quarta-feira, 24 de agosto de 2022

MÁRCIO CATUNDA | Conde de Lautréamont e a grande árvore do maravilhoso

 


Isidore Ducasse nasceu no dia 4 de abril de 1846, em Montevidéu. Depois de haver estudado cinco anos nos liceus de Tarbes e de Pau, na região dos Pirineus, o jovem uruguaio, que adotaria o pseudônimo de Conde de Lautréamont, deixa os Pirineus e chega a Paris, no ano da morte de Baudelaire, para estudar na École Polithecnique, a antiga casa de instrução, situada no quartier Latin, onde a rue Descartes se encontra com a rue de la Montagne de Sainte-Geneviève. O pai, cônsul francês em Montevidéu, mandava ao filho dinheiro por intermédio do banqueiro Darasse, para pagar os estudos, a alimentação e a moradia no hôtel de l’Union des Nations, na rue Notre-Dame des Victoires, nº 23, no quartier de la Bourse, sua primeira residência em Paris, a partir de 1867.

Constatei que a numeração da rua Notre-Dame des Victoires é caótica, saltando números, mas encontrei o edifício que fica no encontro triangular entre a rue Notre-Dame des Victoires, a rue Montmartre e a rue Saint-Marc. Creio que o local foi reformado, pois tem a fachada sem ornamentos, diferentemente dos prédios vizinhos, que têm molduras com frisos ao redor das janelas, estilo de decoração mais antigo e mais característico do século XIX.

Isidore Ducasse escrevia todas as noites, até de madrugada, depois de dedilhar alguns acordes nas teclas do piano. Era alto, magro e moreno, cultivava um bigode fino e vestia-se com roupas escuras. Tinha profundas olheiras, causadas pelas horas irregulares de sono, em razão do consumo de ópio. Publicou, em 1868, 20 exemplares do Canto Primeiro das confissões do espantoso Maldoror, que lhe valeram o epíteto de discípulo de Baudelaire e o efusivo elogio de Victor Hugo. Depois do seu primeiro endereço parisiense, Isidore mudou-se diversas vezes para lugares próximos uns dos outros, no mesmo quartier.

Em fevereiro de 1870, estabeleceu-se no faubourg Montmartre, 32. Um mês depois, foi morar na rue Vivienne, nº 15, e, finalmente, no faubourg Montmartre nº 7, seu último domicílio.

A morada do número 32, esquina com a rue Richer, é um edifício de cinco andares, com balcão e grades no segundo pavimento. Apresenta um aspecto decadente e janelas empoeiradas, carentes de pintura. Funciona, no térreo, uma farmácia, e, no segundo andar, o hôtel Jeff, de duas estrelas. Está localizado quase em frente à passage Verdeau.

Algumas quadras acima, na direção norte de Montmarte, situa-se a igreja de Notre-Dame-de-Lorette, de onde foi conduzido o féretro do poeta para sepultamento. Lautréamont faleceu aos 24 anos de idade, depois de escrever os assustadores Cantos de Maldoror.

Isidore Ducasse frequentou os prostíbulos e as tabernas extravagantes que havia nas imediações. Foram também seus refúgios, no mesmo bairro de Montmartre, o café des Varietés, na esquina da passage des Panoramas, e o café Vernon, entre a rue Vivienne e a passage des Panoramas. Naquela área encontrou seus editores, dois cidadãos belgas que possuíam uma grande livraria na rue Vivienne. Desse endereço, escreveu carta, no dia 12 de março de 1870, ao Sr. Darasse, gerente da conta bancária de seu pai, indagando se teria chegado o dinheiro com que pagaria ao livreiro Lacroix, no valor de 1200 francos, referentes à edição completa de Les chants de Maldoror, que ele assinaria com o pseudônimo de Conde de Lautréamont. Nessa missiva, ele se declara leitor de Corneille e de Racine e critica a literatura de Lamartine, Hugo e Musset. Considera que tais autores se metamorfosearam em “femmelettes” e os chama de “Les Grandes-Têtes-Molles de notre époque”. Afirma que reformou o seu estilo e promete que, doravante, só escreverá sobre a esperança, a calma, a felicidade e o dever. Essas declarações constam também em seus cadernos inéditos, sob o título de Poésies.

 


A respeito de Lautréamont pouco se sabe. Sabe-se, no entanto, que passeava, ébrio de beladona, pela rue Vivienne, em direção ao Palais-Royal. Depois de cada noite em que sorvia infusões de beladona, ao escrever o assombroso Maldoror, era o jardin du Luxembourg o seu lugar predileto, onde ele chegava sempre, depois de almoçar no café de Vernon ou no café des Varietés e caminhar pela rue Vivienne. Aliás, foi nessa rua que o sinistro Maldoror avistou, nas proximidades da Biblioteca Nacional, Mervyn, o filho da loura Inglaterra e colocou o corpo do rapaz numa bolsa para, em seguida golpeá-lo no parapeito da Pont du Carrousel. Não contente de cometer tal atrocidade, Maldoror lança aquela trouxa da place de Vendôme pelo espaço, indo o insólito embrulho cair sobre a cúpula do Panthéon.

Depois de registrar a sua noturna peripécia imaginária, o poeta passeava pelo magnífico jardim, cujo palácio é a sede do Senado da França. Sentia o aroma das plantas e deslizava o olhar pela folhagem dos castanheiros, bebendo, à límpida luz, os matizes verdes. Só assim curava a sua revolta de cantor das dores do mundo. Sua repugnância geral foi expressa nos Cantos de Maldoror, esse anti-herói, indignado, que defendia apenas as prostitutas e um hermafrodita.

Ele gostava igualmente do jardin des Tuileries, onde concebeu, no segundo canto de Maldoror, o encontro do seu sinistro personagem com um menino de oito anos. Nesse trecho, o insidioso Maldoror sentou-se ao lado da criança para tentar persuadi-la de que só pela astúcia e pela violência, condutas que a sociedade nos obriga a adotar, é que se pode obter êxito na vida. E, com tais insólitos argumentos, desnorteia a criança, aconselhando-a a roubar e, quando tiver a força necessária à prática do crime, manipular com destreza um punhal.

Depois de escrever os seis cantos, que narram, com indignação e ironia grotescas, as proezas macabras de Maldoror, Lautréamont renegou a verve blasfematória e violenta. Escreveu os fragmentados poemas em prosa, intitulados Poésies, reiterando que mudara de temática, trocando a maldade pelo bem, o ceticismo pela fé e o orgulho pela modéstia.

Vou, pela passage Verdeau, um longo corredor coberto, com livrarias, lojas e galerias de quadros e fotos antigas e um café-bistrot. Começa, na mesma reta, após cruzar uma rua, o segundo túnel comercial, passage Jouffroy, onde continuam lojas semelhantes às da primeira galeria. A sequência da passage Jouffroy segue através da passage des Panoramas, à qual chego, após cruzar o boulevard Montmartre. Atravesso essa avenida e entro na terceira galeria sequenciada, que é uma linha paralela à rue Vivienne. Percorridas as três galerias, numa extensão de três quadras, tomo a direção da rue Vivienne, na qual Maldoror sentiu a terra tremer e partiu para capturar Mervyn, o louro filho da Inglaterra, e lançá-lo pelos ares, numa arremetida inaudita. Foi diante da grandiosa e monumental Bourse que o estranho terremoto aconteceu.

Depois de uma pausa para tomar um café e uns goles d’água, continuo, pela rue Notre-Dame des Victoires, na direção das pontes, com a intenção de rever as paisagens do Sena antes do poente.

Foi na rue du faubourg Montmartre, nº 7 que o encontraram morto, presumivelmente de overdose de beladona, no dia 24 de novembro de 1870, aos 24 anos de idade. Cessaram, assim, os conflitos de sua luta com o Criador. Seu corpo foi conduzido ao cemitério de Montmartre e o féretro passou pela igreja de Nôtre-Dâme-de-Lorette. Há controvérsias quanto à causa mortis de Lautréamont: se foi por dose letal de beladona, febre tifoide ou assassinato por pretextos políticos, às vésperas da queda do Império de Napoleão III.


Minha trajetória do dia 18 de fevereiro de 2019, até à rue du faubourg Montmartre, onde morou Lautréamont (ou Isidore Ducasse, caso o chamemos pelo nome de batismo) começou pela chegada à estação do metrô Grands Boulevards. Três caminhos ali existem com o nome do bairro, nesse local por demais movimentado de Paris: a rue Montmartre, o boulevard Montmartre e a rue du faubourg de Montmartre. Nesta é que existem dois endereços onde o misterioso poeta residiu e exerceu o seu fulgurante e breve ofício literário. O número 7 da citada rua é o prédio onde ele passou os derradeiros dias. Ali fica hoje o restaurante Chartier. Sinto, não sei por quê, uma espécie de nostalgia diante deste prédio ornado de grades filigranadas. Na fachada imponente, há qualquer coisa a indicar que ali viveu um ser extraordinário. O prédio tem relevo de belas varandas gradeadas.

Na primeira vez em que estive em Paris, com o propósito de localizar as residências do grande poeta maldito, divisei, do lado esquerdo do pátio, na mesma entrada do restaurante Chartier, a velha escada que acolheu os passos taciturnos de Isidore Ducasse, e na parede, uma citação dos fabulosos Chants de Maldoror: “Qui ouvre la porte de ma chambre funeraire? J’avais dit que personne n’entrât. Qui que vous soyez, eloignez-vous”.

Na segunda vez em que viajei a Paris, com esse propósito de estudar a vida dos poetas, estranhei o fato de terem retirado a placa.

No ensaio “Lautréamont et la Banalité”, publicado nas Obras completas de Lautréamont, em edição da Bibliothèque de la Pléiade, diz Albert Camus que as orações fúnebres de Maldoror revelam uma vontade de expiação e de ultrapassagem das fronteiras humanas. Em sua revolta contra a injustiça, ao sentir-se incapaz de edificar a justiça, ele a naufraga numa injustiça ainda mais geral, que se confunde com o aniquilamento.

Na esquina da rue de La Bruyère com rue La Rochefoucault, encontrei uma farmácia homeopática onde comprei o remédio Causticum CH 30, receitado pelo amigo Dr. Agamenon Honório. Em seguida, me encaminhei pela rue Notre-Dame-de-Lorette até me deliciar com a fachada da Igreja Notre-Dame-de Lorette, vista da rue Laffitte: as quatro colunas coríntias e o triângulo frontal, ornado de gloriosas alegorias como as basílicas romanas.

Medito, no silêncio da sua guarida, diante do altar. Foi perante esse oratório que, em 1841, Gérard de Nerval assistiu, de joelhos, ao ofício cujo sermão do sacerdote parecia pronunciado em sua intenção. E, ao deixar a igreja, o poeta viu a paisagem de Paris metamorfoseada. Na place de la Concorde, viu o sol negro do Apocalipse, como um globo sanguíneo, surgir sobre Tuileries, anunciando a noite eterna.

27 anos depois da traumática passagem de Nerval pela igreja, trouxeram ali o corpo de Isidore Ducasse, o incrível Lautréamont, morto precocemente aos 24 anos, no dia 24 de novembro de 1870.


O altar ostenta um precioso mural, com a imagem do Cristo vestindo uma bata branca, sendo coroado por dois anjos e assistido por quatro apóstolos e pela Virgem Maria.

Gaston Bachelard, em seu ensaio editado pela Editions Corti, diz que Lautréamont escreve uma fábula inumana, vivendo os impulsos brutais dos homens. De fato, segundo as próprias palavras do criador de Maldoror: “(...) moi, je fais servir mon génie à peindre les délices de la cruauté”. Bachelard faz o elogio da forma nervosa que é a poesia da agressão do “lautréamontisme”. Admira o trabalho da imaginação com que Lautréamont transfigura energias elementares numa sinfonia de formas vivas e dinâmicas, com tal variedade de frenesis, metamorfoses e signos de um psiquismo cinético, que nos oferece uma síntese harmoniosa das forças obscuras e das forças disciplinadas do nosso ser.

A imaginação violenta de Lautréamont, sua alucinante exasperação, na modalidade de blasfêmias escabrosas e perversidades absurdas revela uma torrente de ressentimentos de sua permanência forçada no internato escolar, durante cinco anos, entre a vigilância de um bedel iletrado e a perseguição de um professor de retórica hostil à criatividade do aluno imaginativo.

Suas orações fúnebres conotam uma sede insaciável de infinito como o uivo dos cães que Maldoror escuta em seu leito. Suas palavras insensatas, suas blasfêmias, plenas de infernal grandeza, são uma denúncia das taras do homem que ele protagoniza. O surrealismo beberá na fonte de Ducasse, que fez escola com sua dicção colérica, irônica, agressiva e sedutora. 

 

 


MÁRCIO CATUNDA | Escritor e diplomata. Nascido em Fortaleza em 1957. É membro da Associação Nacional de Escritores de Brasília, da Academia de Letras do Brasil, do Pen Clube do Brasil, com sede no Rio de Janeiro e da União Brasileira de Escritores. Escreveu cinquenta livros de poesia e prosa, alguns dos quais no idioma castelhano. Editou também diversos discos com seus poemas musicados e cantados por vários parceiros. Autor de um livro fundamental: Paris e seus poetas visionários (2021).

 


EMILIO BOLINCHES | (Uruguai, 1960). Em 1973 iniciou seus estudos de desenho com o aquarelista Esteban R. Garino por três anos. Em 1980 fundou o “Taller 2”, o primeiro workshop privado de formação em Design Gráfico que dirigiu durante nove anos e que entregou ao Designer Gráfico Osvaldo Ruso, que continuou até ao final dos anos 1990. Entre 1982 e 1987 integrou e partilhou o atelier do pintor Carlos Prunell onde deu aulas juntamente com ele. Trabalha como professor de desenho na escola secundária desde 1982 e há dez anos. Desde 1976, expôs o seu trabalho em mais de 400 exposições coletivas e 23 individuais, duas das quais nos EUA. Foi destacado e premiado nos mais importantes Salões de Arte dos anos 80 a nível Oficial e Privado, em Montevidéu e interior do País em treze oportunidades. Aos 22 anos, sua obra passa a fazer parte do Patrimônio Artístico Nacional. Suas obras estão em Museus Nacionais e Coleções Particulares em mais de trinta países (a partir de 2010, uma obra da Série “Céus Mágicos” está registrada no Palácio do Governo Chinês). Atualmente desenvolve suas Oficinas de Artes Plásticas no Centro Cultural Carlos Brussa, SUA Sociedade Uruguaia de Atores. Realiza Workshops para Empresas, com uma proposta vinculativa entre as Artes Plásticas e o Cotidiano, assim como palestras de integração às Artes, para incorporação à Nossa Dieta Diária.

 


Agulha Revista de Cultura

Série SURREALISMO SURREALISTAS # 16

Número 215 | agosto de 2022

Artista convidado: Emilio Bolinches (Uruguai, 1960)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

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