cansado escritor”. Vieram a público pela primeira vez na antologia de 1961, para em parte voltarem a ser republicados na antologia de 1972, integrando mais tarde, com algumas alterações, embora insignificantes, as duas edições finais de Nobilíssima visão (1976; 1991). Tal como apareceu na primeira edição o conjunto é composto por duas notas iniciais, “Nota do fiel depositário” e “Em torno da poesia de Cansado”, assinadas respectivamente pelo “fiel depositário” e por Marília Palhinha, e por nove poemas da autoria de Nicolau Cansado.

Quem é este Cansado? Autor e personagem textual criada por Cesariny – na edição de 1976, fica-se a saber que tem por nome completo Nicolau Rosendo Gastendo Cansado –, de quem a biografia em verso jâmbico da autoria de Papuça de Arrebol se perdeu em 1944. É o “fiel depositário” – a partir da edição de 1976 chamar-se-á Araruta Província – que nos dá esta informação na nota inicial, ao mesmo tempo que informa que a obra em prosa de Cansado, superior à obra em verso, se perdeu também. Sobraram apenas os poemas que se dão à estampa, havendo suspeita de existir um outro conjunto de versos, “um feixe de ditirambos ao ‘pobre Federico’”, datado do Verão de 1943 e cujo paradeiro se desconhece (a partir da edição de 1976 este conjunto ganha o nome de “Ditirambos hispanos”). Segue-se o estudo de Marília Palhinha, que o prefaciador apresenta como “incansável polígrafa e companheira do poeta, D. Marília Palhinha” e que passará a partir de 1976 a “incansável polígrafa e amiga do poeta, Professora Doutora Marília Palhinha”. Surgem por fim os poemas conhecidos de Cansado, que se manterão ao longo das edições do livro (1961; 1976; 1991) com pequenas alterações, em que sobressaem a introdução de dois novos poemas – um dado por perdido, “Fantasia gramática e fuga (com eco)”, e outro, classificado por Palhinha em 1970 como “belíssimo”, “Poema bão”, restituído por Francisco José Tenreiro pouco antes da sua morte, ocorrida em 1963.

Estamos diante duma grande construção narrativa, com uma personagem central, Nicolau Cansado, a que se associam duas outras não menos cruciais, Araruta Província – primeiro só “fiel depositário” – e a polígrafa Marília Palhinha, depois “Professora Doutora”. As estas, ainda se juntam Papuça de Arrebol, biógrafa de Cansado, e Crocodilo, “pseudónimo literário do Ex.º Sr. Luís de Oliveira Guimarães”, em cujas mãos estiveram os “Ditirambos hispanos”. É por meio das três personagens principais – Cansado, Araruta e Palhinha – que Cesariny irá por um lado parodiar os poemas do Novo Cancioneiro, assim se aproximando e afastando deles, e a inanidade dos discursos académicos e críticos. É todo o sistema literário da época, sem excepção, do coração das academias e das editoras até às margens onde o neo-realismo se esforçava por se fazer notado, que assim aparece teatralizado. Se atendermos às dedicatórias dos poemas que uma segunda nota de Marília Palhinha acrescentou à edição de 1976, temos como destinatários Joaquim Namorado, Francisco José Tenreiro, Fernando Namora e Mário Dionísio, quer dizer, alguns dos principais nomes do Novo Cancioneiro, a que se juntam Casais Monteiro e Ruy Cinatti, poetas anteriores, um da revista Presença e outro dos Cadernos de Poesia, cujos processos e formas os coimbrões pareciam querer repetir sem renovação.

A paródia verbal é a duplicação dum discurso; não existe sem imitação do estilo dum autor ou duma obra. Na paródia há sempre duas realidades discursivas, a original e a glosa que imita. Mas a paródia nunca é só uma duplicação intertextual; é uma duplicação com uma finalidade: produzir o riso, agindo como dissolvente e revelador químico. Para que o riso se instale é preciso que o contraste entre os dois discursos ponha a nu o que há de farsa e de burla, primeiro na glosa e depois, por um efeito de mata-borrão ou de contaminação, no discurso de origem. Toda a paródia é séria até ao momento em que se detecta o seu burlesco. E todo o discurso de origem perde a sua seriedade e a sua inocência a partir do momento em que se detecta a farsa da sua glosa. Nesse sentido os poemas de Nicolau Cansado têm um efeito arrasador. Basta pensar na glosa que é feita ao livro Terra, de Fernando Namora, para se medir a dose letal de veneno que o poeta injectou nos seus versos. Terra fora o livro de abertura do Novo Cancioneiro e tinha só por isso um alto valor simbólico. Leiam-se alguns versos de Nicolau Cansado no poema “Rural” (2017): Como chove Cacilda! Como vem aí o inverno, Cacilda!/ Como tu estás, Cacilda!// Da janela da choça o verde é um prato/Que deve ser lavado, Cacilda!/ E o boi, Cacilda!/ E o ancinho, Cacilda!! E o arroz, a batata, o agrião, Cacilda!/ Já cozeste?// Eu logo passo outra vez,/ Em prosa provavelmente.

Quem era Cacilda? A personagem central do longo poema Terra de Fernando Namora, que, em 24 fragmentos numerados sem título, se arvora em gesta dos seres que se sacrificam pela gleba e não vêem compensado o seu esforço. É um dos brotos que enfia no fado frustrado dessa primeira figura arquetípica do neo-realismo português, Manuel da Bouça, que a podão grosso Ferreira de Castro esculpira no romance Emigrantes (1928). Ora o modo como Cesariny reduz a personagem a um vocativo monótono, triste e enfadonho, Cacilda, e a forma como anula, por meio do mesquinho aburguesar dos indicadores rurais e caseiros, qualquer saída de grandeza épica à história, ridiculariza de forma fatídica a personagem e o discurso que Namora tecera em volta dela. A duplicação discursiva, óbvia a partir do segundo fragmento, o do “Badalão! Badalão!”, cumpre com eficiência a finalidade de contaminar de burlesco o texto primitivo. A réplica expõe as insuficiências ridículas do original e transforma em beco sem saída o caminho por ele aberto em 1941, mesmo que a sem saída deste beco só muito mais tarde se tenha visto, já que o poema só viu a luz em 1961. Esta mesma eficácia se depara nas restantes composições atribuídas a Cansado, todas magistrais e arrasadoras no uso da intertextualização paródica.


Diga-se ainda o seguinte. No início de 1945 o neo-realismo era uma estética muito próxima de vingar na sua versão coimbrã. Não é aqui o lugar para estudar o seu triunfo. Basta saber que os jovens que o rapaz de Lisboa parodiou nesse ano se estavam a impor em todos os sectores como nomes reconhecidos, alguns com longa e premiada carreira diante si, adentro do fascismo e das suas instituições. O que é hoje desconcertante perceber é que a maior resistência ao neo-realismo tal como ele se afirmou na primeira metade da década de 1940 do século XX não veio da direita católica salazarista, nem de poetas conservadores como António Manuel Couto Viana ou Fernando Guedes, mas do interior do próprio neo-realismo. Quem contra ele se levantou com inusitada violência e sarcasmo foram poetas como Mário Cesariny, Pedro Oom, António Domingues e Alexandre O’Neill, que se arregimentavam afinal no mesmo sector político e perfilhavam a mesma orientação estética. É o neo-realismo contra o neo-realismo. Não se julgue que se trata duma guerra de flores e duma disputa surda de influências. É mais sério do que isso. O que se joga é a eficácia dos processos de denúncia que animavam o neo-realismo e eram a sua qualidade essencial. Estes poetas de Lisboa não acreditavam nos meios poéticos usados pelos de Coimbra. Havia mofo a mais para quem se queria novo. Era preciso uma operação cirúrgica, um salto mortal que transformasse o mofo em mofa. As notas publicadas em 1945/46 na revista Aqui e Além são a primeira consciência desse mal-estar, tal como os poemas de Cansado, coevos das notas, são a denúncia dos limites do neo-realismo que então existia e a primeira tentativa séria de ilustração prática duma nova poesia realista construída segundo processos renovados. Pôr o bafio ao ar parece ser o propósito e o primeiro passo dessa renovação. Nos poemas de Cansado a paráfrase destruidora importa assim menos que uma nova mediação que aí surge testada pela primeira vez e que os de Coimbra desconheciam em absoluto – o riso. A ironia, o humor, a sátira, o sarcasmo e a produção do cómico estão de todo ausentes – talvez com a excepção do “Coro dos empregados da Câmara” de Manuel da Fonseca – dos nove cadernos do Novo Cancioneiro (dez pondo na conta o de Políbio Gomes dos Santos, já de 1944). Ora o cómico será a partir daqui o meio mais usado por Cesariny para desenvolver e afirmar o novo realismo.

Observem-se agora os poemas de “Nobilíssima visão”, escritos logo de seguida aos de Nicolau Cansado, se é que não em simultâneo, no momento em que dava à estampa as notações sobre o neo-realismo na revista Aqui e Além, e que acabaram por baptizar um livro, Nobilíssima visão, que teve três edições (1959, 1976 e 1991), além da escolha que integrou a antologia de 1972. Cesariny juntou neste livro, a partir da edição de 1976, a parte mais substancial da sua criação do final da adolescência – os poemas de “Nobilíssima visão”, os de Nicolau Cansado e respectivas notas de Araruta e Marília Palhinha, “Um auto para Jerusalém” e “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos”. A edição assim estabelecida, em 1976, apresenta uma nota introdutória que confirma a elaboração dos poemas em 1945/46 e os reduz a quinze. Daí alguns dos poemas que surgiram na primeira edição do livro, a de 1959, terem sido deslocados para uma secção inicial das edições finais de Manual de prestidigitação (1981; 2005), “Visualizações”, que recolhe composições do tempo do “Romance da praia de Modelo” e de “Políptica de Maria Klopas”.

Com estes quinze poemas, que acabarão na edição final de 1991 por se reduzir a treze, tocamos no coração da poética de Cesariny. É provável que lhe bastassem estes poemas, ou até alguns deles, para ter direito a um lugar arejado e vistoso na poética portuguesa do século XX. Embora os tenha criado em fase temporã da sua evolução, nem sequer fizera ainda 23 anos, idade boa para titubear frases escritas, alguns, como “Pastelaria”, “Rua da Academia das Ciências” ou “Tocando para a Rua Basílio Teles”, acabarão por se tornar na divisa de marca do poeta, fazendo mais pela sua lenda que muito do que se lhe seguiu. Ainda hoje há quem conheça Cesariny como poeta pelos versos de “Pastelaria” e não há recital seu que não os inclua. O mistério nunca esgotado deste poema vem daquela arte poética tão musical como provocadora em que ele logo de início dera provas de mestria com a paráfrase destemida da oração chamada Padre-Nosso. Que dizer de versos assim (2017): Afinal o que importa não é ser novo e galante/ – ele há tanta maneira de compor uma estante. E destes: Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício/ e cair verticalmente no vício. Que são assustadores? Que enfrentam destemidamente o escuro? Até as palavras dos dois primeiros versos parecem tremer de medo do poeta, tanta a firmeza da sua voz e da ousadia em compor com o disparate uma imagem que não podia ser mais certeira. Como é que um poeta que tinha a coragem de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:/ Gerente! Este leite está azedo podia querer fazer das letras e das palavras uma carreira certa?! Estava antes disposto a partir a loiça – ou a corromper o alfabeto. Niilismo? Não, já que o niilismo não sabe rir; é só um repelão sério de desespero. Este poeta tem revolta e grita bem alto que não, e até que nunca nem ninguém, mas ri muito. Que são as paródias de Nicolau Cansado senão comédia e riso?! Por isso fechou a porta da sua “Pastelaria” com aquele riso admirável de quem sabe e gosta/ ter lavados e muitos dentes brancos à mostra. “Rir de tudo” foi a receita que ele entregou ao mundo. Ora pintar o sete, expressão acertada para o que há de feliz no carnaval, é como dizer que no fim da estrada está guardado muito oiro para aquele que o não procurar.


Assim como assim, o poema do livro que mais sobressai nem sequer é essa impertinentemente sábia chamada “Pastelaria”. É no poema “Rua da Academia das Ciências” que uma arte superior se destaca. Sem esse poema nada se sabia hoje das meninas que em Lisboa foram as nossas mães e avós, joaninhas pintadas a vermelho, que ouviam rádio e punham chapelinho de fitas no alto do penteado, que calçavam meia de vidro e sapato preto de salto alto e frequentavam a Faculdade de Letras, então a funcionar na Rua da Academia das Ciências, ao pé de São Bento. Assim, com ele, sabemos que as meninas tinham em vez de olhos “plateias no Liz no S. Luís e no Terrasse”, cinemas lisboetas da época, que em lugar de coração “um saco/ com Jean-Paul Sartre e rendas a cinquenta o metro”, juntando a moda e a capelista, e entre as pernas, no lugar do sexo, “um juiz de paz/ arroz licores outro noivo e gritinhos”. Esse poema tem o valor dum osso de Cuvier. É um sinal prodigioso que chegou até nós de outras eras e com o qual podemos fazer reaparecer espécies e indivíduos que as revoluções e os abalos culturais da segunda metade do século XX fizeram para sempre desaparecer. Só um poeta com alma genuína de criador, cuja arte transmutava em humor o lado mais sombrio da existência humana, podia captar um real tão essencial quanto invisível.

“Um Auto para Jerusalém” é uma das criações mais atípicas de Mário Cesariny. Foi a sua única peça escrita para teatro, se é que se pode chamar teatro à apresentação dum olhar. A peça teve por berço um teatro e só isso é já o bastante para marcar um destino. No Outono de 1946 surgiu em Lisboa uma colectânea de poesia, conto e teatro, Bloco, coordenada por Luiz Pacheco e Jaime Salazar Sampaio. Era mais uma das iniciativas da jovem geração lisboeta que acabara de fazer 20 anos no final da guerra e festejara estrondosamente a queda do nazi-fascismo. A colectânea, logo embolsada pela polícia política, fechava com uma densa narrativa de Luiz Pacheco, então aluno da Faculdade de Letras, na Rua da Academia das Ciências, chamada “História antiga e conhecida” e rebaptizada depois “Os doutores, a salvação e o Menino”. Tratava-se dum ardil efabulador, ou duma alegoria cheia de malícia moral, sobre a situação política portuguesa. A chave da salvação, que deitaria pela borda fora o velho tirano Herodes de quem todos se queriam livrar sem que ninguém soubesse como, estava na inocência da geração nova, não na doutrina dos doutos e dos sensatos, que falavam a medo e não se dispunham a perder privilégios. Passada num recanto da Palestina antiga com Romanos e Judeus, a história era afinal uma parábola bem conhecida dos portugueses do presente.

Nada podia agradar mais ao poeta que estava a escrever os versos de “Nobilíssima visão” e que tinha um conflito edipiano com a autoridade do pai e do chefe e para quem a finalidade última da vida era a brancura admirável do sorriso. “Rua Primeiro de Dezembro”, um poema desse seu livro, tem um conciliábulo de pássaros no Café Portugal que parece a versão zoológica que um poeta era capaz de dar da sensatez. Dois pica-paus picam com entusiasmo na “dita dura dura que não dura” e nós ouvimos nesses versos o picar inane do bico no pau; um senhor avestruz engole uma pratada de ovos, enquanto um pássaro cantor diz que tem pena, o que até era verdade duas vezes. Tudo era escusado para estas aves simbólicas, salvo bicar entre dentes, lastimar-se e comer – como sucedia afinal com os doutores de Luiz Pacheco. Cesariny dedicava-se nesse tempo ao círculo coral de Fernando Lopes Graça, então rebaptizado “Amizade”, e que logo ao fechar da guerra, com a fundação do M.U.D., ganhara grande projecção, fazendo actuações em salas associativas de Lisboa e arredores. Foi numa dessas actuações que Cesariny conheceu, nos primeiros dias da criação do M.U.D., no Verão de 1945, Alexandre O’Neill, nascido em 1924, e que frequentava uma roda de rapazes estudantes e empregados que se juntava num Café da Avenida da República, A Cubana, e que logo confraternizou com o grupo do Café Herminius.

Um dos pontos, até pela localização, onde o grupo coral de Lopes Graça cantava com regularidade era a sala do Grupo Dramático Lisbonense, que tinha sede na Rua Marcos Portugal, não longe do Jardim do Príncipe Real e estava também ligado aos círculos mudistas. A ligação entre os dois grupos tornou-se tão estreita que o grupo coral de Lopes Graça se tornou o Coro do Grupo Dramático Lisbonense. Conhece-se carta de Cesariny para Cruzeiro Seixas (8[18]-9-1946) marcando-lhe encontro, para “sarau”, na sala do grupo cénico. Ora foi nesta sala, pouco depois da saída de Bloco, que Mário Cesariny conheceu Luiz Pacheco. Corria nessa noite uma peça em um acto de Pedro Serôdio, pseudónimo de Avelino Cunhal, pai de Álvaro Cunhal, “Naquele banco”, escrita em Março de 1944 e pouco depois vinda a lume na revista Vértice (n.º 48, Julho, 1947). Um dos intérpretes era António Domingues, o mesmo que andava no grupo do Herminius e vinha da escola de artes decorativas. Cesariny estava presente e Luiz Pacheco também. No final da representação, Cesariny abordou o jovem editor de Bloco e disse-lhe que lera o seu conto do Menino Jesus e que gostara, se revira nele. Sabendo que a colectânea Bloco fora apreendida pela polícia política, começara então a escrever uma peça teatral tirada do conto.

“Um auto para Jerusalém” nasceu assim à sombra dum teatrinho, o do Grupo Dramático Lisbonense, e duma pecita de alfaiataria neo-realista, a do velho Avelino Cunhal. Atendendo a que um dos seus amigos próximos, António Domingues, deu corpo a um dos protagonistas do diálogo, é de crer que Cesariny tenha tido algum papel na música que acompanhou a representação. Não é ainda de excluir – a imprensa da época não deu notícia do evento – a intervenção do coro do grupo cénico no espectáculo. Todavia, a peça do jovem Cesariny nada tem a ver com o teatro de Pedro Serôdio e Romeu Correia, exemplos da influência neo-realista, ao menos desse que Cesariny chamava “populismo”, na literatura dramática da época. É até possível que aquilo que tenha agradado ao autor do “Auto” na fábula que fechava Bloco fosse a soberana indiferença, que nada perdia de irreverência afirmativa, com que tratava os tópicos da narrativa neo-realista, então em plena afirmação com a colecção coimbrã Novos Prosadores. A trama de Luiz Pacheco, que cruzava uma inteligência simbólica rara com uma atitude de impertinência nada espalhafatosa, era para quem acabara de escrever os poemas de Nicolau Cansado uma atracção irresistível. Ligado por laços de sangue a um grupo teatral no activo, não surpreende que Cesariny tenha então farejado um instinto cénico fatal ao fio da narrativa, porventura na esperança duma representação próxima.

Que similitudes e que diferenças se encontram no trabalho de Cesariny e no de Luiz Pacheco? Ambos são um apelo velado mas muito perceptível à luta contra a ditadura de Salazar em nome da verdade e da irreverência da inocência. Daí a mediação que ambos fazem dum ponto da história bíblica, o confronto entre Menino Jesus e doutores da lei. Querem os dois afirmar aí a força irrepetível da juventude, que é pureza, acção, certeza e vitória. E ambas têm um segundo nível de leitura: o psicanalítico. A luta contra o ditador é também a luta contra o pai autoritário e o complexo de Édipo. A novidade está na introdução duma figura marcada pela história recente e por uma carga simbólica iniludível – o Homem da Gestapo, que surge como o representante da ordem patriarcal, substituindo na peça os meros legionários romanos da narrativa de Luiz Pacheco. Outra novidade é a morte do Homem da Gestapo em palco, varado em cheio pelo porteiro do “Académico-Clube dos sábios de Jerusalém”. Essa é talvez a boa nova de Cesariny, já que na fábula de Pacheco a resistência aos centuriões não surte efeito e acabam todos presos. A morte em palco do representante da ordem patriarcal tem assim um efeito catártico e um sentido afirmativo do valor da revolta – isto na versão primitiva, vinda a lume em 1964 (um fragmento, só com a abertura, saíra na antologia de 1961), calcula-se que em forma muito vizinha da que foi escrita no Outono de 1946, sendo de imediato proibida de circular pela censura. Nas reedições, em Nobilíssima visão (1976; 1991), já ulteriores à primeira representação da peça pelo Grupo Sete, com encenação de João d’Ávila, em Março de 1975, Cesariny embutiu uma cena nova em que convoca Salomé, a sobrinha de Herodes Antipas, porventura a mais marcante figura do imaginário decadentista, e introduziu algum cepticismo na questão da morte do pai e da autoridade. Enquanto na versão de 1964, escrita no final de 1946, em altura afirmativamente combativa, o Homem da Gestapo cai e não se levanta, em 1976 e 1991, ele cai para no final se erguer e abandonar o palco pelo seu pé ou, pior, nele permanecer erguido, mostrando assim que está pronto para novo episódio. O novo final é um sinal de descrédito na morte do pai autoritário e dos seus representantes.

Assinale-se por fim a presença duma instância dramática inovadora, o Orador, que lá está desde os tempos em que o rapaz do coro de Lopes Graça acompanhou a peça de Pedro Serôdio. É uma instância ambígua, que manobra em momentos estrategicamente decisivos a acção em sentido inverso à intenção do autor, criando um efeito de estupefacção e de simpatia no espectador, ao mesmo tempo que deixa suspensa a ideia duma entidade dupla, não autoral, que participa na criação poética. A manobra abre uma parte dos bastidores da construção da peça, que cria assim a ilusão de estar a ser feita no momento em que está a ser representada. O caso mais flagrante e eficaz é aquele em que ele, Orador, proíbe a ordem de prisão que o Homem da Gestapo dá aos doutores, negando e contrariando as indicações e as intenções do autor na peça. Nesse momento o Orador deixa de ser um mero e obediente contra-regra que está dentro da peça enquanto personagem igual a todas as outras para se tornar numa instância dialógica de comando das suas acções. O Orador acaba aqui por funcionar como uma voz das intenções mais fundas do autor, mesmo que à superfície o pareça contrariar. O estratagema desta oposição, autor contra autor, é ainda uma forma de afirmar a força do improviso. A liberdade – o sentido libertário da História contra a autoridade do pai e do tirano – está acima de qualquer guião feito e a todo o momento pode irromper.

“Um auto para Jerusalém” marcou o início das relações entre Mário Cesariny e Luiz Pacheco, relações que virão a ter importância crucial nas duas décadas seguintes. Uma ligação que nasceu tão cativa da criação e tão promissora de admiração mútua não podia senão dar uma grande paixão – ou ódio ou amor. Por ora importa dizer que o melhor fruto dessa relação, a reactivação do abjeccionismo no início da década de 60, tem talvez aqui, no conto e na sua interpretação dramática que puxa ao extremo o sentido anti-patriarcal do original, a sua mais vetusta raiz. Nada há de melhor para perceber as erupções do abjeccionismo na segunda metade do século XX português que o lema contraditório mas eficaz sob o qual Cesariny então trabalha – o neo-realismo contra o neo-realismo. E com ele alinha todo uma geração lisboense, a da Escola António Arroio, a que se junta depois a do Bloco, que aceita os supostos gerais do neo-realismo, antes de mais a denúncia humana, mas se mostra desagradada dos caminhos estéticos que estão a ser traçados e trilhados pela geração já anterior – a do Novo Cancioneiro e a dos Novos Prosadores, firmada na primeira metade da década de 1940.


Veja-se por fim o poema “Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos”. Dos quatro livros incluídos nas duas edições de Nobilíssima visão (1976; 1991) – os poemas de “Nobilíssima visão”, os de Nicolau Cansado e respectivas notas, “Um auto para Jerusalém” e “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos” – a última composição terá sido uma das derradeiras a sair ao papel, embora a primeira a ser dada em letra impressa e uma das mais editadas do poeta (duas edições no ano de 1953, com reprodução facsimilada em 2008; reedições nas antologias de 61 e 72 e em Nobilíssima visão, 1976 e 1991, aqui com versos novos no final – 17 em 76 e 19 em 91). Se bem que incompleto, já que os versos finais se perderam, Cesariny tomou este poema com mais de 150 versos como “despedida da teorética neo-realista” (“Tábua”, Mário Cesariny, 1977). Daí a ideia de que o poema foi o derradeiro escrito sob o influxo do neo-realismo. Não terá sido tanto assim e tudo leva a crer que a sua data de feitura coincide com a construção do poema dramático tirado da narrativa de Luiz Pacheco, se é que não é anterior até, tendo em atenção que o seu motivo final, o homem que ao virar da esquina cola cartazes com a frase “Vota por Salazar”, se inspira nas eleições para a Assembleia Nacional que tiveram lugar em Dezembro de 1945 e às quais a oposição decidiu não concorrer. Sobre o ano da composição do poema, o quinto verso, “estamos no ano da graça de 1946”, desfaz qualquer dúvida mas nada adianta para o mês ou para a estação. Embora provisoriamente, datamo-lo do final de 1946, período ainda da confecção de “Um auto para Jerusalém”, aqui sem qualquer incerteza, pois a colectânea Bloco só foi distribuída no segundo semestre do ano. Outra indicação sobre o momento da feitura do poema encontra-se na “nota do autor” acrescentada em Janeiro de 1953 à primeira publicação, onde diz que “o poema é já antigo”. Por pouco que isto diga, e de feito nada diz sobre a sua datação, chega para se aceitar que sete anos após a sua feitura o autor o publicou tal como o fabricou.

“Despedida da teorética neo-realista” disse dele o autor, juntando que “em realidade abjecta, não há nada para reabilitar, sendo a única estrada de fortuna a da vagabundagem social, moral e política” (idem, 1977). Se é que um tal adeus ao neo-realismo é possível no caso de alguém que esteve sempre sem estar, ou estando contra, esse adeus é também um dar costas ao futurismo e ao que neste havia de exaltação do dinamismo moderno e do movimento urbano. O poema é ou começa por ser um registo do acordar urbano, mas vazio e desprezível, não merecendo qualquer entusiasmo da parte do sujeito, que o vê desfilar ao seu lado com uma displicência e um cansaço que significam negação. Talvez não se tenha ainda entendido o letreiro geral do poema e o que nele a palavra “simplificação” pode querer dizer. Atendeu-se mais ao “louvor” que o poema também é, mas de forma discreta e até enganadora. E não digo enganadora só em relação ao “martiriológio” de Fernando Pessoa, já então aberto e já então merecedor dalguma desconfiança por parte de Cesariny, mas em relação a essa realidade que todos exaltavam com nota épica. Daí que as leituras realistas do poema, puxando ao deslumbramento de Cesário Verde e o que nele passou para Campos, deixem fugir o movimento de decepção que nele se instala, muito mais escuro e desesperado. É nesta segunda linha que a “simplificação” se manifesta. Aqui simplificar quer dizer negar, secar, esterilizar. Não pode haver lugar habitável numa realidade legada por um colectivo castrador. Nenhuma profissão é possível, nenhuma forma de colaboração aceitável; só a revolta, tal como se vive em “Pastelaria”, é caminho. Depara-se aqui com a situação de Antero depois de concluir o curso de leis em Coimbra mas incapaz, ao invés dos amigos próximos, de se arrumar num emprego, numa família, num nome, numa carreira pública. Falto ao escritório, pontualmente, todas as manhãs – afirma o sujeito do poema, para dizer que nunca lá foi nem pensa ir. E não foi. O único trabalho pago que teve e de que até nós chegou notícia foi como monitor num colégio de rapazes em Estremoz, o Colégio Estremocense, no Outono de 1949, e não chegou a durar dois meses, acabando em escândalo e sarilho.

Como ver no poema a “simplificação”? Ela está patente no seu coração, no ponto nevrálgico da circulação do seu sangue que se espalha depois por todos os vasos. Refiro-me aos seguintes versos (2017): (…) a gente – certa gente – sai para a rua,/ cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória/ e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!/ Contudo e já agora penso/ que os gatos são os únicos burgueses/ com quem ainda é possível pactuar –/vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!/ Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a…/ Não, a probabilidade do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato/ mas de gato para cima – nem pensar nisso é bom! Eis o gato em todo o seu rigor! Ele comparece pela primeira vez nos versos de Cesariny para indicar o desprezo que a realidade herdada lhe merece e para sinalizar a desfaçatez que é preciso ter para conviver com ela – a mesma que lhe faz gritar bem alto e sem vergonha, “Gerente! Este leite está azedo!” Cesariny, futuro autor do Jornal do Gato (1974), acabou de descobrir o seu totem, a sua máscara, o seu animal de identificação. O gato, do alto do seu silêncio, despreza e goza a sociedade do dinheiro – bicho sobranceiro que repudia as obrigações e os direitos da sociedade patriarcal.

A mediação zoológica é muito significativa da situação de Cesariny e da sua geração lisboeta. Este gato tanto é a consciência da falta de saída da sociedade burguesa, que arrasa a vida autêntica e a subordina à escravatura do trabalho e do lucro, como da situação daqueles que a contestam. Há um poema de Nicolau Cansado, “Raio de Luz”, que começa Burgueses somos nós todos, onde nem gato nem rato escapam às malhas do burgo. O poema, o derradeiro da edição de 1961, chegou a ter, na primeira edição de Nobilíssima visão (1959), um outro título, “Litania para os tempos de revolução”. Cansado é aquele que, nas palavras da sua estudiosa Palhinha, “abandonou as concepções burguesas sem para isso ter mudado de vida” – ou sem para isso, aqui se junta para melhor esclarecer. Escreveu por isso um poema, “Reabastecimento” em que se atesta de povo, em dia de folga, uma vez por semana. Assim (2017): Vamos ver o povo/ Hop-lá!/ Vamos ver o povo.// Já está. Nos restantes dias, Cansado pode dedicar-se à sua vida de burguês sem preocupações e sem pensar mais no assunto. O povo é assim uma nova espécie de missa redentora em que se vai comungar ao domingo, dia em que todos os homens são irmãos. Nos outros não faz mal vê-los através da lente de Hobbes – o homem lobo do homem. Este tipo social que se atesta de povo uma vez por semana visa o neo-realista do Novo Cancioneiro, todo de estrato burguês, e tem mediação zoológica num poema de “Nobilíssima visão”, antes citado – é a passarada que se empoleira em Lisboa, nas traseiras do Rossio, no Café Portugal, a matraquear o vazio e a comer pratadas de ovos. O novo mediador, o gato, está já um passo além deste aviário domesticado. Fala pouco, não come à mão, ataca de surpresa, salta destemido. Desconfiado, crítico, assanhado, dá de costas ao mundo e foge para cimos inacessíveis. É o aristocrata das alturas. “Miando pouco, arranhando sempre, não temendo nunca”, como dele disse um dos seus geniais criadores – Fialho de Almeida.

De resto o bestiário do poema vai além do gato e do aviário. Rastejam por lá uns répteis de patas curtas, pele dura e resistente, cauda adequada à natação, cabeça mais comprida que larga, boca funda e elástica, maxilas fortes e dentes de aço. São os hidrossáurios que ao domingo, de ar satisfeito e feliz, vão à missa e passam os restantes dias a rastejar nos corredores dos bancos da Baixa e das avenidas novas, com a bocarra escancarada e a serrilha ameaçadora dos dentes à mostra. A antropofagia não é um estádio cultural das eras primitivas e transactas, que uma civilização mais benévola e inteligente substituiu por novas e mais humanas formas de convívio. O seu princípio – homo homini lupus – nunca esteve tão activo como hoje. A concorrência dos mercados nada mais é do que o instinto antropofágico da humanidade levado ao seu derradeiro estádio de perfeição. A economia de mercado é a forma mais eficaz dos homens se devorarem entre si. Esses sáurios que surgem no poema de Cesariny – “crocodilos a rir em corredores bancários” diz ele – são tão reais como o crítico gato, o ovíparo de café e o insecto proletário.

 Percebe-se agora melhor o que o título do poema tem de armadilha. É que nem sequer se louva no seu longo curso um engenheiro formado em Londres e que se aguentou menos mal na vida moderna. Pede-se-lhe tão-só de empréstimo uma toada desenvolta, que ele próprio afinal já pedira ao velho bardo das multidões, Walt Whitman, aqui redivivas numa manhã da Lisboa de 1946 e no voto de um barco para o Barreiro. O louvor vai todo noutra direcção. Se louvor há, esse é para Mário de Sá-Carneiro, a quem é dedicada na íntegra a sétima estrofe do poema, talvez a mais calorosa e exaltante do todo. Quem é Sá-Carneiro? O “Poeta-gato-branco à janela de muitos prédios altos”. É o rei dos gatos, o aristocrata dos cimos, já que foi ele quem, pondo termo à vida, mais desprezou a prova do dinheiro, a “indecorosa licenciosidade comercial”. Merece por isso a vénia funda do sujeito: bravo e bravo, isso mesmo, tal e qual!/ Fizeste bem, viva Mário!, antes a morte que isto.

O suicídio é uma linha de terra e de fogo que esteve sempre muito cerca da poesia e da vida de Cesariny. Se ficou e não se foi embora bem cedo, como Sá-Carneiro, foi porque tinha no humor um dispositivo de defesa muito afinado. Foi a orgânica do riso que lhe permitiu sobreviver às humilhações paternas e ditatoriais sem perder ardor e agilidade. O riso é o estado de graça da humanidade. Sem o sentido que o provoca, a vida torna-se um peso tão grande que só a pressa da morte se justifica. Ora Mário Cesariny tinha sentido de humor bastante para brincar com o seu próprio suicídio. A grande e negra tragédia que os amigos sempre esperaram dele, ao modo de Antero e de Sá-Carneiro, nunca chegou a acontecer.

 

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É altura de fazer um balanço geral deste primeiro período neo-realista de Cesariny. A sua criação poética, as palavras que ele escreve são impublicáveis. Tirando o restrito círculo dos seus amigos, ninguém as aceitaria. Cesariny, que tinha atrevimento suficiente para desafiar o pai e o chefe, parece não ter ousado dar a lume poemas como os de Nicolau Cansado. Só se atreveu a levantar o véu e a mostrar os poemas já na década de 60, quase 20 anos depois de os escrever, numa época em que o vozeado em torno do neo-realismo subira já o tom. O efeito dos poemas de Cansado na vida cultural portuguesa de 1945 teria dado histerismo ou pancada. O seu autor acabaria proscrito nas fileiras de que não queria sair. A sátira seria tomada por calúnia. A sua vida, o entusiasmo de que era capaz e sem o qual não sabia viver, estava no grupo coral regido por Lopes Graça e na militância política que esse círculo desenvolvia. Todo o sentido da vida do jovem Mário se concentrava no trabalho do coro e na acção do anti-fascismo. No seu processo da PIDE que está na Torre do Tombo existe alusão a espectáculo que o grupo deu na Outra Banda, em Almada, na recreativa Incrível Almadense, a 8 de Abril de 1946. No cacilheiro, com o bater das ondas, cantaram a Marselhesa e a Internacional. Este espírito de desafio, este arrojo franco e aberto era a única carta capaz de inebriar um rapaz que só sabia viver quando sentia pulsar o entusiasmo. Nem mesmo a troco dos seus versos, ele estaria então disposto a perder esse trunfo e a cair em desgraça junto do seu grupo.

A militância política e os deveres para com o grupo, mas também a paixão que então tinha pela música, terão por certo sido razão bastante para se aguentar poeta inédito. Não teve nem podia ter pressas, tanto era o perigo que punha nos seus versos. Mais tarde lamentará estas razões e o açaime que elas lhe armaram. Preferiu assim publicar os textos críticos que o leitor já conhece e que o mostravam um anódino e entusiasta paladino da arte humanista – embora com novidades singulares que podiam deixar de pé atrás os mais avisados e que transformam o seu neo-realismo num momento muito pessoal e genuíno que não se confunde a qualquer outro dentro do movimento em Portugal.

No momento em que concebe o “Louvor e simplificação”, inicia uma carreira de crítico musical na revista Seara Nova, que durará de 16 de Março de 1946 a 12 de Abril de 1947 e que no fundo dá continuidade aos textos críticos anteriores. É uma faceta muito mais aceitável para um militante anti-fascista da época e que pode até ser dada por modelo. Desta vez surge debaixo da asa de Lopes Graça, responsável pela secção musical da revista. Publica 13 textos na revista, sete dedicados aos programas de “Sonata”, concertos de música erudita moderna promovidos por Lopes Graça em salas de Lisboa, e os restantes a motivos musicais, entre os quais sobressai o estudo que consagra ao Mestre, “Fernando Lopes Graça e a música portuguesa” (Seara nova, n.º 994, 31-8-1946), que chega para provar que na transição de 1946 para 47 a relação de discipulato do autor dos poemas de Nicolau Cansado para com o Mestre se mantinha e podia estar mesmo no auge.

Não tardaria, porém, a declinar e a desaparecer para sempre, o que significou também o fim da música na vida de Cesariny, porque entre Abril e Maio leu por indicação de Alexandre O’Neill o livro então recente de Maurice Nadeau, Histoire du Surréalisme, que lhe revelou que o movimento de André Breton era o caminho que ele procurava, até quando formulava a sua tese crucial sobre o novo realismo em Portugal enquanto procura e conquista dum novo real, mais absoluto e exaltante do que o real conhecido e sensível. Assinala-se aí pela primeira vez a presença do surrealismo na vida e na criação de Mário Cesariny, que logo desandou nesse Verão de 1947 para Paris, ansioso por bater ao postigo de André Breton. Mas o surrealismo de Mário Cesariny, a sua ida para Paris no Verão de 1947 e o seu encontro cara a cara com André Breton são outros contos, que têm de ficar para outra altura.

 

Bibliografia

Livros de M. Cesariny

Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano, Lisboa, Contraponto, s/d [1952].

Louvor e simplificação de Álvaro de Campos, Lisboa, Contraponto, 1953; 2ª ed. (com nota de António Ramos Rosa sobre o realismo do poema), Contraponto, Dezembro, 1953 [edição fac-similada das duas edições, Fundação Cupertino de Miranda/Assírio e Alvim, 2008].

Nobilíssima visão, Lisboa, Guimarães Editores, 1959.

Poesia (1944-1955) [contém: “A poesia civil” (“Políptica de Maria Koplas, dita mãe dos homens”, “Nicolau Cansado escritor”, “Um auto para Jerusalém”, “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos”); “Discurso sobre a Reabilitação do real quotidiano”; “Pena capital”; “Estado Segundo”; “Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor”], retrato do autor por João Rodrigues, Lisboa, Delfos, 1961.

Um auto para Jerusalém [peça dramática extraída duma narrativa de Luiz Pacheco, 1946], Lisboa, Minotauro, 1964.

Burlescas, teóricas e sentimentais [(antologia) contém: “A poesia civil (1942-1944) – “Burlescas, teóricas e sentimentais (“Loas a um rio”, “Romance da praia de Moledo”, “Políptica de Maria Koplas dita mãe dos homens”, “Outros poemas”)”; “Nobilíssima visão” (1945-1946), “Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor” (1947-1954); “Pena capital” (1948-1956); “Planisfério e outros poemas” (1958-1960); “A cidade queimada” (1964)], Lisboa, Presença, 1972.

As mãos na água a cabeça no mar [reunião de artigos, reflexões e notas], Lisboa, edição de autor, 1972; 2.ª ed. [muito acrescentada], Lisboa, assírio & Alvim, 1985; 3.ª ed., Porto, Assírio & Alvim, 2015.

Nobilíssima visão [contém: “Nobilíssima visão” (mexidas significativas); “Nicolau Cansado escritor”, “Louvor e simplificação de Álvaro de Campos”, “Um auto para Jerusalém” (mexidas significativas)], Lisboa, Guimarães Editores. 1976; 2.ª ed., título alterado [Nobilíssima visão (1945-1946); os mesmos livros revistos e alterados], Lisboa, Assírio & Alvim, 1991.

Manual de prestidigitação [contém: “Burlescas, teóricas e sentimentais” (“Burlescas, teóricas e sentimentais”, “Políptica de Maria Koplas dita mãe dos homens”, “Cantiga de S. João”)” (1942-1944); “Visualizações” (1942-1944); “Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano” (1947-1952); “Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor” (1947-1954); “Manual de Prestidigitação” (1949-1956)], Lisboa, Assírio & Alvim, 1981; 2.ª ed. [revista], Lisboa, Assírio & Alvim, 2005; 3.ª ed., Biblioteca Editores Independentes, 2008; 4.ª ed., Porto, Assírio & Alvim, 2017.

Poesia [contém: “Manual de prestidigitação” (ed. 2005); “Nobilíssima visão” (ed. 1991 – com alterações do editor e saída de poemas); “A cidade queimada” (ed. 2000);], edição, prefácio e notas Perfecto E. Cuadrado, fotografia na capa Eduardo Tomé, Porto, Assírio & Alvim, 2017.

 

Dispersos de M. Cesariny

“O artista e o público” [assinado Mário Cesariny de Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 30-6-1945.

“Futurismo e Cubismo I” [assinado Mário Cesariny de Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 21-7-1945.

“Futurismo e Cubismo II” [assinado Mário de Vasconcelos (sic)], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 29-7-1945.

“Aprendizagem na arte” [assinado Mário Cesariny de Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 18-8-1945.

“Orozco” [assinado Mário Cesariny de Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 15-9-1945.

“Carácter duma pintura nova” [assinado Mário Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 6-10-1945.

“Nota sobre 3 músicos” [assinado Mário de Vasconcelos], Porto, A Tarde – suplemento “Arte”, 20-10-1945.

“Notas sobre o neo-realismo português” [assinado Mário de Vasconcelos], Lisboa, Aqui e Além – revista de divulgação cultural, n.º 3, Lisboa, Dezembro, 1945.

“Notas sobre o neo-realismo português (conclusão do número anterior)” [assinado Mário de Vasconcelos], Lisboa, Aqui e Além – revista de divulgação cultural, n.º 4, Lisboa, Abril, 1946.

“XXI Concerto de Sonata” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 16-3-1946.

“XXII Concerto de Sonata” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 20-4-1946.

“XXIII Concerto de Sonata” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 25-5-1946.

“Concerto de Sonata no Instituto Francês e no Salão de Festas “O Século” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 1-6-1946.

XXV Concerto de Sonata e I Concerto de Orquestra Sinfónica J.U.B. A.” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 13-7-1946.

“Fernando Lopes Graça – Música Portuguesa” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 31-8-1946.

“Gravitação na Música Portuguesa” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 26-10-1946.

“Música” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 30-11-1946.

“XXVII Concerto de Sonata” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 1-2-1947.

“Sociedade Nacional de Belas-Artes – Canções Populares Portuguesas” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 8-2-1947.

“Música de Jazz” [assinado Mário César; é um dos mais curiosos textos da época, a coincidir com a aproximação ao surrealismo], Lisboa, Seara Nova, 29-3-1947.

“XXIX Concerto de Sonata no Salão de Festas de “O Século” – Sequeira Costa no Tivoli – No Tivoli: Benjamino Gigli” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 12-4-1947.

“Fernando Lopes Graça em França – XXX Concerto de Sonata na Sociedade Nacional de Belas-Artes” [assinado Mário César], Lisboa, Seara Nova, 26-4-1947.

 

Outra de M. Cesariny

“Prolegómenos ao aparecimento de dadá e do surrealismo”, in A intervenção surrealista [textos, pinturas e fotogramas], orientação gráfica e capa de Cruzeiro Seixas, Lisboa, Ulisseia, 1966; 2.ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim, 1997.

Mário Cesariny [com cronologia inicial elaborada pelo autor, “Tábua”, e textos de Raul Leal, Natália Correia e Lima de Freitas], Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1977.

Escola de Artes Decorativas António Arroio, “Processo individual do aluno Mário Cesariny de Vasconcelos (1935/1942)”.

PIDE (1945-1972), SC, Reg. 130498, NT 8059; SC, Ci(1), 2884, NT 1252; SC, E/GT 4939, NT 1609; SC, DPI 90-58/59 NT 6650; Del. P, PI 22401, NT 3807. 

 


ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | Poeta, ensaísta, editor. Nasceu e cresceu em Lisboa, num dos mais vetustos bairros da cidade, a Graça, em 1956. Aos sete anos foi aluno de Alice Gomes. Há quase quatro décadas que está ligado ao ensino público, onde se esforça por desaprender muito do que lhe ensinaram. Coordena, edita e dirige desde 2012 a revista de “cultura libertária” A Ideia, que se publica desde 1974 e onde Mário Cesariny colaborou em vida. Tudo o que procura é poder inscrever no seu registo o que um inspirado escritor francês mandou gravar na sua lápide: Je cherche l’or du temps.
 

 

 


TRAVIS SMITH (Estados Unidos, 1970) | Artista gráfico conocido por diseñar carátulas de álbumes para bandas de heavy metal. El periódico Chronicles of Chaos lo considera sin duda uno de los artistas gráficos más talentosos del heavy metal actual. Entre 1998 y 2022 ha realizado más de 100 proyectos gráficos completos (no solo las portadas) para varias bandas de heavy metal, incluyendo Devin Townsend, Katatonia, Nevermore, Opeth, Anathema, Black Crown Initiate, Soilwork, King Diamond, Novembre, Avenged Sevenfold, Strapping. Young Lad, Perséfone, Riverside y Overkill. La base de su trabajo consiste principalmente en la creación completa del arte de cada álbum. Es conocido por un estilo oscuro e introspectivo que se basa en gran medida en la fotografía, compuesta digitalmente con varios otros medios. También se utilizan texturas acrílicas, así como acuarelas, pasando por un proceso de digitalización y posterior superposición sobre matrices fotográficas. Tenerlo con nosotros como artista invitado es una forma de reconocer la belleza de su creación. En una breve conversación, nos autorizó a utilizar todo este material.

 



Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 13

Número 212 | julho de 2022

Artista convidado: Travis Smith (Estados Unidos, 1970)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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